Falta planejamento estratégico para minimizar os efeitos de tragédias como as enchentes no Rio Grande do Sul e os incêndios no Pantanal
Por Eugênia Lopes — Especial para República.org
83 anos separam a enchente histórica que assolou Porto Alegre, em 1941, deixando 70 mil desabrigados, da tragédia provocada pelas fortes chuvas em maio de 2024, que atingiu 469 municípios gaúchos e contabilizou 169 mortos. De lá para cá, a prevenção a desastres climáticos, de uma maneira geral, pouco mudou no Brasil. Falta aos governos fazer um planejamento estratégico, investir em infraestrutura e preparar o serviço público para se antecipar e minimizar os efeitos de tragédias que, em alguns casos, são previsíveis.
“Um bom governo, um bom Estado, precisa de alguma previsibilidade. E como se consegue essa previsibilidade? A partir de um corpo permanente de servidores públicos, que, independentemente do governo, vão trabalhar de maneira contínua para gestão de risco”, resume Vanessa Campagnac, gerente de Dados e Comunicação da República.org. “É preciso fazer um bom planejamento, focar nas soluções para antecipar os problemas, e o poder público exercer seu papel fiscalizador e regulador”, corrobora Renata Vilhena, professora da Fundação Dom Cabral e presidente do Conselho da República.org.
Com mudanças de tempo cada vez mais frequentes, capacidade de reação ganha importância
O Rio Grande do Sul não é uma exceção: raramente os governos se preparam para lidar com desastres climáticos, como as cheias nas cidades gaúchas e, mais recentemente, os incêndios que se alastraram pelo Pantanal, com mais de 600 mil hectares consumidos pelo fogo no bioma nos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. “Nos últimos anos, temos dado muita ênfase à gestão e pouco ao planejamento”, observa Vanessa Cortes, especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) do estado do Rio de Janeiro.
Para Felipe Drummond, gerente do EloGroup e especialista em gestão de pessoas do setor público, a cada dia fica mais difícil antever tragédias semelhantes à ocorrida no Rio Grande do Sul. “Com as mudanças climáticas, a nossa própria capacidade de planejamento, de previsão está pequena. Ou seja, temos que nos preocupar muito com a reação porque vamos ter uma dificuldade muito grande de prever”, diz.
Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) atestam que as mudanças climáticas têm ampliado a ocorrência de eventos extremos, como chuvas intensas e secas prolongadas, afetando diversas regiões do Brasil. O Rio Grande do Sul, por exemplo, experimentou um aumento de 30% na intensidade das chuvas extremas nas últimas décadas, acentuando os riscos de desastres naturais.
Contratações temporárias podem contribuir para enfrentar tragédias climáticas
Para Drumond, dois fatores são essenciais no processo de reação a catástrofes: a flexibilização da legislação para a contratação de trabalhadores temporários e o investimento em pessoal, em particular em engenheiros, na área de infraestrutura. “Nos últimos anos, houve uma redução significativa na capacidade interna do governo de lidar com questões cruciais de infraestrutura pública. Nenhuma carreira hoje de referência do Estado brasileiro é focada em engenheiros”, lamenta. Ele enfatiza a importância de revitalizar essas carreiras estratégicas para enfrentar crises ambientais de maneira mais eficaz.
Histórico de desastres
Em maio de 2024, enchentes no Rio Grande do Sul afetaram 469 municípios e causaram 169 mortes.
Entre janeiro e junho de 2024, 627 mil hectares do Pantanal foram queimados, um aumento de 142,9% em relação a 2020.
Drumond destaca ainda a necessidade de adaptar as leis de contratação de pessoal temporário durante emergências. Atualmente, cada estado e município possui regulamentações distintas que limitam a contratação temporária a períodos curtos, o que não é suficiente para crises prolongadas como as observadas no Rio Grande do Sul. “É crucial flexibilizar essas leis para permitir contratações rápidas e de longo prazo em situações de catástrofe”, ressalta.
Na avaliação do especialista, o investimento em ciência de dados é essencial para ganhar tempo precioso na antecipação de desastres. “Se conseguirmos prever a tragédia com apenas alguns dias de antecedência, isso pode fazer uma diferença enorme na mitigação de danos e na proteção das vidas humanas”, afirma Drummond.
Serviço público é fundamental para responder a crises
O fato é que catástrofes como as enchentes no Rio Grande do Sul mostram o papel imprescindível do serviço público e do Estado na resposta a crises. Embora iniciativas da sociedade civil, do setor empresarial e da filantropia sejam importantes, elas não são suficientes para resolver questões complexas sem a coordenação e a estruturação proporcionadas pelo serviço público.
“A questão fundamental é que não existe como passarmos por essas situações sem o Estado. E as políticas de cada governo são muito importantes para direcionar o servidor público. São os governos que dão o tom, que dão a direção”, observa Vanessa Campagnac, ao destacar que a gestão compartilhada e a coordenação entre diferentes órgãos são cruciais para uma resposta rápida a tragédias.
Vanessa Cortes ressalta a importância das estruturas governamentais responderem diretamente aos problemas específicos de cada emergência. Para isso, ela avalia que é essencial superar a fragmentação entre setores e promover uma gestão pública integrada e planejada. “Precisamos retomar o foco no planejamento como base para uma gestão dinâmica e adaptativa”, diz a especialista. Ela destaca ainda a relevância de uma abordagem interdisciplinar que permita a comunicação fluida entre diferentes áreas técnicas e decisórias.
Para Renata Vilhena, é fundamental que o Estado se antecipe aos problemas conhecidos, como as enchentes recorrentes, por meio de projetos robustos de infraestrutura. Isso envolve não apenas investimentos financeiros, mas também a mobilização de recursos técnicos e humanos adequados para implementar soluções preventivas a longo prazo.
Ela enfatiza que a formulação de políticas públicas deve ser um processo bem estruturado e alinhado entre diferentes atores governamentais. Esse alinhamento é essencial para a efetivação das políticas, que requerem alocação de orçamento e monitoramento constante para garantir resultados satisfatórios. “É preciso que o poder público exerça seu papel regulador e fiscalizador de forma mais efetiva, especialmente em áreas de risco como encostas e construções inadequadas”, defende a conselheira da República.org.
Esforço conjunto
Mais de 110 mil servidores públicos foram mobilizados durante as enchentes no Rio Grande do Sul.
No combate aos incêndios no Pantanal, 268 brigadistas e combatentes atuaram em conjunto com polícias e bombeiros locais.
Tanto ela quanto Felipe Drummond alertam sobre o papel do Estado na concessão de serviços públicos, como saneamento. “O governo não pode abdicar totalmente de sua capacidade de gerenciar e monitorar esses serviços essenciais para a população. A concessão não quer dizer abnegação”, observa Drumond. “Não é passar para terceiros e cruzar os braços e achar que não tem que fazer mais nada. Tem que estar ali o tempo inteiro regulando, cobrando, fiscalizando”, conclui Renata.
Força de trabalho pública integrada é destaque na reação a eventos climáticos
Durante as recentes enchentes que assolaram cidades gaúchas, uma força de trabalho pública sem precedentes entrou em ação, mobilizando mais de 110 mil servidores: 43,5 mil eram profissionais do setor público federal e 68,4 mil servidores estaduais do Rio Grande do Sul. Além disso, mais de mil bombeiros de todas as unidades da federação foram convocados. Os dados não incluem os funcionários públicos municipais de várias das cidades afetadas, o que pode elevar ainda mais o número total de envolvidos na operação de socorro e recuperação.
O combate aos incêndios no Pantanal conta com a atuação de 175 brigadistas do Ibama, 40 do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e 53 combatentes da Marinha. Eles agem em conjunto com polícias e bombeiros locais, que iriam ganhar até o fim de junho o reforço de mais 50 brigadistas do Ibama e 60 agentes da Força Nacional.
Entre 1º de janeiro e 23 de junho de 2024, a área queimada no bioma alcançou 627 mil hectares, ultrapassando em 142,9% os 258 mil hectares queimados em 2020, segundo nota técnica do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Lasa-UFRJ) sobre a evolução das áreas afetadas pelo fogo e das condições climáticas no Pantanal.