Resumo:
Este texto é o 4º de uma série que narra a experiência da Residência em Capital Humano, aplicada em caráter piloto na Cadeia Pública Joaquim Ferreira de Souza, que custodiava mulheres privadas de liberdade no Rio de Janeiro entre 2018 e 2019. Nele, discutimos as forças e as vulnerabilidades das lideranças, em uma análise que revela como a instabilidade política e as mudanças administrativas impactam a gestão prisional, a motivação de servidores e a continuidade de projetos. Destacam-se a importância da confiança, do diálogo estratégico e da supervisão contínua para fortalecer equipes e minimizar o desgaste psíquico. O artigo se baseia em referências como Kim Scott e Christophe Dejours para discutir a liderança no serviço público e a necessidade de estratégias eficazes para lidar com desafios institucionais e garantir a resiliência organizacional.
Índice
Consequências da instabilidade no setor público e a descontinuidade na administração pública
Forças e vulnerabilidades das lideranças no setor prisional
O diálogo como aliado do atingimento de metas
Imagine-se caminhando por uma trilha montanhosa. você se depara com uma pessoa sendo esmagada por uma enorme pedra em seu peito. A resposta empática seria sentir a mesma sensação asfixiante, deixando você incapaz de prestar ajuda, e ele, desamparado. A resposta compassiva seria verificar que a pessoa estava sofrendo e fazer todo o possível para remover a pedra. E em outras palavras, compaixão é empatia e ação.
Kim Scott ao ler o livro Arte da Felicidade, de Dalai Lama
Consequências da instabilidade no setor público e a descontinuidade na administração pública
Durante a realização do experimento, ocorreu um imprevisto importante: o Subsecretário de Gestão Operacional foi exonerado, o que ocasionou também a exoneração da coordenadora da COFEMCI. Essas mudanças ocasionaram uma situação de incerteza que afetou diretamente a gestão da Cadeia Pública Joaquim Ferreira de Souza, uma vez que a então diretora da unidade passou a estar em risco de ser exonerada também.
Essa instabilidade poderia ter atingido o experimento, por exemplo, gerando sua interrupção e descontinuidade. Do ponto de vista formal, contudo, a realização do experimento estava bem amarrada, por ter sido submetida previamente aos trâmites legais de autorização do gestor da pasta.
É importante considerar que cada eleição, seja municipal, estadual ou federal, pode ocasionar descontinuidades administrativas no setor público, afetando as atividades, causando tensão das equipes envolvidas e até mesmo desmotivação do servidor público, pois essas trocas pressupõem interrupções de ações, projetos, prioridades e metas, podendo ser até mesmo anulados. Nesse sentido o IPEA (2020) no livro “Implementação de políticas e atuação de gestores públicos”, ressaltou que:
“A cada mudança de governo, entram em colapso as estratégias adotadas em governos anteriores, mesmo que tenham sido exitosas; desloca-se a força de trabalho e entram em cena outros atores, muitas vezes desconhecedores das políticas públicas. Após cada pleito eleitoral, seja municipal ou das outras esferas de governo, a renovação das gestões acaba se traduzindo em interrupções e recomeços ou em redução no ritmo dos processos.”
Dessa forma, durante o experimento, tivemos a oportunidade de vivenciar os impactos ocasionados por essas trocas, conhecendo mais a fundo as vulnerabilidades e forças que emergem nas lideranças quando essas situações acontecem e que se configuram como desafios constantes enfrentados pela liderança no serviço público.
Forças e vulnerabilidades das lideranças no setor prisional
Há diversas dimensões que compõem a análise sobre forças e vulnerabilidades de lideranças em diferentes contextos e grupos: cabe a quem ocupa o papel de liderança compreender o percurso do grupo e seus integrantes na relação com o seu fazer (tarefa), e não de integrantes isolados. São dinâmicas diferentes. Acrescente-se a isso as forças, muitas vezes ambíguas, e os interesses divergentes daqueles que deveriam ser próprios da instituição.
É preciso que o líder instituído, além dessa leitura que inclui uma dinâmica visível, explícita, inclua a dinâmica invisível, ou seja, implícita, na qual se apresentam conteúdos conhecidos pelas pessoas que compõem o grupo, mas não são ditos. Há, também, outros que são desconhecidos aos próprios integrantes, os chamados conteúdos inconscientes. Como ler tudo isso? O líder pode ter essa leitura mais refinada ao perceber seu próprio corpo como um sensor, isto é, ao reconhecer o que as falas e o grupo como um todo provocaram no seu corpo: leveza, peso, tensão e abertura, por exemplo. Dito de outra maneira, nesse papel de liderança, é imprescindível que haja uma observação ativa e criativa (Domingues; Gayotto, 1995), ou seja, que ele também esteja atento ao que ocorre internamente, mobilizado pelos acontecimentos gerados na dimensão externa a ele.
Kim Scott (2021), ex-executiva do Google e Apple, sugere que é relacionamento de confiança a ser estabelecido com os subordinados que constitui um alicerce do progresso da liderança. A sinceridade compassiva une coração (importar-se pessoalmente) e mente (desafiar diretamente) (Scott, 2021, p. xix). Por meio da confiança, pode-se conhecer os sonhos de cada um dos componentes do grupo e ajudá-los a realizar seus próprios sonhos via atuação profissional.
Isso se mostrou nos questionários e workshops que identificavam o vínculo com qualidade como um elemento essencial para levar o trabalho avante e suportar os desafios da instituição prisional. No entanto, surge aqui uma vulnerabilidade da liderança: se ela não tem uma leitura de seus próprios processos, se ela nunca se aprofundou para conhecer a si mesma, terá dificuldade para discriminar o que é seu, o que pertence à sua história, daquilo que pertence ao grupo, aos seus subordinados ou ao contexto institucional. Isso, como vimos, pode comprometer a leitura do percurso do grupo que lidera. Afinal, trata-se de uma instituição que, como nos disse um dos guardas na recepção, “é um barril de pólvora que pode estourar a qualquer momento”. Como você, leitor, imagina que é viver com o perigo constantemente?
Christophe Dejours (2017) relata como o sofrimento gera estratégias defensivas coletivas, no sentido de tornar mais suportável o viver diante da periculosidade e do profundo desgaste psíquico e físico dos trabalhadores. Apresentam-se dois movimentos incessantes: a busca do prazer, por um lado, e, por outro, o evitamento do desprazer perante o trabalho e suas exigências. Este, que poderia ser uma fonte de prazer, ainda que sublimado, passa a provocar sofrimento.
O autor sugere que essas dificuldades poderiam ser colocadas no que denominou de “espaço público”, como um campo protegido onde se poderia abrir um diálogo para explorar as dificuldades do dia a dia. O que é sugerido na Inglaterra, como um espaço de supervisão diária de alguns minutos para explorar os acontecimentos do cotidiano. Isso permitiria o reconhecimento da solidão, porém com o vínculo e o reconhecimento de temas comuns, haveria possibilidade de fortalecer os trabalhadores para o enfrentamento dos desafios presentes e minorar estados de adoecimento, advindos da organização do trabalho.
O diálogo como aliado do atingimento de metas
O diálogo entre a diretora e sua equipe, na nossa percepção, fortaleceu as inspetoras, no sentido de serem vistas e, desse modo, decrescerem a invisibilidade que vivenciavam fora da instituição e até mesmo dentro. Nesse sentido, nos pareceu que o diálogo, se aliado a uma estratégia de liderança, pode contribuir para o sucesso das metas planejadas, aparecendo também como fator motivador e fortalecedor da equipe na troca de gestão.
Ficou muito claro o papel da liderança e de como o líder inspirador, ao ter coerência com seus valores e gentileza no trato com seus funcionários, gera uma coesão muito fortalecida. No entanto, o peso de decisões de uma hierarquia superior que parece não ter considerado – ou não demonstrou considerar – as consequências para a saúde dos trabalhadores envolvidos pode acentuar a vulnerabilidade das lideranças e seus liderados, que se veem impotentes e sem voz. As rupturas repentinas provocam sensações de estar à mercê, ficar sem chão e, portanto, inviabilizar processos motivacionais e o fortalecimento de vínculos. Mas, afinal, não é o capital humano que gera a possibilidade de continuidade das instituições? Como ele é visto? Como ele é “cuidado”?
A instituição prisional enfrenta feridas sociais, e seus agentes também têm suas feridas. Como elas são incluídas, reconhecidas, e quais estratégias dialógicas e comportamentais fazem parte da continuidade administrativa no setor público?
Os gestores públicos não seriam mais eficientes tendo uma linha mais permanente de atuação, sabendo mais claramente sobre metas a atingir e sobre as intenções voltadas ao objetivo da instituição prisional? É preciso garantir linhas de atuação de forma segura aos seus agentes prisionais em diferentes níveis, de modo que possam cumprir o dever de promover segurança à sociedade ao mesmo tempo que contribuem para a ressocialização das pessoas que cometem crimes.
Referência bibliográfica
Implementação de políticas e atuação de gestores públicos : experiências recentes das políticas de redução das desigualdades / organizadoras: Janine Mello… [et al.] – Brasília: Ipea, 2020.
DOMINGUES, Ideli; GAYOTTO, Maria Leonor Cunha. Liderança aprenda a mudar em grupo. Editora Vozes, 1995.
SCOTT, Kim. Empatia assertiva. Como ser um líder incisivo sem perder a humanidade. Rio de Janeiro. Alta Books, 2021.
DEJOURS, C. Psicodinâmica do trabalho: casos clínicos. Porto Alegre: Dublinense, 2017.