Engrenagem e escuta sensível no sistema prisional

Publicado em: 17 de dezembro de 2024

Índice
Engrenagens que conectam: sistemas, pessoas e novas possibilidades
Engrenagem no experimento com a unidade prisional feminina
A escuta sensível e o mover da engrenagem
A importância de um diálogo atento: a escuta sensível

**Esta é a quarta nota de uma série em que relatamos a nossa experiência no projeto Residência em Capital Humano, promovido pela República.org. A proposta foi levar arte e reflexões a agentes penitenciárias da Unidade Prisional Feminina.[2] [3]

 “Ninguém é uma ilha completa em si mesma; todo homem é um fragmento do continente, uma parte do todo; se o mar arrebata um penhasco, é a Espanha quem sofre a perda. O mesmo se se tratar de um promontório, de uma fazenda de seus amigos ou da sua própria, a morte de um homem me diminui porque estou inserido na humanidade, e por isso nunca me pergunte por quem os sinos dobram: dobram por você.” John Donne[1]

Engrenagem, imagens e metáforas

Um tema bastante constante que emergiu em nossos workshops foi o de engrenagem. Isso sugere partes que se comunicam e se influenciam de maneira recíproca, assim como os sistemas social, educacional, familiar e organizacional  de uma determinada época, formando, assim, o desenho imaginário de uma engrenagem.

Engrenagens que conectam: sistemas, pessoas e novas possibilidades

As experiências no mundo são abordadas por nós via metáforas – imagens e conteúdos que a elas se referem de forma não diretamente percebida, tal como a poesia e as iconografias. A Idade Média, correspondendo à época das trevas, foi a era do obscurantismo, o que nos leva a concebê-la como um momento fechado, escuro, uma prisão. Já o Renascimento se apresenta como algo que convida a luz do sol a entrar. Quando essas imagens – metáforas – se renovam em função de novos olhares e significados que fazem parte de nosso cotidiano, novas metáforas são criadas. Portanto, o trabalho de reflexão, de relembrar feitos positivos e abrir campos imaginários para acolher o futuro e as novas cenas que desejamos que se concretizem, promove espaços capazes de acolher novas metáforas.

Essas novas metáforas são geradoras de novos processos e movimentos que, por sua vez, provocarão novas formas de intervenção grupal e maneiras de lidar com os conflitos interpessoais, intergrupais e inter-organizacionais.Se a nossa cultura precisa adquirir novos paradigmas, pressupõe-se que a maneira de pensar, sentir e agir com o outro também precisa passar por uma reformulação. Referimo-nos aos vínculos de outra qualidade, que implicam um novo compromisso, uma reciprocidade genuína e, portanto, a construção de um novo corpo de conhecimentos sobre si próprio, sobre as relações de pares, sobre o mundo externo e o interno, sobre o sentido e a qualidade da vida em todos os âmbitos. Enfim, sobre a produção, enquanto coletividade e gestão socioambiental (Domingues, 2011)[2].

Engrenagem no experimento com a unidade prisional feminina[4] 

Durante o experimento realizado no âmbito da Residência em Capital Humano, promovida pela República.Org, buscamos fomentar incentivos para o engajamento das inspetoras penitenciárias em uma unidade do sistema penitenciário feminino no Rio de Janeiro. Foi possível observar, por meio das oficinas realizadas com as profissionais,  que o achado mais importante do experimento era a construção da ideia de engrenagem.

O conceito de “engrenagem”, desenvolvido na Cadeia Pública Joaquim Ferreira, baseou-se nos seguintes pontos:

  • 1. Fortalecimento da gestão: Através da escuta ativa e de reuniões de trabalho com a diretora e a subdiretora.
  • 2. Realização de workshops: Com o objetivo de promover diálogo, solidariedade, envolvimento com a arte, compreensão dos papeis das diferentes profissionais e exercício de liderança inspiradora, entre outros fatores.
  • 3. Redução da distância entre plantonistas e profissionais administrativos: Implementando o uso de uniformes para todas as profissionais da unidade. No primeiro workshop, essa sugestão foi dada por uma das inspetoras. Com a identificação de uma divisão entre plantonistas e o pessoal administrativo, o uso uniforme por todas (já que as administrativas não o usavam) ajudaria a criar isonomia e identidade, além de aumentar a sensação de segurança, pois as internas veriam mais inspetoras uniformizadas.
  • 4. Momentos de bem-estar para as profissionais: Com a realização do “Dia da Beleza” em parceria com a igreja que presta serviços na unidade.
  • 5. Melhoria e embelezamento do espaço físico: Por meio da reforma inicial das guaritas.

De acordo com essas informações, elaboramos, à época, um diagrama que ilustra as ações realizadas no experimento e que compõe a engrenagem construída:

A escuta sensível e o mover da engrenagem

A ideia de engrenagem que surgiu no experimento foi composta por diferentes atividades e ações. No entanto, vale destacar o papel da escuta no encaixe das diferentes peças dessa engrenagem. É possível extrair um importante aprendizado do experimento como um todo, que se resume na frase: “dá para fazer uma grande diferença a partir de coisas relativamente ‘pequenas’ e simples no campo do engajamento e motivação de profissionais do setor público”. Para dar certo, no entanto, é fundamental que todo o trabalho e a experiência, por mais simples que possam ser, sejam cuidadosamente pensados e recheados de escutas. É importante conhecer o que a literatura nos conta sobre determinado setor profissional, mas é fundamental escutar as/os profissionais com as quais se vai trabalhar. A bibliografia é um excelente guia inicial, mas a escuta, tanto por meio de coleta de informações de maneira mais indireta (questionários, por exemplo), como diretamente, junto às profissionais, além de dar subsídios mais reais em relação ao grupo que se vai trabalhar, acaba também sendo parte do processo. Ouvir a/o profissional com respeito e possibilitar que se expresse e troque ideias e opiniões de forma livre já é parte do processo de motivação e engajamento.

Uma atividade de destaque  foi o workshop inicial, no qual colocamos as profissionais para se ouvirem e terem um momento de troca. Nesse processo, foram abordados aspectos menos racionais, utilizando arte, contação de estórias e técnicas de respiração. Para profissionais que vivem em situação de tensão e estresse permanente, como as inspetoras penitenciárias, esses recursos foram fundamentais.

A importância de um diálogo atento: a escuta sensível

Diante dessas reflexões, podemos realçar a importância de um diálogo atento, como diria Humberto Maturana. Isso nos lembra que, ao escutar, se dá também uma abertura para receber, compartilhar e transformar o cenário interno a partir do que escutamos.

Necessário se faz o desenvolvimento da capacidade de escuta sensível (Trocmé-Fabre, 2006)[3]. Escuta sensível é escutar sem que haja uma comparação, ainda que interna, com referenciais pessoais prévios, é estar aberto para perceber a constelação de afetos, imagens e cognições do outro. Como ressalta Barbier, 2007[4]: escuta sensível é “compreender do interior” as atitudes e os comportamentos, o sistema tanto  de ideias quanto valores, símbolos e mitos que o outro nos apresenta.  Esse escutar colabora para o treino de observar cuidadosamente uma experiência momento a momento, enquanto ela acontece: é a presença que refina nossa sensibilidade para o estar aqui e agora.

Assim, estamos diante do que Pichon-Rivière[5] identifica como  vínculo e, segundo ele, é o eixo norteador das relações. Por vínculo, entende-se o processo de comunicação e aprendizagem, que ocorre quando a pessoa, ao apreender um novo conteúdo (seja conhecimento através de um livro, no contato com um professor, uma autoridade, uma entrevista, enfim, com alguém significativo) tem a possibilidade de transformá-lo e também de modificar a si mesmo.

Considerando as atividades realizadas no âmbito do experimento, é possível identificar que a escuta sensível realizada pela diretora da unidade, principal liderança trabalhada no experimento, lhe possibilitou tomar medidas que fortaleceram o vínculo com as inspetoras e, assim, a experiência de transformação e aprendizados mútuos, por parte da direção da unidade, assim como das próprias inspetoras, permitindo que vivenciassem o engajamento.

Não há respostas e nem certezas absolutas em relação ao experimento realizado. Mas novas questões se abrem. Ao aplicar e ampliar a ideia de engrenagem, com   partes interatuantes e interdependentes no sistema  prisional, por meio do diálogo atento, do vínculo e das as metáforas que nos circundam, não se abre a possibilidade para a  geração de novas metáforas/imagens e, portanto, de um futuro com mais qualidade de vida, particularmente no sistema prisional?

Referências Bibliográficas

1 DONNE, John. Meditação XVII. In Devotions Upon Emergent Occasions, 1624.
2 DOMINGUES, Ideli. Uma nova consciência nos negócios, empresas em benefício do mundo. São Paulo: Aquariana, 2011.
3 TROCMÉ- FABRÉ, Hélène. A arvoredo saber aprender. São Paulo:Triom, 2004.
4 Barbier, R. O educador como quem passasentido. Congresso Internacional de Lucarno, Suiça. CIRET/UNESCO, 1997. In: Formação Integrada para a Sustentabilidade –FIS. Experiência Inter e transdisciplinar em Escola de Negócios. Mello, Maria F.; Domingues, Ideli; Galucci, Erica. São Paulo: Programa de Gestão Pública e Cidadania – PGPC, 2014.
5 Pichon-Rivière, E. El processo grupal. Ediciones Nueva Visión: Buenos Aires, 1978.

Ideli Domingues: Psicóloga, doutora em psicologia social (USP), especialista em grupos, sócia fundadora do Instituto Pichon-Rivière de Psicologia Social de São Paulo, focado na formação de facilitadores de grupos, com publicações na área de liderança, ex- professora de psicologia e equipes de alta performance da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo –FGVSP, arteterapeuta, contadora de histórias, terapeuta somática sistêmica, colaboradora do Conversas de Vida- Centro de Promoção de Esperança e Prevenção ao Suicídio do Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental- CAISM Vila Mariana, da UNIFESP-SPDM.

Carolina Ricardo: É diretora-executiva do Instituto Sou da Paz. Advogada e Socióloga. Mestre em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Foi assessora de projetos no Instituto São Paulo Contra a Violência, consultora do Banco Mundial e do BID em temas de segurança pública e prevenção da violência. Foi fellow no programa Draper Hills Summer Fellows oferecido pelo Center on Development, Democracy and the Rule of Law da Universidade de Stanford, Califórnia.

Ana Christina Faulhaber: Mestranda em Ciências Sociais no Departamento de Estudos Latinos Americanos - Universidade Nacional de Brasília - ELA/UNB, especialista em: Contabilidade Aplicada ao Setor Público (2023), Gestão do Sistema Prisional (2020), Direito Penal e Criminal (2012) e Políticas e Gestão de Segurança Pública (2009). Graduada em Direito (2010) e Educação Física (2003). Inspetora de Polícia Penal há 19 anos, 14 anos de experiência em unidades prisionais femininas, 06 anos Diretora da Unidade Materno Infantil, SEAP/RJ. Atualmente mobilizada na Coordenação Nacional de Atenção às Mulheres e Grupos Vulneráveis da SEANPPEN - Secretaria Nacional de Políticas Penais.

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