Desigualdade salarial no setor público: carreiras com mesmas funções, mas salários até 2,5 vezes menores

Publicado em: 21 de maio de 2024

Pesquisa expõe distorções salariais no serviço público federal e impulsiona debates sobre reformulação do sistema de carreiras

Por Eugênia Lopes — Especial para República.org

Estudo encomendado pelo Movimento Pessoas à Frente (MPF) revela uma discrepância alarmante no serviço público: profissionais que desempenham as mesmas funções, mas têm remunerações significativamente distintas. Intitulado Propostas de Modernização do Sistema de Carreiras do Governo Federal, o estudo mostra que, embora as responsabilidades sejam idênticas, os salários apresentam uma divergência impressionante entre diferentes órgãos governamentais.

Um dos casos analisados no estudo é o cargo de analista administrativo em diferentes estruturas do governo federal. O salário inicial pago para os analistas administrativos no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), por exemplo, é 2,5 vezes menor do que aquele oferecido para o mesmo cargo em 10 agências reguladoras. Enquanto os profissionais no Incra começam com um salário de R$ 5.897,29, aqueles que ingressam nas agências reguladoras recebem mensalmente R$ 15.050,25. Ou seja, o analista administrativo do Incra recebe de salário inicial o equivalente a 39,1% daquilo que é pago ao analista administrativo das agências reguladoras.

Parte dessas discrepâncias salariais são apontadas no estudo do MPF, que apresenta um diagnóstico com propostas de modernização do sistema de carreiras do governo federal. O redesenho do sistema de carreiras está no centro das discussões para a redução das distorções salariais no serviço público federal. Atualmente, um intrincado conjunto de cargos, somados a mais de 300 tabelas remuneratórias, gera enormes diferenças de salários entre servidores que exercem atividades semelhantes.

Análise de salários em diferentes órgãos

O levantamento mostra a evolução do sistema de carreiras e cargos entre 1998 e 2023. Em 25 anos, o número de carreiras aumentou mais de sete vezes: em 1998, o sistema de pessoal do Executivo federal era organizado em 16 grupos de carreiras; em 2023, saltou para 117 EOCs (Estrutura Organizativa de Cargos), cada uma com sua própria tabela salarial.

“O problema não é a quantidade de carreiras e sim a falta de critérios para definir os salários. Podemos até ter duas carreiras que fazem coisas diferentes, mas a complexidade é similar; então elas têm que receber remunerações parecidas. O problema é que temos o oposto: áreas com muitas carreiras fazendo coisas parecidas e recebendo diferente. Além disso, não temos um processo de ajuste salarial comum. Isso possibilita essa fragmentação; cada um tem sua tabela salarial”, atesta o economista Felipe Drumond, gerente do EloGroup e coordenador do diagnóstico encomendado pelo MPF.

A professora de direito administrativo Vera Monteiro, da FGV Direito SP, vice-presidente do Conselho da República.org, lembra que a criação do sistema de carreiras no serviço público brasileiro não teve como base parâmetros técnicos. “A nossa história em matéria de servidores sempre foi desenhada a partir das necessidades de cada órgão e não a partir de uma visão holística, que considera as necessidades das funções de Estado. Por isso há essa multiplicação de posições idênticas, mas com regimes remuneratórios diferentes”, explica.

Comparação entre cargos de analista administrativo

ÓrgãoSalário inicial Salário final
Agências reguladoras (ANA, ANAC, ANEEL, ANS,
ANATEL, ANTAQ, ANTT, ANVISA, ANCINE e ANP)
R$ 15.050,25R$ 21.325,15
Superintendência Nacional de Previdência
Complementar (Previc)
R$ 14.583,49R$ 20.664,03
Departamento Nacional de Infraestrutura de
Transportes (Dnit)
R$ 13.351,89R$ 17.848,18
Superintendência da Zona Franca de Manaus
(Suframa)
R$ 11.716,08R$ 18.583,74
IbamaR$ 10.893,30R$ 16.841,95
Agência Nacional de Mineração (ANM)*R$ 10.065,06R$ 14.304,75
Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (Incra)
R$ 5.897,29R$ 12.348,21
Plano Geral de Cargos do Poder Executivo (PGPE)R$ 6.255,90R$ 9.728,38
Fonte: “Tabela de Remuneração dos Servidores Públicos Federais Civis e dos Ex-territórios”, do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos. Salário mensal em valores de julho de 2023.
*Com a MP 1.203, de 29 de dezembro de 2023, esses valores foram alterados.

Impacto da Medida Provisória na equiparação salarial

Até o início deste ano, os salários pagos a funcionários da Agência Nacional de Mineração (ANM) eram discrepantes em relação às demais agências reguladoras. Para corrigir essa desigualdade salarial, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva editou, em 29 de dezembro de 2023, a Medida Provisória 1203/2023. A MP, que está em tramitação no Congresso, implementa de forma gradual a reestruturação da tabela remuneratória dos cargos da ANM com a escala utilizada nas demais dez agências reguladoras. Como a MP tem força de lei, a nova remuneração já passou a valer em 1º de janeiro. A equiparação salarial se dará em três partes: a 1ª parcela, de 40%, em janeiro de 2024; a 2ª parcela, de 30%, em janeiro de 2025; e os 30% restantes, em janeiro de 2026.

Hoje existem remunerações que são muito destoantes, muito discrepantes em várias carreiras, com atividades similares. E isso contribuiu para que você tenha uma administração pública disfuncional.

Vera Monteiro, professora da FGV e vice-presidente do Conselho da República.org

No ranking salarial dos analistas administrativos, os funcionários das agências reguladoras saem na frente, com as melhores remunerações. Em seguida, vêm os servidores da Previc (salário inicial de R$ 14.583,49), do Dnit (R$ 13.351,89), da Suframa (R$ 11.716,08), do Ibama (R$ 10.893,30) e do Incra (R$ 5.897,29). Já os analistas técnicos-administrativos do Plano Geral de Cargos do Poder Executivo (PGPE) têm salário inicial de R$ 6.255,90, chegando a R$ 9.728,38 no final da carreira.

“Os salários estão muito despadronizados. Todo mundo que faz uma atividade auxiliar tem uma remuneração diferente. Depende muito mais do órgão, do lugar que está, do que da atividade que você faz. E isso é uma injustiça muito grande”, diz Felipe Drumond. “Analistas que fazem trabalho em essência administrativa, que vão estar fazendo toda a parte do órgão, deveriam ter o mesmo salário. Mesmo que fossem carreiras específicas”, defende.

Além das diferenças de remuneração, a amplitude entre o salário inicial e o final também varia muito conforme o local de trabalho. Nas agências reguladoras, o salário de um analista técnico administrativo começa em R$ 15.050,25, chegando a R$ 21.325,15 no fim de carreira. Já um analista administrativo da Previc sai de iniciais R$ 14.583,49, atingindo remuneração máxima de R$ 20.664,03. O analista técnico administrativo do PGPE (Plano Geral de Cargos do Poder Executivo) tem a menor diferença entre o salário inicial (R$ 6.255,90) e final (R$ 9.728,38).

Caminho para a Reforma

O governo federal deverá dar nos próximos meses o pontapé inicial na reforma do sistema de carreiras. A ideia é editar uma portaria com diretrizes para definir e organizar as carreiras prioritárias, estabelecendo grupos de carreiras pela remuneração e levando em consideração aquelas equivalentes em termos de complexidade. Pela proposta em estudo, o tempo para o servidor atingir o teto salarial da carreira deverá ser estipulado em 20 anos. Hoje, dependendo da carreira, esse caminho é percorrido em apenas 13 anos. Também está em gestação no governo federal que o critério para a progressão não seja única e exclusivamente o tempo de serviço.

“É preciso redesenhar e reduzir a quantidade de carreiras no serviço público. Isso é o principal. É uma tarefa difícil, mas ela é fundamental”, diz Vera Monteiro. Ela sustenta que áreas centrais da administração pública federal, como arrecadação, planejamento, orçamento e área jurídica, que envolvem atividades transversais, comuns em diversos órgãos, tenham uma única carreira. “Hoje existem remunerações que são muito destoantes, muito discrepantes em várias carreiras, com atividades similares. E isso contribuiu para que você tenha uma administração pública disfuncional”, afirma a vice-presidente do Conselho da República.org.

Felipe Drumond considera o prazo de 20 anos para o servidor atingir o tipo salarial da carreira razoável. “A ideia é boa, mas não é o que o governo está sinalizando com carreiras mais altas. Elas é que são o grande problema e para elas é que isso tem que servir. Porque quem chega ao topo e ganha muito são algumas carreiras. Mas o governo não está praticando isso: acabaram de aprovar um aumento para a Receita, para delegados da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal”, diz o economista.

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