Abertura do evento discutiu interseção entre literatura e política e destacou o impacto do serviço público no cotidiano


PARATY — A Casa República deu início à programação na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) com uma mesa que uniu história, literatura e gestão pública. Realizada na Rua Dona Geralda, 25, a abertura atraiu o público para uma discussão sobre o papel transformador de Graciliano Ramos, autor de Vidas Secas, tanto na literatura quanto na administração pública.
“A caneta e o cargo” contou com a professora e pesquisadora da FGV Bianca Tavolari e o jornalista e pesquisador da USP Thiago Mio Salla, especialista na obra de Graciliano. Juntos, eles analisaram como a experiência do escritor à frente da Prefeitura de Palmeira dos Índios (AL) influenciou sua visão crítica sobre o serviço público e as estruturas de poder no Brasil.
Tavolari, que teve acesso aos relatórios escritos por Graciliano enquanto ainda era prefeito, afirmou que esses documentos “são uma delícia de ler” graças à forma literária com que o romancista os redigia. Salla complementou: “a gente lê um documento burocrático e geralmente não gosta de ler. Mas por que a gente gosta tanto de ler os registros do Graciliano? Os textos são marcados por uma ironia mordaz e também pela clareza ao nomear os problemas da cidade. É um estilo muito diferente do que se vê na burocracia”, disse.
Os pesquisadores ressaltaram que Graciliano observava os problemas da administração e pensava em soluções, estabelecendo uma relação entre o prefeito que percorre o município e o escritor que percorre a própria trajetória para refletir sobre suas ações. “Se analisarmos os relatórios que Graciliano escreveu como servidor público, já vemos seu estilo, o mesmo que aparece em seus livros”, pontuou Salla.


Outro aspecto relevante da atuação de Graciliano como gestor foi sua postura na Secretaria de Educação. No comando da pasta, ele utilizava estatísticas escolares para embasar políticas públicas e registrava processos de contratação de professoras e aquisição de materiais, como tecidos para uniformes. Graciliano também se destacou ao promover a inclusão de alunos mais pobres e ao nomear uma professora negra como diretora de um grupo escolar, desafiando os preconceitos da época. “Essas atitudes revelam muito sobre sua postura: ele se posicionou contra uma diretora que defendia o eugenismo e utilizava castigos físicos”, observou Salla.
Os textos de Graciliano são marcados por uma ironia mordaz e também pela clareza ao nomear os problemas da cidade. É um estilo muito diferente do que se vê na burocracia.
Thiago Mio Salla, pesquisador da USP
Tavolari ainda trouxe uma reflexão sobre como os textos de Graciliano abordam questões atuais da gestão pública: “nos relatórios, fica muito clara a postura dele como gestor: a impessoalidade, a prestação de contas, a transparência na coisa pública. Estamos falando de uma gestão do final dos anos 1920, com uma crise enorme em 1929, e mesmo assim ele aumentou a arrecadação da cidade. Ele deixou registros afirmando que deixou de cobrar daqueles que não podiam pagar e passou a cobrar mais de quem tinha mais dinheiro. Acho que isso é muito atual. Os relatórios dele são a tradução de uma postura de não fazer acordos e de não ceder a conchavos”.
A Casa República, que chega à terceira edição, é uma iniciativa conjunta das organizações República.org, Matizar Filmes, Samambaia.org e Museu Vassouras, com curadoria da jornalista Daniela Pinheiro. O espaço busca promover um diálogo entre o serviço público e a sociedade por meio da literatura e do audiovisual, ampliando as perspectivas sobre os desafios do Brasil e o papel da gestão pública no enfrentamento das desigualdades.


O que vem por aí: debates sobre desigualdade e censura
Nos próximos dias, a Casa República volta a trazer temas cruciais para os rumos do país, como as disparidades no setor público, os limites da liberdade de expressão e as diferentes facetas das queimadas. Amanhã, 11 de outubro, a programação começa às 15h com a mesa “O manual dos inquisidores”, que reúne o escritor e professor Jeferson Tenório e o escritor e cineasta João Paulo Cuenca para uma conversa sobre censura no Brasil. Às 17h, a mesa “Não somos iguais” tem a participação do economista Bruno Carazza, do diretor administrativo-financeiro da Samambaia.org Rodrigo Candido e da jornalista Ana Clara Costa, da revista piauí, para discutir as desigualdades no serviço público e seus impactos na qualidade dos serviços prestados à população.
Para encerrar o dia, a mesa “O Quilombo de Manuel Congo” convida o jornalista Mário Magalhães, a historiadora Marina Lourenço, o jornalista e pesquisador Tayguara Ribeiro e o pesquisador Spirito Santo para um diálogo sobre as histórias não contadas do quilombo de Manuel Congo. A noite, que termina com uma roda de jongo conduzida pelo Grupo de Jongo do Quilombo do Campinho da Independência, valoriza as tradições culturais e a memória coletiva do país.
Acesse a programação completa.
Serviço
Casa República na Flip 2024
Data: 10 a 13 de outubro.
Local: Rua Dona Geralda, 25, Paraty.
Exibições do filme Retrato de Um Certo Oriente: Cinema da Praça (R. Mal. Deodoro, 3, Centro Histórico).
Entrada gratuita.