Supremo validou contratação de empregados públicos pela CLT, concluindo julgamento de ação que tramitava há 24 anos
Por Eugênia Lopes — Especial para República.org
Inserida na Constituição na reforma administrativa do então governo Fernando Henrique Cardoso, em 1998, a permissão para contratar empregados públicos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) foi ratificada recentemente, em 6 de novembro, pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e abre caminho para mudanças na forma de admissão de pessoal no serviço público.
As novas regras só valem para futuras contratações, sem a possibilidade de mudança de regime para os atuais servidores.
Alguns especialistas em administração pública avaliam que as carreiras ligadas ao atendimento direto à população, como saúde, educação e serviços sociais, serão as mais afetadas nos próximos anos. Esses profissionais representam a expressiva maioria do funcionalismo. Já as funções que desenvolvem atividades exclusivas de Estado, as chamadas carreiras típicas, devem continuar sendo preenchidas pelo regime estatutário, mantendo estabilidade no emprego.
Incorporadas à Constituição em 1998, as carreiras típicas não foram regulamentadas até hoje pelo Congresso. Ou seja, elas ainda precisam ser regulamentadas.
“A flexibilização para contratação via CLT agiliza processos e faz que consigamos, por exemplo, alocar força de trabalho em situações emergenciais. Mas essa flexibilização tem que ser regulamentada. É preciso que as regras sejam cumpridas, que os direitos trabalhistas sejam fiscalizados”, afirma Vanessa Campagnac, gerente de Dados da República.org.
Regulamentar para proteger
Para Felipe Drumond, especialista em administração pública, é urgente o estabelecimento de critérios claros sobre as hipóteses de desligamento de servidores, além da definição sobre quais carreiras devem ser consideradas típicas de estado.
“É preciso avaliar bem quais vão ser as hipóteses de desligamento das pessoas e também definir quais serão carreiras típicas de Estado para evitar que o Supremo precise intervir novamente. É inerente que as carreiras não consideradas típicas eventualmente judicializem essa questão”, alerta.
Ele defende que o governo federal regulamente quais são as carreiras típicas. “O governo federal tem que ter um protagonismo nessa discussão para garantir uma normatização positiva e evitar distorções.”
Na avaliação da professora e coordenadora-executiva da Sociedade Brasileira de Direito Público, Vera Monteiro, conselheira da República.org, a decisão do Supremo representa um avanço, uma vez que amplia a liberdade de planejamento das administrações públicas em relação ao seu quadro de servidores.
Ela argumenta que a permissão para contratações pelo regime celetista poderá beneficiar tanto a previdência dos entes públicos quanto evitar terceirizações problemáticas, além de proporcionar uma gestão potencialmente mais eficiente.
“Saúde, educação e serviços sociais poderão aceitar a admissão no regime celetista e isso poderá trazer ganhos, seja do ponto de vista previdenciário para o ente, seja para evitar terceirizações ruins, além de potencialmente permitir uma gestão mais simples e eficiente”, diz.
Impactos pela não obrigatoriedade
A expectativa é que, a médio e longo prazo, a decisão do Supremo aumente significativamente o número de celetistas na administração pública. Hoje, 66,8% dos cerca de 12 milhões de funcionários públicos estão enquadrados no Regime Jurídico Único (RJU), conhecidos como estatutários, e gozam de estabilidade, de acordo com dados do Anuário de Gestão de Pessoas no Serviço Público 2024, lançado recentemente pela República.org.
Segundo o estudo, os estatutários correspondem a 81,1% dos profissionais públicos alocados no governo federal. Nos órgãos da administração direta, assim como nas fundações públicas ou autarquias, servidores estatutários efetivos são maioria: representam 72,8% e 71,6%, respectivamente.
Nas empresas públicas, a maior força de trabalho é regida pela CLT (98,2%). Já nos estados, os estatutários são 75,3%. Nos municípios, estatutários também são maioria, compondo 69,6% dos profissionais públicos.
Crescimento dos temporários e flexibilização
Dados do anuário revelam ainda que, em duas décadas, houve um aumento nos vínculos de servidores temporários, o que reflete uma tendência de flexibilização nas contratações. O número de cargos temporários no serviço público brasileiro cresceu 1.760% em 20 anos: o país passou de 38,5 mil vínculos temporários para 716,2 mil entre 2003 e 2022.
De acordo com o levantamento, o crescimento mais expressivo no quadro de temporários ocorreu a partir de 2020, quando saiu de 4,7% do total de vínculos para 7,2% em 2022. Atualmente, os temporários representam 11,5% da força de trabalho do governo federal.
Servidores públicos civis por tipo de vínculo na administração pública — 2003 a 2022 (números absolutos e valores percentuais)
Reforma administrativa e o fim da obrigatoriedade do RJU
No dia 6 de novembro, o Supremo validou a flexibilização do regime de contratação de funcionários públicos, que poderão ingressar no serviço público pela CLT e não apenas pelo RJU. No julgamento, os ministros do STF declararam a constitucionalidade de um trecho da emenda à Constituição n.º 19, de 1998 — a última grande reforma administrativa que tivemos — que suprimiu a obrigatoriedade de regimes jurídicos únicos e planos de carreira para servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas federais, estaduais e municipais.
As novas regras só valem para futuras contratações, sem a possibilidade de mudança de regime para os atuais servidores. Com a decisão do STF, os editais dos novos concursos deverão informar qual será o regime de contratação: CLT ou RJU. União, estados e municípios têm o poder de decidir qual o regime é mais adequado para cada tipo de cargo.
Quando for feita a regulamentação, a tendência é que apenas as carreiras de Estado, que realizam trabalhos sem correspondência na iniciativa privada, mantenham o regime estatutário, ou seja, com estabilidade. No entanto, precisará de regulamentação.
O artigo 39 da Constituição de 1988 estabelecia que União, estados e municípios deveriam instituir o regime jurídico único e planos de carreira para seus servidores públicos, unificando a forma de contratação (estatutária) e os padrões de remuneração (planos de carreira). A Emenda à Constituição 19/1998 alterou o dispositivo para extinguir a obrigatoriedade do RJU, possibilitando a contratação de servidores públicos pelo regime da CLT.
Diferença entre CLT e RJU para servidores
Pela CLT, o trabalhador tem uma série de direitos, como a jornada diária máxima de oito horas, descanso semanal remunerado, férias, pagamento de hora extra, atuação em ambiente salubre, aviso-prévio, licença-maternidade e paternidade, 13º salário, proteção contra demissão sem justa causa e seguro-desemprego, mas sem direito à estabilidade.
A decisão do Supremo foi tomada no julgamento do mérito da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) apresentada pelo PT, PDT, PCdoB e PSB, em 2000.
Os partidos defenderam que o texto promulgado da reforma administrativa não teria sido aprovado em dois turnos por 3/5 dos votos dos parlamentares na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, procedimento necessário para alterar a Constituição. Mas a maioria dos ministros do Supremo entendeu que não houve violação ao processo legislativo, validando a emenda à Constituição que flexibilizou o regime de contratação de servidores públicos.