Extinção de privilégios – Proposta de Emenda à Constituição (PEC)
A PEC da Reforma Administrativa inclui um eixo voltado à extinção de privilégios, um dos temas mais aguardados pela sociedade. O texto busca fechar brechas que sustentam supersalários e penduricalhos e traz mais clareza sobre o que pode ou não ficar fora do teto constitucional. Nesta análise, a República.org mostra por que a proposta representa um avanço e o que ainda precisa ser ajustado para garantir mais transparência, responsabilidade e justiça nas remunerações do serviço público.
Alinhamento geral
Alinhado totalmente: a proposta representa um avanço significativo em relação à situação atual,com algumas oportunidades de aperfeiçoamento.
Síntese das recomendações
- Prever diretrizes mais específicas sobre a forma de avaliação de desempenho individual das carreiras jurídicas e seu vínculo ao pagamento de honorários.
- Extinguir a atual possibilidade de sobreposição de gratificações de desempenho (honorários e bônus relacionado a acordo de resultados) a essas carreiras.
- Prever que todos os pagamentos estejam sujeitos ao teto, independentemente de seu caráter indenizatório, ou, alternativamente, que se limite de forma rigorosa a quantidade e o valor máximo das indenizações, prevendo que eventuais excedentes sejam pagos apenas no exercício seguinte, sempre respeitando o teto de cada ano (como ocorre nos EUA).
- Prever diretrizes de responsabilização de agentes públicos em caso de descumprimento das normas estabelecidas pela emenda, a exemplo do PL nº 3328/2025 e do PL nº 3401/2025.
- Prever diretrizes de responsabilização de órgãos públicos em caso de descumprimento das normas estabelecidas pela emenda, no âmbito da Lei de Responsabilidade Fiscal.
- Prever diretrizes sobre padronização das nomenclaturas das rubricas entre portais de transparência de diferentes entes e poderes ou instituir um sistema eletrônico nacional, com prazo de adequação para todos os entes e poderes, escalonado pelo tamanho do município (tal como foi feito na Lei Complementar nº 131/2009).
- Rever a composição e as atribuições do Conselho de Política de Administração e Remuneração de Pessoal (COPAR), de modo a alinhá-las às boas práticas internacionais de comissões salariais.
- Retirar a previsão de teto global para despesas com verbas indenizatórias (ou manter apenas se as demais propostas não avançarem politicamente).
Análise por princípios
Princípio 1: Contribuição para o fortalecimento da capacidade estatal e da geração de entregas para os cidadãos.
Pontos de concordância:
O texto prevê que a receita proveniente dos honorários de sucumbência e de até 50% da parcela dos encargos legais referentes ao ajuizamento da ação de execução fiscal poderá ser utilizada para o pagamento de uma parcela variável da remuneração dos agentes públicos que atuam na representação judicial e extrajudicial da União. O recebimento individual desses valores fica condicionado a critérios objetivos de mérito e produtividade, observados os limites remuneratórios aplicáveis.
A medida representa um avanço em relação à situação vigente, em que a distribuição dessas verbas entre os membros da Advocacia-Geral da União, da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e das procuradorias das autarquias não depende, em regra, de avaliação de desempenho individual — seja de forma geral, seja considerando a contribuição de cada servidor para o êxito da União em cada caso específico. Ao vincular o pagamento de gratificações de desempenho a parâmetros objetivos, o texto contribui para o fortalecimento da capacidade estatal, uma vez que incentivos pecuniários só podem funcionar como um estímulo positivo ao desempenho se forem bem estruturados. Isto é, se forem críveis e vinculados a medidas objetivas de desempenho.
Ponto de atenção:
Embora a proposta represente um avanço em relação ao diagnóstico atual, permanecem pertinentes os questionamentos quanto à própria existência de honorários para a advocacia pública — tema que poderia ser aprofundado por meio de estudos comparativos internacionais —, bem como quanto à efetividade dos bônus variáveis de desempenho (aspecto abordado em nota técnica específica). De todo modo, caso a proposta seja mantida, recomenda-se que o texto explicite diretrizes gerais sobre a forma de realização das avaliações dessas carreiras e sua vinculação ao pagamento dos honorários. Essa definição contribuiria para conferir maior segurança jurídica e assegurar que os pagamentos estejam, de fato, condicionados a critérios objetivos de desempenho, alinhados ao interesse público.
Princípio 2: Simplificação, racionalização e otimização da gestão do Estado.
Pontos de concordância:
No âmbito da simplificação, racionalização e otimização da gestão, a proposta de PEC apresenta aprimoramentos substanciais em relação à situação atual. Particularmente, são medidas que buscam corrigir distorções que foram sendo observadas ao longo dos anos. São elas:
- Definição de verbas remuneratórias e indenizatórias
O vácuo normativo sobre a definição precisa de verbas remuneratórias e indenizatórias é uma das principais causas dos supersalários. Nesse sentido, o texto apresenta um avanço relevante ao prever que, com exceção dos auxílios relacionados à alimentação, saúde e transporte, destinados a custear despesas necessárias ao exercício das atribuições, as parcelas de caráter indenizatório previstas na lei nacional deverão atender, cumulativamente, aos seguintes requisitos:
I – possuam natureza reparatória, sendo destinadas à compensação de despesas efetivamente suportadas pelos agentes públicos como condição necessária ao exercício das atribuições;
II – possuam natureza episódica, eventual e transitória, vedados:
a) o pagamento rotineiro e permanente; e
b) a concessão indistinta à totalidade, à maioria ou à parcela relevante dos integrantes de categorias ou carreiras.
- Vedação à extensão de verba remuneratória por desempenho a aposentados e pensionistas
O texto também estabelece a vedação à extensão de verbas remuneratórias por desempenho a aposentados e pensionistas, prática que eventualmente ocorre na administração pública, sem qualquer respaldo nas boas práticas de gestão. É, portanto, completamente irrazoável que servidores inativos — que, por definição, não desempenham atividades laborais — recebam remuneração vinculada a desempenho.
- Vedação à concessão de folgas para compensar “excesso de trabalho” e vedação à conversão de folgas ou férias em pecúnia
Segundo relatório produzido pela Transparência Brasil e República.org, a prática de concessão de folgas para compensar “excesso de trabalho” e sua conversão em pecúnia se constituiu como um dos principais componentes dos supersalários. A gratificação por exercício cumulativo e a licença-compensatória elevam os salários em até um terço sob a justificativa de acúmulo de trabalho. Juntos, eles representaram R$ 2,3 bilhões de gastos com contracheques do Judiciário em 2024. Além da ausência de controle e transparência quanto aos critérios que definem o chamado “excesso de trabalho”, o uso recorrente dessa prática evidencia a fragilidade da gestão desses órgãos, especialmente no que se refere ao adequado dimensionamento da força de trabalho. A proposta, no entanto, resguarda a possibilidade de adoção de regime de banco de horas para as
funções em que haja efetivo controle quantitativo de jornada.
- Vedação à instituição de verbas remuneratórias ou indenizatórias por meio de qualquer tipo de norma que não esteja sujeita à deliberação do poder Legislativo
A proliferação de “penduricalhos” aprovados apenas por atos administrativos também se constitui como uma das principais causas dos supersalários. Nesse sentido, o relatório supracitado aponta como uma das medidas para um efetivo combate aos supersalários a “extinção da discricionariedade do Ministério Público e Judiciário para criar e desvirtuar penduricalhos por decisão administrativa, inclusive com pagamentos retroativos, sem o aval expresso do parlamento, por meio de resoluções dos seus Conselhos Superiores, interpretadas atualmente como equiparáveis a leis ordinárias.” (página 38)
- Vedação ao pagamento de retroativos, salvo ações transitadas em julgado proferida em ação coletiva ou individual, ressalvadas as decisões anteriores a promulgação da PEC
Os pagamentos retroativos constituem outra estratégia utilizada para inflar a remuneração de uma minoria do funcionalismo público. Em 2024, essas despesas totalizaram pelo menos R$ 3 bilhões no âmbito do Judiciário, o dobro do registrado no ano anterior, de acordo com o relatório. Tais pagamentos são marcados por falta de transparência, o que impede identificar sua origem e a natureza de cada parcela. Atualmente, os órgãos tratam o conjunto dos pagamentos retroativos como indenizações — fora do teto constitucional, portanto —, mesmo quando se referem, em sua origem, a benefícios de natureza remuneratória. Nesse contexto, a proposta avança ao estabelecer limites mais rigorosos para esse tipo de pagamento.
- Vedação ao pagamento de adicionais de periculosidade ou insalubridade a quem não trabalha com efetiva exposição a fatores de risco
Conforme indicado no fichário anexo, essa matéria foi solucionada no âmbito da União há cerca de 30 anos, mas ainda persiste em alguns estados e municípios. Nesse sentido, a proposta contribui para promover maior segurança jurídica e padronização normativa entre os entes federativos.
- Vedação à adicionais, progressões e licenças unicamente condicionadas ao tempo de serviço.
A prática de conceder adicionais por tempo de serviço (triênios, quinquênios, entre outros) é relativamente comum na administração pública brasileira, tanto em carreiras de elite — contribuindo para a existência e a magnitude dos chamados supersalários — quanto em carreiras de menor remuneração, especialmente no âmbito municipal. Embora seja legítima a reivindicação de sindicatos e servidores de carreiras com salários mais baixos, essa prática carece de fundamentação do ponto de vista da gestão, sendo frequentemente utilizada como um mecanismo improvisado para conceder aumentos salariais. A prática de gestão adequada deveria, no mínimo, assegurar a recomposição monetária de acordo com a inflação do período correspondente. Conceder adicionais simplesmente pelo fato de o servidor ocupar o cargo e desempenhar suas funções não se justifica sob a perspectiva de uma gestão de pessoas eficiente. Nesse sentido, a proibição da concessão de adicionais concedidos exclusivamente por tempo de serviço em toda a administração pública contribui para conferir maior racionalidade à gestão do Estado.
- Extinção imediata das verbas em desacordo com essa Constituição e esta Emenda
Esse dispositivo é essencial para assegurar a correção “automática” de distorções, como as mencionadas anteriormente, que contribuem para a magnitude dos supersalários.
- Vedação à constituição ou manutenção de fundos ou entidades privados para a gestão dos honorários de sucumbência e dos encargos e a sua utilização para o pagamento de verbas indenizatórias
Essa medida, além de promover maior transparência nos dados relativos a honorários e encargos (princípio 5), também contribui para a racionalização da gestão e do controle fiscal, ao impedir a utilização desses recursos para o pagamento de verbas indenizatórias.
- Vedação à extensão de qualquer direito, benefício ou vantagem específica de uma carreira a outra sob alegação de simetria constitucional e paridade entre carreiras
A prática recorrente de paridade irrestrita entre carreiras do sistema de justiça também figura entre as causas dos supersalários, como ilustram casos de gratificação por exercício cumulativo e de licença-compensatória. Nesse sentido, a proposta de vedar a extensão de benefícios sob essa justificativa constitui um passo adequado para a racionalização do sistema remuneratório.
- Limite de 10% da respectiva remuneração para o total dos auxílios recebidos com saúde, alimentação e transporte para os agentes cuja a remuneração já de 90% do teto ou superior
Ao estabelecer um subteto de indenizações para as carreiras de maior remuneração, a proposta atua como uma salvaguarda adicional, prevenindo o desvirtuamento desses pagamentos e promovendo maior racionalidade na composição remuneratória.
Ponto de atenção:
A despeito dos esforços para simplificar e racionalizar a remuneração e indenizações pagas aos agentes públicos, tanto a PEC como o PLP preveem a possibilidade, facultativa, de inclusão de bônus de desempenho para todo o funcionalismo, com a possibilidade de pagamentos de até 14o salários por fora do teto constitucional. Além de não terem evidências robustas de que incentivos pecuniários são custo-efetivos para todos os cargos da administração pública — tema que é abordado com maior detalhamento em nota técnica específica —- , há um risco particularmente relevante de ser considerado nesta discussão sobre combate aos supersalários. No caso da advocacia pública, a proposta permite que o bônus de desempenho se sobreponha aos honorários de sucumbência, que também seriam pagos de acordo com a performance individual (ver princípio 1). Assim, nota-se uma sobreposição de incentivos e sistemas de remuneração por performance, possivelmente aumentando a complexidade da gestão e o ônus financeiro ao Estado.
Além disso, a proposta estabelece um teto para o total de gastos com verbas indenizatórias, corrigido anualmente pelo IPCA, tomando como referência as dotações orçamentárias de cada poder e órgão autônomo da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios relativas ao ano de 2020. Embora, à primeira vista, essa medida pareça positiva, há um ponto de atenção que merece destaque. Considerando que as medidas mencionadas anteriormente já impõem restrições significativas às verbas indenizatórias, a inclusão de um teto global baseado em um ano específico pode, na prática, criar um incentivo perverso: a criação de novas verbas indenizatórias (ou o aumento de existentes) apenas para atingir o limite estabelecido. Em outras palavras, antes da instituição do teto, seria necessário verificar se as vedações previstas já não contribuiriam para gastos muito inferiores ao limite. A instituição de um teto global de gastos com indenizações deveria ser considerada apenas como uma alternativa de avanço, caso não seja possível aprovar a limitação dos benefícios classificados como verbas indenizatórias.
Para fins de recuperação da autoridade do teto constitucional, a proposta poderia incorporar um modelo semelhante ao adotado nos Estados Unidos, em que todas as remunerações se enquadram nos respectivos limites específicos para grupos de servidores (General Schedule, Executive Schedule e Senior Executive Service). Nesse sistema, o salário do presidente da República serve como referencial máximo, e a maioria dos cargos segue tabelas fixas, com poucos adicionais. Caso valores adicionais ultrapassem o limite estabelecido para o cargo, o excedente é pago apenas no exercício seguinte, respeitando também o teto vigente naquele período. Ademais, a maioria dos adicionais (bonificações, prêmios,incrementos por localidade, por necessidade de retenção, por periculosidade, etc.) são tributados e contam para o teto. Alguns itens, como parcelas de reembolso por diárias, viagens e mudanças são isentos até certo valor e ficam fora do teto, mas precisam ser comprovados. Não há, em geral, pagamento de auxílio-alimentação (GUEDES-REIS,2025)3. Recomenda-se, portanto, que o Brasil adote uma regra segundo a qual todos os pagamentos estejam sujeitos ao teto remuneratório, independentemente de sua natureza indenizatória ou, alternativamente, sugere-se estabelecer limites rigorosos para a quantidade e o valor das indenizações, determinando que eventuais excedentes sejam pagos apenas no exercício seguinte, sempre observando o teto vigente em cada ano.
Princípio 3: Redução de desigualdades dentro do funcionalismo público.
Pontos de concordância:
No que tange ao combate às desigualdades no funcionalismo, a proposta traz um progresso substancial, já que os supersalários são uma das causas centrais dessa disparidade. Dados do Anuário de Gestão de Pessoas no Setor Público 2024 apontam que 70% dos servidores públicos ganham até R$5.000, enquanto 0,06% têm rendimentos acima do teto constitucional de R$46.000, uma ilustração do abismo que separa a maioria dos servidores públicos e a ínfima minoria privilegiada.
Além das medidas mencionadas no princípio 2, que contribuem direta ou indiretamente para a redução de desigualdades no âmbito do funcionalismo público, destacam-se outras cinco ações com o mesmo objetivo: (i) a vedação a férias superiores a 30 dias, exceto para profissionais do magistério e da saúde cuja exposição a fatores de risco justifique períodos mais longos; (ii) a limitação do adicional de férias a, no máximo, 1/3 (um terço) da remuneração correspondente, incluindo restrições quanto ao parcelamento de férias em mais de três períodos e a acumulação por mais de dois períodos, sendo obrigatória a fruição das férias até o último dia do segundo período aquisitivo não usufruído; (iii) a proibição do pagamento de honorários advocatícios como verba indenizatória, fora do teto constitucional, (iv) vedação à aposentadoria compulsória como sanção disciplinar, prática que constitui um privilégio exclusivo de juízes e membros do Ministério Público e (v) possibilidade de demissão dos juízes e promotores por meio de processo administrativo disciplinar nos conselhos superiores.
Princípio 4: Valorização do servidor e do serviço público.
Pontos de concordância:
Praticamente todas as medidas mencionadas nos princípios anteriores contribuem para a valorização do servidor e do serviço público, ao reduzir desigualdades entre diferentes carreiras e ao fortalecer o profissionalismo no âmbito da administração pública e a legitimidade do serviço público.
Princípio 5: Transparência e responsabilidade no serviço público.
Pontos de concordância:
A ininteligibilidade e a opacidade dos dados relativos à remuneração de servidores públicos configuram-se como uma das principais causas dos supersalários. Nesse contexto, a proposta avança significativamente nesse princípio ao estabelecer que todo e qualquer valor percebido por agente público em razão do exercício de cargo, emprego ou função pública, independentemente da natureza jurídica da parcela, da denominação adotada, da periodicidade ou do caráter ordinário ou extraordinário do pagamento, deverá ser divulgado de forma individualizada e discriminada, em formato aberto, padronizado e legível por máquina, no portal da transparência, sendo vedada qualquer exigência de identificação do cidadão para acesso ou consulta ao sistema.
Adicionalmente, a proposta prevê que a gestão dos honorários de sucumbência e dos encargos caberá exclusivamente à administração pública, vedada a constituição ou manutenção de fundos ou entidades privadas para essa finalidade, bem como a sua utilização para o pagamento de verbas indenizatórias. As receitas e despesas correspondentes deverão ser divulgadas de forma detalhada, ao menos mensalmente, no portal da transparência, sem prejuízo dos controles externo e interno.
Por fim, para fins de trazer maior responsabilidade no serviço público, o texto veda a indicação para membro do Conselho Nacional de Justiça de pessoa ou do Conselho Nacional do Ministério Público que exerça ou tenha exercido, nos últimos doze meses, quaisquer cargos no âmbito de entidade representativa da magistratura e do Ministério Público, respectivamente, nos níveis estadual ou federal. Esse mecanismo de quarentena diminui o risco de captura dos órgãos por representantes de classe, atuando como mais uma salvaguarda para a administração pública.
Pontos de atenção:
O principal ponto de atenção em relação às propostas de extinção de privilégios diz respeito à ausência de mecanismos robustos de responsabilização no caso de descumprimento das medidas. Por exemplo, o PL nº 3328/2025, de autoria da deputada Tabata Amaral (PSB), considera ato de improbidade administrativa o descumprimento das regras previstas, bem como o atraso na implantação do sistema integrado de dados relativos às remunerações. O PL nº 3401/2025, de autoria de Lindbergh Farias (PT), prevê que os tribunais de contas deverão realizar auditorias anuais sobre o cumprimento dos limites remuneratórios definidos por esta lei, inclusive em órgãos do poder Judiciário e do Ministério Público, restrita aos atos de gestão administrativa, orçamentária e financeira. Em caso de descumprimento dos limites remuneratórios por qualquer órgão, o Tribunal de Contas competente encaminhará representação ao Ministério Público, para apuração de responsabilidade dos gestores e beneficiários. Além da responsabilização individual, também seria benéfico considerar penalidades de descumprimento para o órgão, no âmbito da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Ainda no tema da responsabilidade no serviço público, há uma proposta que, embora não esteja incluída no conjunto de medidas voltadas à extinção de privilégios, merece atenção. Trata-se do projeto de lei que institui o Marco Legal da Administração Pública, o qual propõe, entre as normas gerais de gestão de carreiras, a criação do Conselho de Política de Administração e Remuneração de Pessoal (COPAR), órgão colegiado de caráter consultivo no âmbito da União. Sua composição e funcionamento serão definidos em ato regulamentar, devendo incluir, no mínimo, representantes do MGI (que o presidirá), do Ministério da Fazenda, do MPO, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, do TCU, do poder Judiciário, do MPU e da DPU.
Compete ao COPAR realizar estudos técnicos sobre a evolução remuneratória nos setores público e privado; propor diretrizes para a definição e a estruturação das tabelas remuneratórias; emitir pareceres técnicos sobre propostas de reestruturação de carreiras que impliquem impacto orçamentário; sugerir, com base em critérios de sustentabilidade fiscal, inflação, mercado de trabalho e variação do Produto Interno Bruto (PIB), percentuais de reajuste para o serviço público federal e para a futura tabela única remuneratória federal, quando instituída; além de emitir pareceres técnicos sobre propostas de alteração no quantitativo de cargos efetivos e exercer outras competências que venham a ser definidas em ato do poder Executivo.
A criação de uma comissão responsável pela definição da política remuneratória no setor público representa um avanço importante, mas, para que a proposta seja efetiva, alguns aprimoramentos são necessários. Há dois pontos centrais de atenção: (i) a comissão não deve ser composta exclusivamente por representantes dos próprios poderes, sob o risco de institucionalizar o corporativismo no serviço público; e (ii) não deve ter caráter meramente consultivo, sob pena de limitar sua efetividade. Experiências internacionais, como as do Chile e do Reino Unido, indicam que comissões salariais externas e independentes (incluindo nomeados de fora da administração pública) configuram arranjos mais adequados de accountability, ao reduzirem — ou, ao menos, moderarem — a influência das elites burocráticas sobre a definição de suas próprias remunerações (GUEDES-REIS,2025).
No Chile, existe uma Comissão para Fixação de Remunerações, responsável por definir os salários das altas autoridades dos poderes Executivo e Legislativo, incluindo o presidente da República, ministros, assessores diretos contratados a honorários, bem como senadores e deputados. A Comissão é composta por cinco integrantes: um ex-ministro da Fazenda, um ex-conselheiro do Banco Central, um ex-controlador da Controladoria-Geral da República, um ex-presidente do Congresso e um ex-diretor do Serviço Civil. Os membros são designados pelo presidente da República e aprovados por dois terços do Senado, para mandatos de seis anos. Entre suas atribuições estão estudar, discutir e, posteriormente, fixar as remunerações dessas autoridades, sem possibilidade legal de veto, para um período de quatro anos, devendo a deliberação ocorrer ao menos 18 meses antes do término do mandato presidencial. Embora a Comissão não abranja os demais servidores do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, as políticas remuneratórias desses grupos são definidas em lei, o que reduz significativamente a possibilidade de ocorrência de supersalários, em contraste com a realidade atual do Brasil (GUEDES-REIS,2025).
No Reino Unido, por sua vez, há um sistema de controle no qual o secretário-chefe do Tesouro é responsável por aprovar o pagamento de remunerações totais que ultrapassem o valor correspondente ao salário do primeiro-ministro ou que impliquem o recebimento de bônus superiores a 25 mil libras. Além disso, o país conta com Comissões de Revisão de Remunerações — órgãos independentes e de caráter consultivo — que orientam a administração pública, com base em evidências, sobre políticas de recrutamento e valorização de servidores (GUEDES-REIS,2025).
Essas comissões são responsáveis por estabelecer as faixas salariais de acordo com o nível do cargo. As propostas são submetidas à aprovação do Tesouro, no caso do Executivo, e do Lord Chancellor, autoridade administrativa máxima do Judiciário, no caso das remunerações da magistratura. No Legislativo, as remunerações dos parlamentares são definidas por uma comissão externa específica, enquanto os salários dos servidores seguem estruturas de atualização próprias, mas semelhantes às observadas no Executivo. Entre as comissões, destaca-se o Senior Salaries Review Body (SSRB), comitê responsável por revisar as remunerações das carreiras de elite, como juízes, altos oficiais das Forças Armadas e dirigentes do setor de saúde, entre outros. O SSRB é composto por oito especialistas, com mandatos de três a cinco anos, e seu processo de nomeação é regulado pelo Comissioner for Public Appointments (comissário para nomeações públicas), sendo as escolhas realizadas por um comitê de ministros com base em critérios técnicos e de experiência. A composição atual inclui ex-executivos de órgãos públicos, acadêmicos das áreas de Economia e Ciências Sociais, ex-diretores de recursos humanos do setor privado e ex-integrantes do Senior Civil Service (SCS) (GUEDES-REIS,2025).
Nesse sentido, as experiências internacionais de comissões salariais externas oferecem lições relevantes para o Brasil. Modelos baseados em instâncias independentes, protegidas da influência de lobbies corporativos, com escopo amplo — abrangendo todos os cargos e carreiras —, dotadas de mecanismos de controle ex ante e de transparência sobre seus processos decisórios, mostram-se fundamentais para o estabelecimento de um sistema efetivo de controle das remunerações no setor público. A proposta poderia ser aprimorada, portanto, ao prever a participação obrigatória de representantes de órgãos técnicos, como o IPEA, a ENAP, ou a IFI, bem como de especialistas externos à administração pública. Além disso, recomenda-se incorporar mecanismos mais robustos de atuação da comissão, inspirados nas experiências internacionais mencionadas.
Por fim, no que se refere à transparência, observa-se a ausência de diretrizes para a padronização das nomenclaturas das rubricas e para a harmonização dos dicionários de dados entre os portais de transparência de diferentes entes e poderes. A proposta também não prevê a criação de um sistema eletrônico nacional, como fazem os Projetos de Lei nº 3.401/2025 (art. 9º) e nº 3.328/2025 (art. 6º), medida que constituiria uma forma mais robusta de transparência ativa.
Viabilidade técnica
Os principais desafios das propostas apresentadas são, sobretudo, de natureza política. Ainda assim, sob o ponto de vista técnico, o principal obstáculo diz respeito à transparência ativa dos dados de remuneração dos agentes públicos, especialmente à necessidade de padronizar as nomenclaturas das rubricas de pagamento. A criação de um sistema eletrônico nacional que integre as informações de todos os entes e poderes, embora constitua uma solução mais estruturante, também enfrentará desafios técnicos e demandará tempo para sua plena implementação.
1Até 2017, a verba paga pela parte derrotada em uma ação judicial — os honorários de sucumbência — era restrita aos advogados privados. A partir da Lei Federal nº 13.327/2016, contudo, foi criado um fundo destinado à distribuição desses valores, bem como dos débitos da Dívida Ativa da União, entre os advogados públicos federais. A legislação estabelece que, nas ações judiciais em que a União for vencedora, os honorários sucumbenciais devem ser destinados ao Conselho Curador dos Honorários Advocatícios (CCHA), fundo de natureza privada. Em 2021, o Supremo Tribunal Federal confirmou a constitucionalidade desses pagamentos. De acordo com levantamento de Bruno Carazza, desde fevereiro de 2017 o governo federal já transferiu R$ 18,6 bilhões para este fundo.
2 Segundo o relatório, a gratificação por exercício cumulativo foi instituída no Judiciário da União por quatro legislações em 2015. As leis estabelecem uma bonificação de ⅓ do subsídio para membros que acumulam acervo ou juízo, e expressam claramente que o benefício tem natureza remuneratória e atinente ao teto constitucional. Em 2020, o CNJ entendeu que os membros dos tribunais estaduais também teriam direito ao benefício, sob a justificativa da unicidade de carreiras, mas mantendo o seu caráter de remuneração.Em 2023 o Conselho Nacional do Ministério Público desvirtua o benefício, transformando-o em um dia de folga para cada três trabalhados sob acúmulo (licença-compensatória), e permitindo que o descanso seja usufruído em pecúnia como uma indenização. Alegando paridade de carreira, o Judiciário replicou o modus operandi.
3 Relatório de benchmark internacional sobre teto salarial no setor público, produzido por Sérgio Guedes-Reis e encomendado pela República.org e Movimento Pessoas à Frente. A publicação desse relatório ocorrerá em novembro de 2025.
4 Esse dado é proveniente da base da PNADc de 2022, uma pesquisa contínua do IBGE onde se aplica um questionário a uma amostra de domicílios. A renda considerada aqui é a declarada no trabalho principal. Durante a aplicação da pesquisa, na ausência de algum morador daquele domicílio, quem responde pela renda dessa pessoa é a pessoa de referência. Esse contexto de autodeclaração e de declaração dos rendimentos por parte de uma terceira pessoa, pode distorcer a realidade dessa informação. Portanto, esse valor é uma aproximação que pode estar subestimada. O ideal para chegarmos a valores mais próximos da realidade é a análise das folhas de pagamento dos órgãos. Contudo, como também abordamos no Anuário de Gestão de Pessoas no setor público de 2024, há uma ausência de sistematização de dados de pessoal e não há nenhuma governança nacional sobre esses dados para se ter um panorama completo e mais fidedigno da realidade dos contracheques. O mais próximo que conseguimos chegar de um panorama nacional é fornecido pela própria PNADc e pela RAIS, que também apresenta algumas limitações metodológicas.