Resumo:
No sistema penitenciário brasileiro foi declarado “estado de coisas inconstitucional” pelo STF (ADPF 347/2023) devido a violações massivas de direitos fundamentais, como superlotação, falta de higiene e violência. Este artigo analisa as raízes do problema, vinculando-o à “incompetência habilidosa” (Argyris) e à “banalização do mal” (Arendt), que perpetuam ciclos de gestão ineficazes e desumanização. Discutimos o Plano Pena Justa — estratégia nacional para reforma prisional — e como a negação coletiva e a clivagem ética (Dejours) reforçam a crise. Qual o papel da sociedade na mudança? Leia e reflita sobre essa urgência humanitária.
Índice:
A incompetência habilidosa
Banalização do mal no cotidiano
Atualmente, está comprovado, mediante a sentença de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 3471, proferida em outubro do ano de 2023, que há um estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário brasileiro. Isso significa que as prisões do Brasil violam de forma massiva os direitos fundamentais das pessoas privadas de liberdade.
Durante o julgamento (STF, 2023)2 foi detectado que:
“Entre os fatos que exemplificam o tratamento desumano dado aos presos, estão celas superlotadas e imundas, falta de água e de materiais de higiene básicos, proliferação de doenças, mulheres dando à luz nas próprias penitenciárias, agressões e estupros, bem como a ausência de oportunidades de estudo e trabalho.”
Para superar essa conjuntura, o egrégio tribunal determinou que diversas autoridades, instituições e a comunidade devem agir em conjunto, atuando de forma cooperativa. Tendo a União, os estados e o Distrito Federal, por meio dos seus órgãos executivos, que agir em conjunto com o Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Conselho Nacional de Justiça (DMF/CNJ) e com os Grupos de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário dos Tribunais de Justiça dos entes federativos para elaborar planos a serem submetidos à homologação do Supremo Tribunal Federal.
O plano construído pela União (por meio da Secretaria Nacional de Políticas Penais), juntamente ao DMF/CNJ, denominou-se Plano Pena Justa e já foi homologado. No momento da escrita desse texto, os estados e o Distrito Federal estão elaborando os seus planos.
Há inúmeras consequências desse tipo de ação para o sistema em geral.
Na medida em que a inconstitucionalidade é exercida nas prisões, o crime parece ser a conduta “normal”, sem outras possibilidades de ação no mundo. Claro que aqueles que assim agem e impõem esse tratamento, nos parece ter o que Argyris (1999)3 chamava de incompetência habilidosa. Isto quer dizer que há muitos argumentos para justificar tais atos – nada criativos e inovadores -, pois eles mesmos vivem segundo tais preceitos. Parece-nos que a instituição prisional é alvo de projeções do negado na sociedade, em sentido amplo, e nos indivíduos em sentido restrito.
Mas o que vem a ser projeção? Projeção é um mecanismo de defesa, e quem o usa não tem conhecimento da dinâmica que ocorre em si mesmo, localizando no outro aquilo que tem dificuldade em aceitar em si, tanto os conteúdos negativos quanto os positivos. Nesse sentido, a perversidade da inconstitucionalidade é exercida na instituição prisional até com o argumento de que é um “ato de justiça”. Afinal, as pessoas ali são perigosas e merecem o pior… Mas, olhando mais de perto, podemos reconhecer as sombras, aquilo que se esconde em pensamentos, emoções e atos, que são direcionados, ou, melhor dizendo, expressos nas ações que se revelam contra as leis sociais e, muitas vezes, contra os apenados.
O Plano Pena Justa, que será usado como referência para a construção dos Planos estaduais e distritais, foi dividido em quatro eixos de acordo com os problemas enfrentados no sistema penitenciário, sendo eles:
1 – Controle de entrada e das vagas do sistema prisional;
2 – Qualidade da ambiência, dos serviços prestados e da estrutura prisional;
3 – Processos de saída da prisão e da reintegração social; e
4- Políticas para não repetição do estado de coisas inconstitucional no sistema prisional.
Analisando alguns dos documentos relevantes relacionados ao plano nacional (Plano e Matriz4, Sumário Executivo5), foi possível detectar que problemas relacionados à gestão, sendo eles associados a pessoas, processos, políticas penitenciárias, políticas de egresso, entre outras, estão presentes na fundamentação de todos os eixos.
Por meio de medidas, metas e indicadores, as ações mitigadoras para os problemas apresentados estão sendo difundidas entre os estados através das redes sociais, sites de internet, reuniões estaduais, reuniões de gestão e escolas de governo.
A incompetência habilidosa
Encontramos em Argyris (1999)6 dois modelos de aprendizado nas organizações. O modelo 1, single loop, mais voltado à manutenção do conhecimento adquirido e instalado. Nele, percebe-se o erro, mas não se muda o modelo. Já o modelo 2, double loop, permite o questionamento e a revisão do conhecimento conquistado, bem como dos princípios que o sustentam, sendo o mais adequado para as transformações. Para migrar de um modelo para outro, ele recorre a conceitos como incompetência habilidosa, inconsciência habilidosa e mecanismos de defesa.
Na incompetência habilidosa, os erros são um resultado da autopreservação e de previsões que determinam o resultado, que vai em direção oposta a um aprendizado genuíno. Aqui o lema é: não perder nunca, e, caso haja um problema, culpabilize alguém. Portanto, não há um estímulo para se perceber e refletir sobre o desconhecido e aprender, mas para argumentar a favor da autopreservação de maneira hábil. Dessa maneira, o intento é que haja repetição, sem esforço. Esse modelo internalizado não permite o acesso à maneira de pensar que torna permanente esse modelo, tornando-o inconsciente, ou seja, não reconhecido por quem o pratica, em sua totalidade. Ele é repetido, sem reflexão.
Segundo o autor citado, as pessoas não percebem os impactos de suas ações, mas percebem os impactos das pessoas ao seu redor, mas não sabem como resolver isso. Argyris gravava as sessões a fim de que as pessoas pudessem reconhecer seus mecanismos no sentido de se protegerem das próprias atitudes que poderiam colocar em risco o “modelo 1”. Há pensamentos e sentimentos soterrados para que possam permanecer sem reflexão. Quando a pessoa está inconsciente das habilidades que usa para manter esse modelo, pode ter dificuldade para adquirir novas habilidades, o que só se consegue a partir de um questionamento genuíno, como no “modelo 2”.
Banalização do mal no cotidiano
Dejours (2013)7 fala de como o trabalho pode, por um lado, nos conduzir à autorrealização, mas, por outro, pode se encaminhar para algo muito nocivo, como a banalização do sofrimento que se aplica ao outro e que conduz esse outro a uma situação sem saída, que o faz adoecer e até mesmo cometer o suicídio. O autor nos leva à reflexão sobre os métodos empregados na organização que privilegiam, dessa maneira, a aceitação de práticas que são condenadas moralmente pelas pessoas que as executam. No intuito da obtenção máxima de resultados, os funcionários devem cooperar com as estratégias empresariais, mesmo quando impõem sofrimento e injustiça aos demais. Assim, embora testemunhem os atos violentos, não expressam o que veem, nem mesmo prestam socorro. Isso ocorre não porque sejam perversas, mas são aquelas que possuem um senso moral – diferentemente dos perversos – e que são as ditas “colaboradoras”. Dessa maneira, despojadas disso, são conduzidas a uma fragmentação interna, ou seja: há uma obstrução interna para perceberem esse jogo do que têm por ideal e do que fazem, uma maneira de conviver com a dor e, ilusoriamente não sofrer, o que o autor denomina de clivagem forçada. Essas pessoas que, além de não serem donas de seus atos, são traidoras de si mesmas, daquilo que tinham por ideal, havendo um bloqueio ao acesso de sua própria covardia. Estabelece-se, assim, “o sofrimento ético”, diferente do sofrimento moral que é sinônimo de sofrimento psíquico.
O sofrimento ético é grave porque atinge em cheio a questão da identidade(…) O risco implicado no sofrimento ético é nada mais nada menos que a perda do amor de si, com todas as consequências psicopatológicas desastrosas disto. É o que há de mais grave, se concordarmos não só que o amor de si é o esqueleto da saúde mental (…)Pois o acesso ao outro como sujeito sofredor, isto é, o amor pelo outro, só pode se dar pelo que, no amor de si, o excede e o extrapola, ou seja, pelo que tem a ver com a superabundância do amor de si. O preço a pagar pelo sofrimento ético – como se nota com frequência nos últimos anos no mundo do trabalho – é o ódio de si, o desespero. É por isso que, nos últimos quinze anos, apareceram tentativas de suicídio e mesmo suicídios consumados até nos locais de trabalho. Com o ódio de si vem também a erosão da “compaixão” rousseauniana e, no mesmo movimento, na sequência, inevitavelmente, o desmoronamento da solidariedade (Dejours, 2013).
Poderíamos acrescentar o conceito de banalização do mal, descrito por Hannah Arendt (1999)8 como consequência da robotização da vida, em que as pessoas seguem seus cronogramas, restringindo sua capacidade de julgamentos e atendo-se, apenas, às suas atividades individuais, sem questionamento das atividades coletivas e a abrangência de seus pequenos atos enquanto indivíduos. Não há um conhecimento de si, a vida fica fracionada, sem integração das partes. Dessa maneira, o mal se torna invisível. Os algozes seguem o cronograma, mas não interagem com as vítimas, como foi no caso de Eichmann que, conforme a autora abordou em seu livro, disse em seu julgamento por crimes nos campos de extermínio, assim como muitos outros, que apenas cumpria ordens.
Os efeitos devastadores da inconstitucionalidade são inúmeros. Até que ponto nós nos cegamos em nosso cotidiano para situações tão atrozes? Todos nós estamos envolvidos nesse processo e somos gestores de um mundo em que cabe a pergunta: queremos fazer parte dele quando o jogo virar? Afinal, o movimento da vida é inevitável… é preciso decidir, agora!
Referências bibliográficas
1 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF n. 347/DF (Supremo Tribunal Federal, Pleno. ADPF n. 347 MC/DF. Relator Min. Marco Aurélio; Redator do Acórdão Min. Luís Roberto Barroso. DJ. 9/9/2015). Disponível
2 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informação à Sociedade. Brasília, DF, última atualização em 06 de outubro de 2023. Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/1ADPF347InformaosociedadeV2_6out23_17h55.pdf.
3 ARGYRIS, Chris. Aprendizado de duas voltas. HSM Management,ano 3 Nº 17, Nov-Dez, p. 12-20,. 1999. Disponível em: https://www.ulhoa.net/Leituras/Entrevista_Aprendizado_de_2_voltas.pdf
4 BRASIL. Pena Justa — Plano Nacional para o Enfrentamento do Estado de Coisas Inconstitucional nas Prisões Brasileiras — ADPF. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2025/02/2025-02-07-pena-justa-plano-e-matriz.pdf
5 BRASIL. Pena Justa — Plano Nacional para o Enfrentamento do Estado de Coisas Inconstitucional nas Prisões Brasileiras — Sumário Executivo – ADPF. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2025/02/2025-02-07-pena-justa-sumario-executivo.pdf
6 Idem 1
7 DEJOURS, Christophe. O trabalho entre banalização do mal e emancipação. Rev. bras. psicanál vol.47 no.2 São Paulo abr./jun. 2013. Disponível em: https://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0486-641X2013000200009
8 ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém– Um relato sobre a banalidade do mal. (A primeira edição, em alemão, foi feita em 1963) Tradução de José Rubens Siqueira.São Paulo: Companhia das Letras, 1999.