Este texto tem o objetivo de compartilhar a experiência da autora, servidora pública e Inspetora de Polícia Penal do estado do Rio de Janeiro há 20 anos, escolhida dentre 4581 inscritos para participar da Residência em Capital Humano no Setor Público, projeto da República.org.
Antes de iniciar este relato, considero importante explicar que a “Residência em Capital Humano no Setor Público” aconteceu entre 2018-2019, coordenada pela Dra. Regina Silvia Pacheco e realizada como iniciativa do Instituto República, visando promover o engajamento dos profissionais atuantes no serviço público brasileiro.
Foram selecionados profissionais da esfera pública e privada que, durante cerca de 8 meses, receberam bolsas, orientação e formação – sem prejudicar o horário de trabalho – para realizar uma experiência de engajamento em algum órgão estatal. Os residentes foram orientados por conselheiros com vasta experiência no setor público.
O experimento iniciava a partir de um diagnóstico produzido com servidores do órgão público contemplado, o que nos permitiu entender os desafios enfrentados e projetar mudanças para a melhoria e engajamento dos participantes por meio da reflexão e da identificação de estratégias de ação que, mais tarde, foram implementadas.
Relembrar a residência realizada e todos os aprendizados adquiridos e compartilhados traz boas memórias e sentimentos, além da recordação de que não estou só na crença que nós, servidores públicos, somos o fator essencial de transformação das práticas públicas e consequentemente, do serviço público e da vida dos brasileiros.
Mas enfim, quem era a Ana em 2018?
Quando me inscrevi para participar da residência artística, já era Inspetora de Polícia Penal há 14 anos, sempre em unidades prisionais femininas. Durante seis anos, fui Diretora da Unidade Materno Infantil, que à época foi considerada um primor no tratamento das mulheres privadas de liberdade acompanhadas pelos seus filhos, segundo declaração da Ministra Cármen Lúcia, então presidente do Conselho Nacional de Justiça2.
Em seguida, fui convidada a assumir a função de Coordenadora de Unidades Prisionais Femininas e Cidadania LGBTQI+, setor que estava sendo criado à época.
Durante a minha prática profissional, nos anos que passei trabalhando nas unidades femininas, pude perceber que o trabalho prestado pelas inspetoras trazer muitos efeitos na vida das mulheres privadas de liberdade, tanto de forma positiva, quanto de forma negativa.
Fui constatando, inclusive observando a minha própria vida, que os profissionais que trabalham em unidades prisionais passam pelos efeitos da prisionização3 (efeito que o encarceramento produz sobre o indivíduo, proporcionando um novo processo de interação social), já que, da mesma forma que as pessoas privadas de liberdade, estão sob a égide de uma instituição total (GOFFMAN, 1990)4, o que lhes impõe mudança de hábito de conduta, de vocabulário, incorporação de valores e, muitas vezes, até expectativa de vida.
Sem condições dignas de trabalho e sem uma política efetiva de gestão de pessoas policiais penais acabam sofrendo violência institucional. No meu ponto de vista, se o profissional não for “cuidado”, se essa violência não for ressignificada, suas práticas cotidianas, seja no trabalho, seja em casa, podem ser impactadas.
Por meio dessas reflexões, comecei a investir nos servidores da minha equipe, o que transformou a realidade da unidade da qual eu era gestora. Porém, tais práticas não eram institucionalizadas na Secretaria: elas ocorriam por empenho próprio. Como diretora, eu buscava fazer o melhor para os servidores, mesmo sem ter capacitação específica para tal.
Entrando na Residência em Capital Humano, eu só conseguia pensar em realizar o experimento na Secretaria de Estado e Administração Penitenciária do estado do Rio de Janeiro. Eu queria poder ajudar a mudar a realidade de todos os meus colegas e, consequentemente, dos presídios no meu estado. Mas, para isso acontecer, eu precisava encontrar colegas residentes que tivessem o interesse de trabalhar com o sistema.
No momento da divisão das equipes, procurei me aproximar de Ideli, que já havia conversado aleatoriamente comigo e exposto que tinha interesse de um dia realizar trabalhos (que não tinham nada a ver com a residência) em unidades prisionais. Em seguida, Carolina se aproximou, e decidimos montar a nossa equipe e trabalhar no presídio feminino.
Sim, minhas companheiras de equipe foram Ideli Domingues e Carolina de Mattos Ricardo, duas mulheres fantásticas, super profissionais, referências em suas áreas, muito diferentes entre si e muito diferentes de mim. Acho que isso foi essencial para o sucesso do nosso trabalho, pois tínhamos visões diferenciadas, o que enriquece a construção, a reflexão e a avaliação das atividades do experimento.
O tema do nosso trabalho foi “Como engajar inspetoras no trabalho de custódia e ressocialização das mulheres privadas de liberdade no Rio de Janeiro”. Ele foi realizado na Cadeia Pública Joaquim Ferreira de Souza, que à época era destinada a mulheres privadas de liberdade em regime provisório.
A residência me trouxe muitos aprendizados e impactou bastante na minha vida – tanto pessoal quanto profissional. Primeiramente, destaca-se a importância de formalizar as ações junto aos órgãos. Para realizar a pesquisa-ação, solicitamos autorização para a realização do experimento à Secretaria de Estado e Administração Penitenciária, cujo consentimento foi essencial para a continuidade do projeto, já que, no meio da sua execução, houve mudança política, e eu, que era coordenadora, fui exonerada. É muito possível que, caso não tivéssemos formalizado, o experimento não continuaria.
Sabemos que mudanças na gestão acontecem com bastante frequência no serviço público, e, para que as ações tenham continuidade, é necessário buscar os meios necessários para torná-las institucionais.
Diante da mudança na gestão da Coordenação, também houve uma instabilidade na unidade prisional onde estava sendo realizado o experimento. Neste momento, a diretora da unidade mostrou uma liderança forte, conversando com a equipe, afirmando estar disposta a lutar junto e pelo bem de todos para que passassem por aquele momento difícil. Uma liderança forte engaja a equipe mesmo em um momento de crise.
Foi constatado que a conversa, o olhar empático e sensível às falas dos servidores, além do acolhimento, são essenciais para o fortalecimento da equipe e o engajamento das servidoras, a sensação de união, torna as relações mais estáveis. Também diminuem a sensação de medo que o ambiente carcerário causa e, consequentemente, diminuem o risco.
A Residência ressoou durante bastante tempo entre as servidoras participantes da unidade prisional e, quando as encontrava, sempre recordavam o trabalho. Até pouco tempo atrás elas perguntam se não teria de novo ou se seria ampliado.
Ter realizado a Residência em Capital Humano foi um grande diferencial na minha vida, porque estar em contato com pessoas altamente qualificadas, trocando conhecimentos, recebendo formação e mentoria, me ajudou a enxergar a realidade de outra forma: pude ver o quanto a minha categoria profissional pode crescer se tiver os estímulos certos, e não necessariamente os financeiros.
A nota é de responsabilidade da autora e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais ela está vinculada.
Referências Bibliográficas
1Pacheco, Regina Silvia. Residência em Capital Humano no Setor Público, 2018-2019: “Incentivos não financeiros e engajamento de agentes públicos de linha de frente: uma abordagem de pesquisa-ação”, p.04. Disponível em: https://republicafellows.org/#results. Acesso em 15 de maio de 2024
2Disponível em: Supremo Tribunal Federal (stf.jus.br). Acesso em 15 de maio de 2024.
3CLEMMER, Donald. Prision Community. 2. ed. Nova Iorque: Holt, Rinehart And Winston, 1958.
4GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. 3.ed.São Paulo: Perspectiva, 1990.