Liderança no sistema prisional: desafios, vulnerabilidades e estratégias para uma gestão efetiva

Publicado em: 1 de abril de 2025

Índice
Consequências da instabilidade no setor público e a descontinuidade na administração pública
Forças e vulnerabilidades das lideranças no setor prisional
O diálogo como aliado do atingimento de metas

Imagine-se caminhando por uma trilha montanhosa. você se depara com uma pessoa sendo esmagada por uma enorme pedra em seu peito. A resposta empática seria sentir a mesma sensação asfixiante, deixando você incapaz de prestar ajuda, e ele, desamparado. A resposta compassiva seria verificar que a pessoa estava sofrendo e fazer todo o possível para remover a pedra. E em outras palavras, compaixão é empatia e ação.
Kim Scott ao ler o livro Arte da Felicidade, de Dalai Lama

A Cadeia Pública Joaquim Ferreira de Souza (SEAP-JF), era subordinada à Coordenação das Unidades Prisionais Femininas e Cidadania LGBTI (COFEMCI), cuja coordenação era exercida por uma das autoras do presente texto, à época, o que facilitou a entrada e ambientação das residentes na unidade prisional, bem como a realização do experimento. A COFEMCI, por sua vez, era subordinada à Subsecretaria de Gestão Operacional, que era uma das subsecretarias sob gestão da Secretaria de Administração Penitenciária do estado do Rio de Janeiro (SEAP-RJ).

Consequências da instabilidade no setor público e a descontinuidade na administração pública

Durante a realização do experimento, ocorreu um imprevisto importante: o Subsecretário de Gestão Operacional foi exonerado, o que ocasionou também a exoneração da coordenadora da COFEMCI. Essas mudanças ocasionaram uma situação de incerteza que afetou diretamente a gestão da Cadeia Pública Joaquim Ferreira de Souza, uma vez que a então diretora da unidade passou a estar em risco de ser exonerada também.

Essa instabilidade poderia ter atingido o experimento, por exemplo, gerando sua interrupção e descontinuidade. Do ponto de vista formal, contudo, a realização do experimento estava bem amarrada, por ter sido submetida previamente aos trâmites legais de autorização do gestor da pasta.

É importante considerar que cada eleição, seja municipal, estadual ou federal, pode ocasionar descontinuidades administrativas no setor público, afetando as atividades, causando tensão das equipes envolvidas e até mesmo desmotivação do servidor público, pois essas trocas pressupõem interrupções de ações, projetos, prioridades e metas, podendo ser até mesmo anulados. Nesse sentido o IPEA (2020) no livro “Implementação de políticas e atuação de gestores públicos”, ressaltou que:

A cada mudança de governo, entram em colapso as estratégias adotadas em governos anteriores, mesmo que tenham sido exitosas; desloca-se a força de trabalho e entram em cena outros atores, muitas vezes desconhecedores das políticas públicas. Após cada pleito eleitoral, seja municipal ou das outras esferas de governo, a renovação das gestões acaba se traduzindo em interrupções e recomeços ou em redução no ritmo dos processos.

Dessa forma, durante o experimento, tivemos a oportunidade de vivenciar os impactos ocasionados por essas trocas, conhecendo mais a fundo as vulnerabilidades e forças que emergem nas lideranças quando essas situações acontecem e que se configuram como desafios constantes enfrentados pela liderança no serviço público.

Forças e vulnerabilidades das lideranças no setor prisional

diversas dimensões que compõem a análise sobre forças e vulnerabilidades de lideranças em diferentes contextos e grupos: cabe a quem ocupa o papel de liderança compreender o percurso do grupo e seus integrantes na relação com o seu fazer (tarefa), e não de integrantes isolados. São dinâmicas diferentes. Acrescente-se a isso as forças, muitas vezes ambíguas, e os interesses divergentes daqueles que deveriam ser próprios da instituição.

É preciso que o líder instituído, além dessa leitura que inclui uma dinâmica visível, explícita, inclua a dinâmica invisível, ou seja, implícita, na qual se apresentam conteúdos conhecidos pelas pessoas que compõem o grupo, mas não são ditos. Há, também, outros que são desconhecidos aos próprios integrantes, os chamados conteúdos inconscientes. Como ler tudo isso? O líder pode ter essa leitura mais refinada ao perceber seu próprio corpo como um sensor, isto é, ao reconhecer o que as falas e o grupo como um todo provocaram no seu corpo: leveza, peso, tensão e abertura, por exemplo. Dito de outra maneira, nesse papel de liderança, é imprescindível que haja uma observação ativa e criativa (Domingues; Gayotto, 1995), ou seja, que ele também esteja atento ao que ocorre internamente, mobilizado pelos acontecimentos gerados na dimensão externa a ele.

Kim Scott (2021), ex-executiva do Google e Apple, sugere que é relacionamento de confiança a ser estabelecido com os subordinados que constitui um alicerce do progresso da liderança. A sinceridade compassiva une coração (importar-se pessoalmente) e mente (desafiar diretamente) (Scott, 2021, p. xix). Por meio da confiança, pode-se conhecer os sonhos de cada um dos componentes do grupo e ajudá-los a realizar seus próprios sonhos via atuação profissional.

Isso se mostrou nos questionários e workshops que identificavam o vínculo com qualidade como um elemento essencial para levar o trabalho avante e suportar os desafios da instituição prisional. No entanto, surge aqui uma vulnerabilidade da liderança: se ela não tem uma leitura de seus próprios processos, se ela nunca se aprofundou para conhecer a si mesma, terá dificuldade para discriminar o que é seu, o que pertence à sua história, daquilo que pertence ao grupo, aos seus subordinados ou ao contexto institucional. Isso, como vimos, pode comprometer a leitura do percurso do grupo que lidera. Afinal, trata-se de uma instituição que, como nos disse um dos guardas na recepção, “é um barril de pólvora que pode estourar a qualquer momento”. Como você, leitor, imagina que é viver com o perigo constantemente?

Christophe Dejours (2017) relata como o sofrimento gera estratégias defensivas coletivas, no sentido de tornar mais suportável o viver diante da periculosidade e do profundo desgaste psíquico e físico dos trabalhadores. Apresentam-se dois movimentos incessantes: a busca do prazer, por um lado, e, por outro, o evitamento do desprazer perante o trabalho e suas exigências. Este, que poderia ser uma fonte de prazer, ainda que sublimado, passa a provocar sofrimento.

O autor sugere que essas dificuldades poderiam ser colocadas no que denominou de “espaço público”, como um campo protegido onde se poderia abrir um diálogo para explorar as dificuldades do dia a dia. O que é sugerido na Inglaterra, como um espaço de supervisão diária de alguns minutos para explorar os acontecimentos do cotidiano. Isso permitiria o reconhecimento da solidão, porém com o vínculo e o reconhecimento de temas comuns, haveria possibilidade de fortalecer os trabalhadores para o enfrentamento dos desafios presentes e minorar estados de adoecimento, advindos da organização do trabalho.

O diálogo como aliado do atingimento de metas

O diálogo entre a diretora e sua equipe, na nossa percepção, fortaleceu as inspetoras, no sentido de serem vistas e, desse modo, decrescerem a invisibilidade que vivenciavam fora da instituição e até mesmo dentro. Nesse sentido, nos pareceu que o diálogo, se aliado a uma estratégia de liderança, pode contribuir para o sucesso das metas planejadas, aparecendo também como fator motivador e fortalecedor da equipe na troca de gestão

Ficou muito claro o papel da liderança e de como o líder inspirador, ao ter coerência com seus valores e gentileza no trato com seus funcionários, gera uma coesão muito fortalecida. No entanto, o peso de decisões de uma hierarquia superior que parece não ter considerado – ou não demonstrou considerar – as consequências para a saúde dos trabalhadores envolvidos pode acentuar a vulnerabilidade das lideranças e seus liderados, que se veem impotentes e sem voz.  As rupturas repentinas provocam sensações de estar à mercê, ficar sem chão e, portanto, inviabilizar processos motivacionais e o fortalecimento de vínculos. Mas, afinal, não é o capital humano que gera a possibilidade de continuidade das instituições? Como ele é visto? Como ele é “cuidado”?

A instituição prisional enfrenta feridas sociais, e seus agentes também têm suas feridas. Como elas são incluídas, reconhecidas, e quais estratégias dialógicas e comportamentais fazem parte da continuidade administrativa no setor público?

Os gestores públicos não seriam mais eficientes tendo uma linha mais permanente de atuação, sabendo mais claramente sobre metas a atingir e sobre as intenções voltadas ao objetivo da instituição prisional? É preciso garantir linhas de atuação de forma segura aos seus agentes prisionais em diferentes níveis, de modo que possam cumprir o dever de promover segurança à sociedade ao mesmo tempo que contribuem para a ressocialização das pessoas que cometem crimes.

Referência bibliográfica

Implementação de políticas e atuação de gestores públicos : experiências recentes das políticas de redução das desigualdades / organizadoras: Janine Mello… [et al.] – Brasília: Ipea, 2020.

DOMINGUES, Ideli; GAYOTTO, Maria Leonor Cunha. Liderança aprenda a mudar em grupo. Editora Vozes, 1995.

SCOTT, Kim. Empatia assertiva. Como ser um líder incisivo sem perder a humanidade. Rio de Janeiro. Alta Books, 2021.

DEJOURS, C. Psicodinâmica do trabalho: casos clínicos. Porto Alegre: Dublinense, 2017. 

Ana Christina Faulhaber: é inspetora de polícia penal, doutoranda em Sociologia (PPGS/UFF), mestre em Ciências Sociais (ELA/UNB), e especialista em: Contabilidade Aplicada ao Setor Público, Gestão do Sistema Prisional, Direito Penal e Criminal e Políticas e Gestão de Segurança Pública. É graduada em Direito e Educação Física. Atua a vinte e um anos no sistema prisional, com quatorze anos de experiência em unidades prisionais femininas, destes, seis anos como Diretora da Unidade Materno Infantil, SEAP/RJ. Foi a primeira Coordenadora da COFEMCI, também atuou como Diretora Adjunta da antiga Escola de Gestão Penitenciária. Permaneceu durante três anos e meio mobilizada na Secretaria Nacional de Políticas Penais (SEANPPEN), atuando com políticas penais e atualmente faz parte da equipe de apoio técnico do Museu Penitenciário do estado do Rio de Janeiro.

Carolina Ricardo: É diretora-executiva do Instituto Sou da Paz. Advogada e Socióloga. Mestre em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Foi assessora de projetos no Instituto São Paulo Contra a Violência, consultora do Banco Mundial e do BID em temas de segurança pública e prevenção da violência. Foi fellow no programa Draper Hills Summer Fellows oferecido pelo Center on Development, Democracy and the Rule of Law da Universidade de Stanford, Califórnia.

Ideli Domingues: Psicóloga, doutora em psicologia social (USP), especialista em grupos, sócia fundadora do Instituto Pichon-Rivière de Psicologia Social de São Paulo, focado na formação de facilitadores de grupos, com publicações na área de liderança, ex- professora de psicologia e equipes de alta performance da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo –FGVSP, arteterapeuta, contadora de histórias, terapeuta somática sistêmica, colaboradora do Conversas de Vida- Centro de Promoção de Esperança e Prevenção ao Suicídio do Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental- CAISM Vila Mariana, da UNIFESP-SPDM.

A nota é de responsabilidade dos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais eles estão vinculados.

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