Resumo:
Como conciliar estabilidade institucional com a urgência por inovação no setor público? Este artigo apresenta o modelo do Estado neoweberiano e o conceito de estabilidade ágil como alternativas viáveis para renovar a gestão pública brasileira. Com base em autores como Bouckaert, Kattel e Mazzucato, os autores defendem uma administração que preserve valores democráticos e capacidade técnica, mas que também seja capaz de experimentar, aprender e se adaptar aos desafios contemporâneos. A proposta passa por redesenhar estruturas organizacionais, reformular concursos e cargos de direção, qualificar o controle e resgatar o ethos público como motor da transformação. Mais do que uma ruptura, o texto sugere um caminho incremental e enraizado na realidade institucional brasileira, mirando um Estado mais eficiente, confiável e comprometido com o interesse coletivo.
Índice:
Por que o Brasil precisa conciliar estabilidade institucional e inovação na gestão pública?
O que é estabilidade ágil e por que ela é essencial para o setor público
O modelo Neo-Weberiano como alternativa à Nova Gestão Pública
Como integrar estabilidade e inovação no serviço público brasileiro
Cinco eixos para transformar a administração pública no Brasil
Transformar com responsabilidade: caminhos para um Estado mais ágil, justo e legítimo
Por que o Brasil precisa conciliar estabilidade institucional e inovação na gestão pública?
O presente texto parte da constatação de que o Estado brasileiro enfrenta, hoje, o desafio de equilibrar duas exigências fundamentais: de um lado, preservar a estabilidade institucional, o respeito à legalidade e os princípios que sustentam o Estado democrático de direito; de outro, responder com agilidade às demandas sociais e às transformações cada vez mais aceleradas do ambiente econômico, político e tecnológico. Para dar conta dessa tensão, recuperam-se os conceitos de estabilidade ágil (Kattel et al, 2022) e Estado Neo-Weberiano (Bouckaert, 2023) como chaves interpretativas e orientadoras de um novo paradigma de gestão pública.
A ideia de estabilidade ágil combina dois vetores aparentemente contraditórios, mas que precisam conviver no setor público: a estabilidade institucional, garantida por burocracias profissionais, regras claras, planejamento de longo prazo e salvaguardas democráticas; e a agilidade, entendida como a capacidade do Estado de aprender, inovar, experimentar e adaptar-se rapidamente a novos desafios e oportunidades. Em vez de apostar em rupturas ou em modelos exclusivamente voltados à eficiência econômica, esta proposta busca articular continuidade e mudança por meio de arranjos organizacionais híbridos e capacidades estatais flexíveis, ancoradas em valores democrático-republicanos.
A tese central deste artigo é que os conceitos de Estado Neo-Weberiano (NWS) e estabilidade ágil, revistos à luz do contexto político-institucional brasileiro, podem oferecer uma alternativa promissora para a reconstrução das capacidades estatais no Brasil. O NWS permite a valorização da burocracia de mérito, o fortalecimento da capacidade administrativa e a articulação com mecanismos contemporâneos de governança, inovação e participação social. A estabilidade ágil, por sua vez, oferece a condição para que esse modelo se torne efetivo em contextos complexos e em constante transformação.
O objetivo do trabalho é, portanto, duplo. No plano teórico, propõe-se uma reformulação crítica dos paradigmas recentes de gestão pública à luz das particularidades do caso brasileiro, articulando os debates sobre o NWS com as noções de capacidades estatais dinâmicas, experimentalismo adaptativo e governança democrática. No plano prático, o texto busca oferecer orientações para a renovação da administração pública federal, a partir de cinco eixos estruturantes: redesenho organizacional, recrutamento e formação, cargos de direção, mecanismos de controle e inovação e fortalecimento do ethos público.
Reconhecendo as limitações políticas e institucionais do contexto brasileiro, o trabalho não propõe um modelo fechado ou prescritivo. Ao contrário, aposta em um caminho incremental de reformas orientadas por valores públicos, adaptadas à realidade nacional e apoiadas em experiências concretas que já vêm sendo implementadas, ainda que de forma fragmentada. O objetivo é contribuir para uma agenda de transformação do Estado capaz de combinar solidez institucional com a capacidade de enfrentar os desafios contemporâneos com inteligência, legitimidade e responsabilidade.
O que é estabilidade ágil e por que ela é essencial para o setor público
O conceito de estabilidade ágil (Kattel, Drechsler e Karo, 2022) busca equilibrar a necessidade de dinamismo e adaptação das organizações burocráticas às mudanças tecnológicas e socioeconômicas, sem comprometer a previsibilidade e a estabilidade necessárias para implementar políticas e entregar serviços públicos. A estabilidade ágil emerge da tensão entre inovação e continuidade, um dilema central enfrentado pelo setor público. As instituições governamentais devem aprender e adaptar-se continuamente, mas preservar uma estrutura robusta capaz de executar políticas públicas de forma coerente ao longo do tempo.
Para compreender melhor como a estabilidade ágil funciona, é preciso diferenciar os conceitos de capacidades dinâmicas e de capacidades estatais. Estas referem-se aos elementos estruturais das organizações burocráticas, como recursos financeiros, tecnológicos e humanos qualificados, sendo um conceito mais estático, relacionado à continuidade das funções governamentais. As capacidades dinâmicas, por sua vez, envolvem a habilidade das organizações públicas de reconfigurar, adaptar e transformar seus processos para responder a desafios emergentes. Em outros termos, é a capacidade de aprendizado organizacional, experimentação e inovação dentro do setor público. As capacidades estatais garantem estabilidade ao funcionamento do Estado. As capacidades dinâmicas permitem que o aparato administrativo do Estado evolua e se adapte em um ambiente de incerteza e mudanças rápidas.
A estabilidade ágil prevê estruturas organizacionais híbridas: unidades mais tradicionais que coexistem com espaços experimentais dedicados à inovação. Isso exige a combinação de capacidades estatais (manutenção de corpos burocráticos altamente qualificados com carreiras estáveis, além da adoção de mecanismos robustos de planejamento de longo prazo para garantir coerência nas políticas públicas) com habilidades de aprendizado e adaptação (criação de espaços para experimentação e aprendizado dentro das burocracias). A governança deve ser experimentalista, adotando ciclos iterativos de formulação e ajuste de políticas com base em evidências concretas e participação de múltiplos atores. Além disso, é fundamental equilibrar incentivos para inovação sem comprometer a accountability, garantindo que o setor público mantenha sua capacidade de prover serviços eficazes enquanto responde a desafios emergentes. Contudo, um desafio para implementar os princípios da estabilidade ágil no Brasil é a percepção sobre a legitimidade da experimentação estatal. Enquanto no setor privado a inovação é celebrada, no setor público, a experimentação frequentemente é vista como desperdício de recursos (Mazzucato, 2014). Isso se deve, em parte, ao discurso neoliberal que enfatiza a eficiência e a redução do papel do Estado, além dos rígidos mecanismos de controle, tornando mais difícil implementar estratégias que envolvam aprendizado organizacional e adaptação dinâmica. Essa resistência também se manifesta na dificuldade de equilibrar diferentes horizontes temporais. Políticos e gestores públicos frequentemente enfrentam pressões para gerar resultados de curto prazo, enquanto a construção de capacidades estatais e a implementação de inovações muitas vezes requerem um pensamento e investimentos de longo prazo.
Além disso, a estabilidade ágil exige um modelo de governança que integre os setores público e privado de maneira complementar. Isso significa que as burocracias de inovação não devem simplesmente replicar modelos de gestão do setor privado, mas sim desenvolver um ecossistema de inovação que integre atores públicos, privados e da sociedade civil para promover soluções de longo prazo para desafios complexos.
O modelo Neo-Weberiano como alternativa à Nova Gestão Pública
Já o modelo do Estado Neo-Weberiano (Bouckaert, 2023; Bouckaert e Pollitt, 2027) surge como uma resposta às limitações da Nova Gestão Pública (NGP) e às demandas contemporâneas por uma administração pública eficaz, democrática e resiliente. As crises globais do século XXI — como o colapso financeiro de 2008, o desastre de Fukushima em 2011 e, mais recentemente, a pandemia de Covid-19 — tornaram evidente que apenas os mecanismos de mercado e redes, valorizados pela NGP e pela Nova Governança Pública (NGP), são insuficientes para lidar com problemas complexos e de alta imprevisibilidade. Diante disso, o NWS propõe o fortalecimento das capacidades estatais e da coordenação governamental como condição para garantir bem-estar, segurança e crescimento sustentado.
Inspirado no tipo ideal weberiano de burocracia, o NWS reafirma os princípios do Estado de direito, da legalidade e da burocracia profissional como pilares de uma administração pública robusta. No entanto, atualiza essa base com práticas contemporâneas de gestão, como a transparência, a participação social e a orientação para resultados. O NWS apresenta-se como um modelo síntese que combina elementos da burocracia tradicional e ferramentas “positivas” dos demais modelos de gestão, como a participação, a transparência e a busca por desempenho. Para tanto propõe integrar mecanismos de Hierarquia, mercados e redes.
Assim, o NWS não propõe um retorno à burocracia rígida, mas sim um Estado que conduz mercados e redes a partir de valores democráticos e inclusivos (Bouckaert, 2023). A hierarquia, nesse contexto, não é entendida como imposição autoritária, mas como uma estrutura de liderança pública adaptativa, capaz de mobilizar recursos, articular parcerias e garantir a entrega de políticas públicas de maneira legítima e eficaz. A democracia, nesse modelo, não é apenas o pano de fundo, mas a força orientadora do processo decisório e de formulação de políticas.
Uma das inovações do NWS em relação aos modelos anteriores está na forma como concebe desempenho. Em vez de focar apenas no cumprimento de metas quantificáveis, o desempenho é entendido como a capacidade de gerar impacto social positivo, a partir de políticas públicas que melhoram a vida das pessoas. Isso exige novos métodos de avaliação. A participação social, nesse sentido, não é um adorno, mas um componente essencial da legitimidade e da efetividade do Estado.
Outro ponto central do modelo é a revalorização do ethos diferenciado e próprio do serviço público, distinto daquele prevalente no setor privado. O NWS concebe os servidores públicos como guardiões do Estado democrático e das instituições, incentivando uma atuação que combina respeito às normas com sensibilidade ao contexto, diálogo com diferentes atores e abertura à inovação.
Como integrar estabilidade e inovação no serviço público brasileiro
Em síntese, a estabilidade ágil e o modelo do Estado Neo-Weberiano (NWS) se complementam ao propor uma administração pública que concilie solidez institucional com capacidade de experimentação e adaptação. Enquanto a estabilidade ágil fornece as bases para integrar continuidade e inovação, o NWS oferece uma arquitetura normativa que articula hierarquia, mercado e redes com foco em entregas e valores democráticos.
Cinco eixos para transformar a administração pública no Brasil
A parte aplicada deste artigo estrutura-se em torno de cinco dimensões — organizações e experimentação, recrutamento, cargos de direção, controle e inovação, e ethos público. Elas foram selecionados por sua centralidade na construção de capacidades estatais compatíveis com o modelo do Estado Neo-Weberiano (NWS) e com o conceito de estabilidade ágil. Cada um desses eixos representa uma dimensão crítica em que se manifesta, na prática, a tensão entre estabilidade e agilidade: a necessidade de preservar estruturas administrativas previsíveis e profissionais, ao mesmo tempo em que se introduzem mecanismos de aprendizado, adaptação e inovação contínua. Ao abordar desde o desenho institucional até os valores que orientam a ação dos agentes públicos, os eixos propostos buscam integrar elementos clássicos da burocracia profissional com práticas contemporâneas de governança responsiva e experimentalista.
➽ 1. Redesenho organizacional: como adaptar estruturas públicas para desafios complexos
A adoção da estabilidade ágil na administração pública brasileira requer uma reorganização institucional que preserve a previsibilidade e a segurança jurídica sem abrir mão da capacidade de inovação e adaptação. A estrutura administrativa vigente, em grande parte baseada no Decreto-Lei nº 200/1967, já não responde de forma adequada às complexidades contemporâneas. A Constituição de 1988, ao uniformizar o tratamento jurídico das autarquias e fundações, reduziu a autonomia dessas entidades, aproximando-as da rigidez da administração direta. A Emenda Constitucional nº 19, por sua vez, introduziu novos formatos organizacionais, como as organizações sociais e agências executivas, priorizando a flexibilidade, mas muitas vezes enfraquecendo a estabilidade institucional e as capacidades estatais de longo prazo.
O Estado brasileiro atual possui grande fragmentação organizacional, decorrente da proliferação de entidades com desenhos institucionais variados, frequentemente criados sem coerência sistêmica. Isso gera ineficiências administrativas, eleva custos de transação e dificulta a coordenação entre os órgãos públicos. A ausência de um modelo claro de organização leva a um desequilíbrio entre inovação e estabilidade, dificultando a implementação de políticas públicas estratégicas.
Nesse cenário, devem-se repensar os arranjos organizacionais à luz do conceito de estabilidade ágil. Isso significa criar estruturas híbridas, mas com coerência sistêmica, combinando áreas responsáveis pela manutenção institucional com espaços dedicados à inovação, à experimentação e ao aprendizado ou diferentes tipos organizacionais, com organizações estáveis e previsíveis (do tipo “Camelo”), focadas em entrega de resultados (do tipo “leão”) e experimentalistas (do tipo “Criança”) (ver Kattel e Mazzucato, 2018). A administração pública precisa ser capaz de operar com flexibilidade sem comprometer sua capacidade de planejamento, regulação e prestação de serviços. Para isso, deve ser orientada por objetivos estratégicos de longo prazo, capazes de articular atores diversos em torno de soluções para desafios públicos complexos. A governança deve promover coesão institucional, garantir capacidade adaptativa e estimular ciclos contínuos de avaliação e aprimoramento, ancorados em evidências e orientados ao interesse coletivo.
➽ 2. Recrutamento e carreira: como atrair talentos e valorizar o servidor público
A burocracia neoweberiana depende de um sistema de recrutamento capaz de selecionar profissionais tecnicamente competentes e vocacionados para o serviço público. O recrutamento é uma dimensão estratégica da construção das capacidades estatais, pois define não apenas quem ingressa no Estado, mas também os valores e competências que estruturam a burocracia. No entanto, os atuais modelos de seleção, centrados em provas teóricas altamente conteudistas, não avaliam habilidades práticas, sensibilidade ética ou capacidade de resolução de problemas complexos em contextos reais. Isso resulta em quadros desmotivados ou desalinhados com as necessidades reais da gestão pública.
A ausência de planejamento na reposição de servidores compromete a continuidade administrativa, especialmente em áreas estratégicas. A fragmentação de cargos e carreiras, somada à ampliação de contratações temporárias e celetistas, intensifica a precarização do serviço público e dificulta a formação de um corpo estável e profissional. É necessário estabelecer critérios objetivos e transparentes para a definição dos regimes de contratação — estatutário, celetista ou temporário — com base nas exigências específicas de cada função. Funções que demandam continuidade, imparcialidade e responsabilidade institucional devem contar com vínculos estáveis; já aquelas de natureza transitória ou de apoio podem admitir maior flexibilidade. A adoção indiscriminada de vínculos flexíveis, sem justificativa técnica consistente e baseada apenas em argumentos fiscalistas, compromete o profissionalismo, enfraquece a capacidade institucional do Estado e aumenta sua vulnerabilidade a interferências político-partidárias.
Nesse sentido, é necessário repensar os concursos públicos, incorporando metodologias mais inovadoras, como avaliação por competências, estudos de caso e provas interdisciplinares. O Concurso Nacional Unificado (CNU) é um passo importante para esse redesenho. No entanto, sua eficácia dependerá da vinculação com uma estratégia nacional de planejamento da força de trabalho. O recrutamento e o desenvolvimento de competências devem estar inseridos em uma política de gestão de pessoas de longo prazo, que articule seleção, capacitação, avaliação e valorização profissional, com foco na missão pública e na responsividade estatal.
➽ 3. Gestores públicos como líderes da transformação: o novo papel dos cargos de direção
A consolidação de um modelo neoweberiano de Estado passa pela qualificação da ocupação dos cargos de direção, com base em critérios que combinem legitimidade política, capacidade de liderança e compromisso com o interesse público. A profissionalização da alta e média gestão pública é essencial para garantir que as decisões administrativas sejam tomadas de forma técnica, democrática e orientada para resultados. No modelo do Estado Neo-Weberiano, o gestor público não é apenas um executor de normas, mas um agente que interpreta, adapta e implementa políticas com sensibilidade ao contexto, dialogando com múltiplos atores e promovendo inovações dentro do aparato estatal.
Nesse sentido, é necessário redefinir os critérios de seleção e formação de lideranças públicas. O perfil ideal deve integrar competências técnicas — como conhecimento legal, domínio do setor de atuação e uso de dados —, competências políticas — como capacidade de negociação e articulação com diferentes níveis de governo — e competências relacionais — como escuta ativa, empatia e comunicação. O objetivo é construir uma burocracia dirigente capaz de liderar processos, coordenar equipes, tomar decisões estratégicas e gerar confiança social por meio da qualidade das entregas públicas.
Para tanto, é fundamental estruturar políticas de formação contínua, planos de carreira e incentivos institucionais que valorizem a inovação, a integridade e a entrega de resultados. A ocupação dos cargos comissionados deve se basear em critérios transparentes, com sistemas de responsabilização e accountability, além de “blindá-los” dos efeitos da instabilidade e da fragmentação do sistema partidário brasileiro, efeitos que são deletérios para quaisquer capacidades de planejamento que se queira fortalecer. Isso não significa eliminar a dimensão política da administração, mas estabelecer um equilíbrio funcional entre nomeações discricionárias e profissionais de carreira. O fortalecimento da gestão pública exige lideranças capacitadas, éticas e comprometidas, que atuem como pontes entre a estabilidade das instituições e a agilidade necessária para responder aos desafios da sociedade contemporânea.
➽ 4. Controle com confiança: como superar o medo e fomentar a inovação estatal
A construção de um Estado responsivo e inovador exige o redesenho dos sistemas de controle, de modo que eles passem a atuar como promotores do aprendizado e da confiança institucional, e não apenas como instâncias de punição. No Brasil, a tradição legalista e procedimental dos órgãos de controle, aliada ao fortalecimento recente de suas capacidades técnicas, resultou em uma assimetria em relação ao Executivo. Essa disparidade gera o chamado “apagão das canetas”, situação em que gestores evitam tomar decisões por medo de sanções, mesmo quando essas decisões são necessárias e legítimas.
Essa cultura de risco zero, combinada com interpretações rigorosas e muitas vezes divergentes por parte dos órgãos de controle, compromete a inovação e a experimentação na gestão pública. Estudos recentes mostram que o medo do controle reduz a proatividade dos servidores e aumenta sintomas de burnout, afetando diretamente a capacidade estatal de produzir soluções criativas e adaptativas.
Para superar essa disfunção, é necessário avançar em uma agenda de reforma dos sistemas de controle, com foco na prevenção, no diálogo e na indução de boas práticas. O modelo de estabilidade ágil requer mecanismos de controle que orientem e capacitem, em vez de apenas sancionar. Isso envolve o desenvolvimento de diretrizes claras, espaços institucionais de mediação, capacitação dos gestores sobre os parâmetros de controle e mecanismos estruturados de feedback entre controladores e executores. Um controle orientado à aprendizagem favorece a inovação, fortalece a confiança dos gestores e amplia a legitimidade das decisões administrativas. Em vez de antagonismo, é preciso promover uma cultura de colaboração entre controle e gestão, baseada na transparência, na responsabilidade compartilhada e no compromisso com a melhoria contínua das políticas públicas.
➽ 5. Éthos público e missão republicana: por que valores importam na administração
A construção de uma administração pública sólida, eficaz e democrática depende do fortalecimento de um ethos burocrático orientado por valores republicanos e compromissado com o interesse público. No modelo Neo-Weberiano, os servidores públicos não são meros cumpridores de regras, mas agentes responsáveis pela defesa do Estado de direito, pela universalização do acesso a direitos e pela garantia da imparcialidade e da legalidade na aplicação das políticas públicas.
Esse ethos envolve a adoção de uma ética profissional baseada em responsabilidade institucional, transparência, integridade e compromisso com os resultados. Ao contrário da visão reducionista que retrata os burocratas como maximizadores de interesses pessoais, o NWS resgata a vocação pública como traço distintivo da atuação no setor estatal. Essa motivação é fundamental para resistir a pressões políticas indevidas e proteger o Estado contra a captura por interesses particulares.
Para consolidar esse ethos, é preciso criar condições institucionais que favoreçam sua expressão. Isso inclui processos de recrutamento que identifiquem vocação pública, programas de formação ética e de capacitação permanente, e uma cultura organizacional que valorize a missão pública, o trabalho colaborativo e a busca por resultados socialmente relevantes. Também é necessário instituir mecanismos de avaliação que levem em conta não apenas a eficiência quantitativa, mas a qualidade das decisões, o impacto social das ações e o respeito aos princípios democráticos. A administração pública deve cultivar um espírito de serviço e reforçar continuamente a identidade profissional dos servidores como guardiões das instituições republicanas. Com isso, será possível avançar na construção de um Estado mais íntegro, confiável e legítimo, que responda de forma eficaz e ética às demandas da sociedade brasileira.
Transformar com responsabilidade: caminhos para um Estado mais ágil, justo e legítimo
A aplicação dos conceitos discutidos neste ensaio sugere que a transformação da administração pública brasileira deve conciliar estabilidade institucional com capacidade de adaptação, aprendizado e inovação, sem abrir mão de pilares como legalidade, impessoalidade e previsibilidade. Adotar esses princípios pode tornar a gestão pública mais eficiente, eficaz e socialmente legítima, especialmente em um contexto de desconfiança nas instituições e descrédito democrático.
Como toda proposta conceitual, este trabalho apresenta limitações. A adaptação das ideias ao contexto brasileiro enfrenta barreiras jurídicas, políticas e culturais relevantes. Para avançar, será necessário aprofundar o debate sobre sua viabilidade política e desenvolver instrumentos institucionais que permitam sua implementação sem comprometer os fundamentos do Estado democrático de direito. Há condições propícias para avançar nessa direção. A existência de uma burocracia técnica relativamente qualificada em alguns setores, a crescente digitalização dos serviços públicos e o surgimento de experiências de inovação na gestão pública indicam ilhas de estabilidade e capacidade adaptativa. Estes pontos de apoio podem ser mobilizados para implementar gradualmente os princípios aqui defendidos, desde que sejam desenvolvidos instrumentos institucionais que viabilizem sua aplicação sem comprometer a base institucional do Estado democrático de direito.
Referências bibliográficas
Bouckaert, G. (2023). The neo-Weberian state: From ideal type model to reality? In W. Drechsler & S. Whimster (Eds.), Max Weber Studies Special Issue: The Neo-Weberian State (Vol. 23.1).
Gomide, A., & Lotta, G. (2024). Building resilience, agility, and trust: The Neo-Weberian State as a referential model for Brazilian public administration. Journal of Policy Studies, 39(3), 45–55. https://doi.org/10.52372/jps39304
Kattel, R., Drechsler, W., & Karo, E. (2022). How to make an entrepreneurial state: Why innovation needs bureaucracy. Yale University Press.
Kattel, R., & Mazzucato, M. (2018). Mission-oriented innovation policy and dynamic capabilities in the public sector. Industrial and Corporate Change, 27(5), 787–801. https://doi.org/10.1093/icc/dty034Lotta, G., & Monteiro, V. (2024). Fenômeno do apagão das canetas. Fundação Tide Setubal.