Enem dos concursos dá largada à reinvenção do serviço público brasileiro

Publicado em: 6 de fevereiro de 2025

Livro registra desafios do governo federal na realização do Concurso Público Nacional Unificado (CPNU) para 6.640 vagas

Por Eugênia Lopes — Especial para República.org

Apontado como uma das maiores novidades recentes no recrutamento para o setor público federal, o primeiro Concurso Público Nacional Unificado (CPNU) inovou ao realizar em um único dia, em 228 cidades, uma prova para 80 cargos efetivos em 21 repartições do governo federal. Considerada um marco histórico, a nova política de admissão na administração pública é contada no livro A Saga do CPNU: Inovação em Serviços Públicos e Transformação do Estado para a Cidadania, com lançamento previsto para depois do Carnaval, quando será homologado o resultado final do concurso.

Ao todo, 970.037 candidatos disputaram 6.640 vagas distribuídas por oito blocos temáticos. Ao se inscrever, cada candidato selecionou seus cargos prioritários, ampliando as oportunidades de ingresso no serviço público. Mesmo que um candidato não consiga a vaga de sua preferência, ele ainda pode ser aprovado em outras posições do mesmo bloco, pois a nota é apenas uma referência — o que proporciona chances maiores de sucesso. As provas tiveram 36 versões, a fim de evitar “colas”.

Candidatos do CPNU à espera da abertura dos portões em São Paulo (18/8/2024). Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil.

Apelidado de “Enem dos concursos”, o CPNU é considerado o passo inicial para a reformulação que começou a ser gestada na forma de contratação para o serviço público. “Precisamos pensar como modernizamos os concursos públicos uma vez que eles são muito baseado em concursos monofásicos, ou seja, somente de uma fase e com avaliação de atributo de apenas da competência do conhecimento, e a partir de provas escritas que, muitas vezes, são de questões de múltipla escolha”, diz o professor de Administração Pública da Universidade de São Paulo (USP), Fernando Coelho.

Ele observa que o CPNU inovou ao adotar a prova dividida em oito blocos temáticos e em um único dia. “Isso forçou o candidato anteriormente a ver qual bloco temático tinha maior relação com as suas aspirações”, afirma. “Mas enquanto os concursos públicos continuarem jogando luz mais no conhecimento teórico e acadêmico, que é mensurado a partir de provas escritas, sobretudo de múltipla escolha, a tendência é aprovar pessoas que têm mais tempo e dinheiro para se preparar para o concurso público”, argumenta Coelho.

Opinião semelhante é compartilhada por Renata Vilhena, professora associada da Fundação Dom Cabral e uma das integrantes do conselho diretor da República.org. “Os concursos como acontecem hoje apresentam diversas limitações na seleção de servidores. O formato por meio de prova objetiva não seleciona, necessariamente, aqueles com vocação para serviço público ou mais bem qualificados de acordo com o perfil de vaga de interesse da administração”, constata Vilhena.

Assim como Coelho, ela defende mudanças no processo seletivo de servidores. “Para tornar os concursos públicos mais eficazes na mensuração de habilidades e competências dos candidatos, é necessário repensar a forma tradicional de condução desses processos seletivos. Novas formas, como a avaliação de habilidades práticas, dinâmicas de grupo e simulações, entrevistas, experiência profissional relevante, entre outras, podem ser essenciais para captar os perfis desejados para cada cargo”, assinala a professora.

Enquanto os concursos continuarem jogando luz no conhecimento teórico e acadêmico, a tendência é aprovar pessoas que têm mais tempo e dinheiro para se preparar.

Fernando Coelho, professor de Administração Pública da USP

Ana Luiza Pessanha, analista de Projetos da República.org, é outra que defende o uso de novos critérios de recrutamento de servidores públicos. “Os próximos passos têm que pensar como a gente inova ainda mais o CPNU para incorporar outros tipos de provas, outros tipos de avaliação, além das provas escritas”, afirma.

Nova lei de concursos

Sancionada em setembro do ano passado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a Lei 14.965/24, conhecida como Lei Geral Federal dos Concursos Públicos, é apontada pelos professores da USP e da Fundação Dom Cabral como importante instrumento para recrutar servidores não apenas pelo conhecimento teórico. Entre as novidades, a nova lei prevê a possibilidade de realização de provas online. Essa medida objetiva modernizar o processo seletivo, permitindo que candidatos de todo o país participem dos concursos sem a necessidade de se deslocarem até grandes centros urbanos. A lei é aplicável apenas aos concursos realizados pela União. Estados e municípios continuam a ter liberdade para criar suas próprias regras.

No Rio de Janeiro, o desenhista Lucas Santoro chega para participar do CPNU (18/8/2024). Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil.

“O que estamos tentando hoje a partir dessa lei é trazer para dentro dos concursos tipos de provas alternativas que avaliem para além dos conhecimentos. É possível inovarmos, mas nós não tínhamos no Brasil um incentivo para isso. E quando se tentava inovar ou tinha uma aversão ao risco, por parte dos gestores de pessoas, ou o concurso era judicializado”, diz Coelho.

Novas formas como a avaliação de habilidades práticas podem ser essenciais para captar os perfis desejados para cada cargo.

Renata Vilhena, professora da FDC e membro do conselho da República.org

Para Vilhena, a lei inova ao possibilitar a ampliação das formas de seleção para provas de conhecimento, habilidades e competências. “Porém, a lei ainda precisa de regulamentação e está restrita a administração federal, o que limita sua aplicação nos estados e municípios, apesar de abrir precedentes e colocar o assunto na agenda política”, observa a professora.

A Saga do CPNU

Com 184 páginas e organizado pelos servidores públicos José Celso Cardoso Jr. e Rosicleide Ramos Alves, o livro A Saga do CPNU: Inovação em Serviços Públicos e Transformação do Estado para a Cidadania apresenta um panorama detalhado sobre o concurso unificado, uma das maiores inovações recentes no recrutamento para o setor público federal.

Candidatos chegam para a prova na capital paulista (18/8/2024). Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil.

Dividido em quatro partes, o livro aborda desde a fundamentação histórica e teórica do concurso público no Brasil até os desafios logísticos e políticos da implementação do CPNU. Logo no início, o prefácio do professor Luiz Felipe de Alencastro traça um panorama da evolução do funcionalismo público brasileiro, destacando como o serviço estatal foi moldado ao longo dos séculos.

Na apresentação, a ministra da Gestão e Inovação em Serviços Públicos Esther Dweck reforça que o CPNU não é apenas uma mudança operacional, mas uma estratégia de transformação do Estado. A ministra destaca que o novo modelo de concurso busca corrigir falhas do sistema atual e promover um serviço público mais inclusivo e alinhado às necessidades da população.

Entre os principais méritos do CPNU apontados na obra estão a redução de custos para os candidatos — já que a taxa de inscrição única substitui múltiplas inscrições para diferentes órgãos — e a ampliação da cobertura territorial do processo seletivo, permitindo que provas fossem aplicadas em 228 cidades pelo país. Essa descentralização visa corrigir desigualdades históricas que frequentemente beneficiavam candidatos de grandes centros urbanos em detrimento dos que vivem em regiões mais remotas.

Os próximos passos têm que pensar como a gente inova ainda mais o CPNU para incorporar outros tipos de avaliação além das provas escritas.

Ana Luiza Pessanha, analista de Projetos da República.org

A obra também analisa os desafios enfrentados na implementação do CPNU, desde aspectos legais e administrativos até riscos operacionais e de segurança. Entre os obstáculos citados, destacam-se a necessidade de um alto nível de coordenação entre diferentes órgãos federais e a resistência de setores mais conservadores da administração pública. Ao explorar o futuro do CPNU, os autores defendem que, além de otimizar o ingresso de novos servidores, o modelo pode incentivar uma nova mentalidade dentro da administração pública, com maior valorização da capacitação contínua e do compromisso com o interesse público.

O livro A Saga do CPNU: Inovação em Serviços Públicos e Transformação do Estado para a Cidadania aponta os pontos fortes e críticos do primeiro Concurso Público Nacional Unificado.

PONTOS FORTES

Custo da inscrição — a taxa de R$ 90 para cargos de nível superior foi inferior a outros concursos, como o do Ipea, que custou R$ 180. O CPNU também ofereceu isenção para grupos como inscritos no CadÚnico e bolsistas do ProUni e Fies.

Capilaridade das provas — as provas foram aplicadas em 228 municípios, abrangendo 95% da população brasileira. Isso facilitou o acesso, resultando em 2,1 milhões de inscritos (970.037 fizeram as provas), com 600 mil isentos da taxa.

Organização simultânea — o CPNU foi estruturado em oito concursos simultâneos, permitindo que os candidatos se inscrevessem em apenas um bloco. Isso evitou a dispersão e a rotatividade de candidatos entre diferentes certames.

Desenho dos blocos temáticos — cada bloco temático tinha especificidades e percentuais de vagas, incentivando os candidatos a escolherem cargos mais alinhados à sua formação e aspirações profissionais.

Diversidade de formação — algumas carreiras transversais permitiram a participação de candidatos de diferentes áreas de conhecimento, promovendo equipes multidisciplinares para resolver problemas públicos complexos.

Conteúdo programático interdisciplinar — a prova de conhecimentos gerais foi organizada de forma interdisciplinar, abordando temas relevantes como Estado de Direito e Políticas Públicas, distanciando-se do modelo tradicional de concursos.

Banco de candidatos — o CPNU prevê a utilização de um banco de candidatos aprovados para contratações temporárias, agilizando o provimento de pessoal em situações emergenciais, sem a necessidade de novos processos seletivos.

PONTOS CRÍTICOS

Número reduzido de questões — as provas objetivas e a questão dissertativa foram consideradas insuficientes, com apenas 20 questões de conhecimentos gerais e 50 de conhecimentos específicos. Isso levanta dúvidas sobre a eficácia na seleção dos candidatos mais aptos, especialmente em comparação com o Enem, que possui um formato mais abrangente.

Falta de avaliação de habilidades práticas — o CPNU não incluiu métodos para avaliar competências práticas e comportamentais, o que pode resultar em uma seleção que favorece candidatos com mais tempo e recursos para estudar, em vez de identificar os mais competentes para os cargos.

Integração e acolhimento dos novos servidores — o curso de formação é limitado a poucos cargos, e a falta de um processo robusto de acolhimento pode desengajar novos servidores. É essencial haver uma integração adequada e contínua, considerando as qualificações e experiências prévias dos empossados.

Excesso de vagas em alguns cargos — a grande quantidade de vagas, como 900 para Auditor Fiscal do Trabalho, pode ser problemática. Uma distribuição mais gradual em certames consecutivos poderia evitar lacunas geracionais e promover uma composição mais equilibrada da força de trabalho.

Padrão das questões de conhecimentos específicos — muitas questões foram breves e focadas em domínio conceitual, sem explorar situações práticas ou mini casos. As próximas edições devem buscar um formato mais contextualizado, que relacione os conteúdos com a realidade dos cargos oferecidos.

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