Desalojada desde 6 de maio, profissional pública da Polícia Civil destaca papel crucial dos servidores gaúchos para reerguer o estado após enchentes
Por Eugênia Lopes — Especial para República.org
Uma das milhares de pessoas desalojadas pela catástrofe climática que assola o Rio Grande do Sul, a psicóloga Fernanda Bassani, do Departamento de Saúde da Polícia Civil, viu a rotina mudar drasticamente após as enchentes que tomaram conta de Porto Alegre no início de maio.
Paralelamente ao drama pessoal, quando foi obrigada a deixar sua casa, a servidora pública também passou a vivenciar no dia a dia profissional o abalo psicológico dos policiais civis gaúchos, que atuam na linha de frente no resgate das vítimas das enchentes e passam por situações estressantes e de esgotamento físico e mental.
“Viver uma catástrofe climática é extremamente estressante porque tudo é difícil”, sintetiza Fernanda, que trabalhou junto às forças de segurança pública no atendimento aos atingidos pelas chuvas. “Nas tragédias, a área de segurança pública trabalha dobrado. Do ponto de vista psicológico, os policiais ficam bastante fragilizados e estressados”, conta a psicóloga, segunda entrevistada da série da República.org sobre a importância dos servidores públicos gaúchos na reconstrução do Rio Grande do Sul.
Num primeiro momento, a servidora, de 44 anos, abrigou uma tia e um sobrinho em seu apartamento, localizado em um bairro central da capital gaúcha. Porém, no dia 6 de maio, se viu obrigada a buscar refúgio na casa de outros parentes, levando consigo sua cachorrinha, Joana D’Arc, mais conhecida como Jojo.
A rua onde Fernanda mora foi completamente inundada, com as águas alcançando dois metros de altura — um jacaré até foi visto no local — e seu prédio ficou sem água e luz. “Minha rua virou uma grande piscina, ficou inviável permanecer em casa”, relata Fernanda, reconhecida pelo Prêmio Espírito Público em 2020, na área de segurança pública, pelo projeto MCs para Paz.
Distopia
Fernanda descreve a situação vivida pela população gaúcha como uma espécie de distopia. “É aquele lugar ruim onde você vive uma privação extrema, que não termina nunca. Quando a gente começa a se reerguer, vem mais chuva e destrói tudo de novo. Está muito difícil porque a catástrofe está se prolongando”, explica ela, se referindo às fortes chuvas que atingiram Porto Alegre novamente em 23 de maio.
Essas chuvas deixaram bairros inteiros submersos, espalhando pelas ruas o lixo que havia sido retirado das casas dias antes. Com o apartamento ainda inabitável, Fernanda teve de prolongar a estadia na casa dos parentes.
Diante da continuidade da tragédia, a psicóloga ressalta o papel decisivo e fundamental dos servidores.
“Temos o auxílio grandioso dos voluntários. Estudos da psicologia comprovam que a gente tem uma ativação empática no nosso cérebro promovida pelo contato em tragédias. Mas esse surto de empatia tem prazo de validade e, com o tempo, o voluntário começa a sumir. É o processo que estamos começando a vivenciar agora: os voluntários estão desaparecendo. E quem é que fica depois que o voluntário desaparece? É o Estado, é o servidor público. Então, o servidor público está atualmente no âmbito do herói”, afirma a psicóloga.
Fernanda defende a criação de políticas públicas para o atendimento da saúde mental dos servidores públicos e das pessoas envolvidas na tragédia climática. “Muitas vezes essa política vai acabar se misturando porque o envolvido foi tanto o herói quanto a vítima. Não podemos perder de vista a temática da saúde mental. Quando baixar a água, a pessoa for chegar na sua casa e ver a desgraça, vai começar a melancolia. Seria importante que os servidores públicos pudessem ter um suporte para receber uma reparação sobre toda entrega que eles tiveram”, pondera.
Além do trabalho de atendimento psicológico de policiais envolvidos no resgate de vítimas das chuvas, Fernanda também atuou em abrigos provisórios montados para acolher as milhares de pessoas obrigadas a deixar suas casas. Em Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre, um desses locais conta com mais de seis mil desabrigados.
“Sou especialista em criminalidade, em dependência química, e nesses locais tinha muitos dependentes químicos, além de pessoas oriundas de facções criminosas, o que acabou gerando conflitos de facções rivais nos abrigos. Fiz algumas sessões de grupos com eles”, diz Fernanda.
Trajetória
Servidora pública há 19 anos, Fernanda Bassani construiu sua carreira profissional na área criminal. Em 2005, prestou concurso para a Superintendência de Serviços Penitenciários. Apesar do estigma associado ao trabalho em presídios, Fernanda enxergou a potência que existia na vida das pessoas privadas de liberdade, a maioria jovens e negros. Foi a partir do contato com um deles que conheceu a cultura hip hop e viu como a arte pode transformar vidas. Inspirada por essa experiência, ela iniciou o projeto MCs para Paz em 2007.
O projeto, coordenado por Fernanda até 2014, tinha como objetivo oferecer aos participantes maiores chances de reinserção social por meio do rap e de desvinculá-los das facções criminosas. Implementada em dez estabelecimentos prisionais, a iniciativa beneficiou cerca de 400 jovens. No mesmo ano de conclusão do MCs para Paz, Fernanda colaborou na criação do primeiro Mapa da Segurança Pública e Direitos Humanos de Porto Alegre, apresentado na Câmara de Vereadores. Desde 2015, ela atua como psicóloga no Departamento de Saúde da Polícia Civil do Rio Grande do Sul.
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