O que muda com a nova lei dos concursos públicos no Brasil

Publicado em: 21 de agosto de 2024

Legislação amplia critérios de seleção além das tradicionais provas de conteúdo para recrutamento de candidatos a cargos públicos

Por Eugênia Lopes — Especial para República.org

Aprovada depois de mais de 20 anos de tramitação no Congresso, a nova lei de modernização dos concursos públicos tem o potencial de promover avanços significativos na forma de seleção de candidatos a cargos públicos, tornando o processo mais inclusivo, diversificado e adaptado às demandas contemporâneas. Recebida com entusiasmo por especialistas, a recém-aprovada legislação prevê regras para o recrutamento de servidores que dependem de regulamentação a fim de evitar eventuais práticas discriminatórias e garantir a transparência nos processos seletivos.

Foto: Joel Rodrigues/Agência Brasil.

“De imediato, essa nova lei não muda nada. Ela vai ter eficácia em médio e longo prazos, mas é uma norma importante: é uma lei que tem o objetivo de trazer segurança jurídica para o gestor público que quer inovar”, resume a advogada Vera Monteiro, coordenadora-executiva da Sociedade Brasileira de Direito Público e integrante do Conselho de Governança da República.org. “Esse projeto tem o condão de trazer uma segurança jurídica para o processo de atração e seleção de pessoas via concurso público. Na prática, ele amplia o rol de modalidades de provas que podem ser aplicadas num processo. Hoje, grande parte dos concursos usa unicamente uma prova de múltipla escolha para selecionar os candidatos”, corrobora Fred Melo, diretor-executivo da República.org.

Essa nova lei tem o objetivo de trazer segurança jurídica para o gestor público que quer inovar.

Vera Monteiro, vice-presidente do Conselho da República.org

A principal inovação da lei é a introdução de diferentes critérios de seleção, além das tradicionais provas de conteúdo. Os concursos públicos poderão incorporar uma gama mais ampla de avaliações, que vão desde provas de aptidão específica até entrevistas e dinâmicas de grupo, somadas à experiência profissional do candidato. “Esse projeto autoriza que os estados, municípios e o governo federal possam fazer concursos que incluam outras avaliações que não somente as provas de conteúdo, como é hoje”, observa Vanessa Campagnac, gerente de Dados e Comunicação da República.org.

Nova lei dos concursos públicos possibilita seleção de outros perfis de candidatos

Com os novos critérios, a expectativa é proporcionar uma visão mais holística das competências dos candidatos, alinhando a seleção às necessidades práticas e ao perfil dos cargos públicos. “As provas escritas não conseguem avaliar totalmente a adequação de um candidato para determinado cargo. Esse tipo de prova deve ser apenas um filtro inicial”, explica Ana Luiza Pessanha, analista de Projetos da República.org. A introdução de novos critérios suscita, no entanto, preocupações em relação à possibilidade de favorecimentos e discriminação. Há o temor de favorecimento indevido, uma vez que a avaliação mais subjetiva, com entrevistas e dinâmicas de grupo, pode abrir espaço para preferências pessoais e influências externas.

Critérios como avaliações comportamentais também podem ser interpretados de maneira desigual, levando à discriminação inconsciente contra certos grupos. Outro receio é que a aplicação de novos critérios não seja tão transparente quanto às provas de conteúdo objetivas, dificultando o monitoramento e controle do processo. “A crítica é porque o critério objetivo é o critério mais fácil, que é a prova teste. Qualquer coisa que não seja a prova teste cai na categoria de critério subjetivo”, analisa Vera Monteiro.

Regulamentações sobre novos critérios devem ser claras, defendem especialistas

Especialistas defendem que, para reduzir os riscos, é fundamental serem estabelecidas regulamentações claras sobre os novos critérios de seleção. Nesse sentido, argumentam que é preciso definir critérios objetivos, implementar mecanismos de fiscalização e auditoria para garantir a transparência e equidade, além de formar avaliadores treinados para aplicar os critérios de forma justa e consistente. Outros pontos importantes são garantir que todos os aspectos da seleção sejam documentados e acessíveis para revisão e contestação e também assegurar que a comissão avaliadora não tenha parentes do candidato.

As provas escritas não conseguem avaliar totalmente a adequação de um candidato para determinado cargo.

Ana Luiza Pessanha, analista de Projetos da República.org

“Não podemos limitar o processo de modernização, evolução, criação e inovação com o receio de questões que estão relacionadas ao uso indevido de uma regra. Qualquer desvio precisa ser combatido. É superimportante ter salvaguardas, uma dupla checagem, ter um desenvolvimento e uma formação das equipes que vão estar envolvidas nesses processos dentro dos estados, dos municípios e do próprio governo federal”, sustenta Fred Melo. “É preciso entender como aplicar essas novas ferramentas, quais são as formas de inibir o uso incorreto delas, garantindo que a impessoalidade e a isonomia, que são princípios constitucionais básicos da administração pública, continuarão a ser observados”, completa.

Enquanto no Brasil os concursos públicos avaliam apenas conhecimentos técnicos (muitas vezes com foco excessivo em conteúdos legalistas), por meio de provas objetivas e descritivas, a maioria dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), com exceção de quatro, aplica algum instrumento para avaliar competências comportamentais. Dados de 2020 do Survey on Public Service Leadership and Capability apontam que mais de 62% dos países empregam entrevistas, 43% utilizam centros de avaliação e 18% fazem análise de currículo para avaliar competências comportamentais. Em um relatório analítico sobre a administração pública federal brasileira publicado em 2022, a OCDE destacou que a maior parte dos processos seletivos no Brasil não avalia competências de forma sistemática.

O que diz a nova lei dos concursos públicos

Aprovada no plenário do Senado em votação simbólica no dia 15 de agosto e prestes a ser sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a nova lei estabelece 13 normas para concursos do nível federal. Os estados, o Distrito Federal e os municípios podem optar por editar normas próprias. O projeto não vale para concursos para magistratura, Ministério Público e empresas públicas e das sociedades de economia mista, que não recebam recursos do governo para despesas de pessoal ou de custeio.

Foto: Arquivo/Agência Brasil.

Uma das principais inovações da nova lei é o estabelecimento de três tipos de provas no processo de recrutamento de servidores:

  • Provas de conhecimentos (provas escritas, objetivas ou dissertativas e provas orais, que cubram conteúdos gerais ou específicos);
  • Provas de habilidades (provas “práticas”, de elaboração de documentos e simulação de tarefas próprias do posto, bem como testes físicos);
  • Provas de competências (avaliação psicológica, exame de higidez mental ou teste psicotécnico).

O texto prevê ainda a possibilidade de avaliação por títulos e realização de curso ou programa de formação (este poderá ser eliminatório ou classificatório). A lei proíbe também a discriminação de candidatos com base em aspectos como idade, sexo, estado civil, condição física, deficiência, etnia, naturalidade, proveniência ou local de origem.

“O grande ganho do projeto é aceitar que é possível escolher pessoas com base em critérios que levem em consideração características pessoais, que não podem ser discriminatórias. E o projeto fala isso”, constata Vera Monteiro. Ela explica que a nova lei tem temas que são autorizativos e outros que são obrigatórios. O estabelecimento de diferentes tipos de provas para recrutamento de candidatos é facultativo, podendo ser estabelecido nos editais de concursos públicos por municípios, estados e governo federal. Já o planejamento de concursos públicos passará a ser obrigatório daqui a quatro anos. “Essa primeira parte da lei é obrigatória, e é importante para ter uma ação organizada, para ter uma ação planejada, para que a gestão dos concursos públicos não fique sujeita a arroubos políticos”, pondera a advogada.

É superimportante ter salvaguardas, uma dupla checagem, ter um desenvolvimento e uma formação das equipes que vão estar envolvidas nesses processos.

Fred Melo, diretor-executivo da República.org

Pela nova lei, a abertura de concurso público deverá ser expressamente motivada com, pelo menos, a evolução do quadro de pessoal nos últimos cinco anos e a estimativa das necessidades futuras do órgão; a denominação e a quantidade de vagas a serem preenchidas; a adequação do provimento dos postos; e a estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício previsto para o provimento e nos dois anos seguintes.

Se houver concurso público anterior válido, com candidatos aprovados e não nomeados, para os mesmos postos, fica autorizada a abertura excepcional de novo concurso se for comprovada insuficiência da quantidade de candidatos aprovados e não nomeados diante das necessidades do órgão.

Nova lei dos concursos permite provas online

Outra novidade é a possibilidade de realizar o concurso total ou parcialmente à distância, utilizando a internet ou plataformas eletrônicas com acesso individual seguro e ambiente controlado. O texto prevê a necessidade de garantir igualdade no acesso às ferramentas e aos dispositivos virtuais. Esse aspecto ainda precisa ser regulamentado pelo Executivo, que pode optar por uma regulamentação geral para toda a Federação ou específica para cada órgão ou entidade, com a obrigatoriedade de consulta pública prévia.

Pelo texto do projeto, as novas regras entrarão em vigor no quarto ano depois da publicação, ou seja, em 1º de janeiro de 2029. Mas a aplicação da nova lei pode ser antecipada pelo ato que autorizar a abertura de cada concurso público. As novas regras não vão se aplicar a concursos que foram abertos anteriormente à sua aprovação, não valendo, portanto, para o 1º Concurso Nacional Unificado, que aconteceu no dia 18 de agosto.

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