Estudo da República.org aponta gastos de R$ 20,9 bilhões com o pagamento de remunerações acima do teto salarial de R$ 44 mil, entre 2018 e 2024, para integrantes do Poder Judiciário e do Ministério Público
Por Eugênia Lopes — Especial para República.org
O governo gastou R$ 20,9 bilhões, em seis anos, com o pagamento dos chamados penduricalhos, benefícios que turbinam os salários de carreiras jurídicas e do Ministério Público na União e nos estados. Esse seleto grupo de servidores públicos excede o teto remuneratório do funcionalismo ao incorporar aos salários uma série de verbas indenizatórias, como licença-prêmio, abono permanência, auxílio-alimentação, entre outros. Esse tipo de pagamento não está sujeito nem ao teto nem ao pagamento de imposto de renda.
O estudo, produzido pela República.org, com base nos dados da Transparência Brasil, está no recém-lançado Anuário de Gestão de Pessoas no Serviço Público 2024. Pelo estudo, o percentual de magistrados ativos e inativos que extrapolou o teto salarial e recebeu pelo menos um mês (em cada ano) de supersalário saltou de 83%, em 2018, para 92%, em 2024. Atualmente, o máximo que um servidor pode ganhar é o valor recebido por um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), hoje em R$ 44 mil.
“Tem casos de supersalários em todos os poderes, mas há mais no Judiciário. Os supersalários revelam um cenário de disparidades salariais no serviço público brasileiro que deve ser enfrentado”, diz a gerente de Dados e Comunicação Vanessa Campagnac, doutora em ciência política e uma das autoras do estudo. Segundo ela, os supersalários são um fator importante de agravamento das desigualdades no serviço público. “Embora os servidores que recebem supersalários representem uma pequena fatia do total dos profissionais públicos, eles têm um alto custo para a sociedade e não apenas aos cofres públicos. Eles são um pedaço importante da composição de um serviço público desigual, em que muito poucos recebem salários muito altos, enquanto a maioria recebe até três salários mínimos”, analisa Campagnac.
Percentual de servidores ativos e inativos que recebeu pelo menos um mês de supersalários (2018—2024)
O PL dos Supersalários resolve o problema dos privilégios no serviço público?
O Projeto de Lei nº 2.721/2021, conhecido como PL dos Supersalários, vem sendo enxergado como uma solução para combater os privilégios e regulamentar o pagamento das verbas indenizatórias (os chamados penduricalhos), pondo fim aos salários extrateto. Mas a atual redação, que está à espera de votação no Senado, deixa brechas para o descumprimento do teto salarial, podendo inclusive elevar as despesas públicas com pagamentos dessa parcela de servidores públicos, revela análise da República.org. “A atual redação do PL não resolve o problema. Precisamos discutir as rubricas que devem ser incluídas no teto para diminuir a ocorrência dos supersalários”, afirma Campagnac.
Em tramitação no Congresso desde 2016, o projeto lista quais tipos de pagamentos podem ficar de fora do teto do funcionalismo público.
Na votação da Câmara, as chamadas carreiras de elite do funcionalismo conseguiram incluir 32 exceções que autorizam pagamentos acima do teto salarial. O projeto entrou na lista de prioridades do governo federal para reduzir as despesas obrigatórias.
“Para melhorar o PL, é preciso reduzir drasticamente a quantidade de rubricas que tem ali; 32 exceções estão longe de ser um número razoável”, defende a economista e mestre em administração pública Ana Pessanha, analista de Conhecimento da República.org. Ela também participou da elaboração do levantamento de dados para o Anuário de Gestão de Pessoas no Serviço Público 2024.
Entre as exceções previstas no projeto, estão a conversão em dinheiro de até 30 dias de férias não gozadas, o auxílio-moradia e outras verbas concedidas aos magistrados e integrantes do Ministério Público. Das 32 exceções, oito beneficiam os militares, como isenção para a verba que recebem quando passam para a inatividade, auxílio-farda e outras compensações.
O projeto também autoriza pagamentos que no setor privado têm natureza remuneratória, mas que poderão, caso seja aprovado, contribuir para manter o extrateto: auxílio-alimentação (até 3% do teto), plano de saúde (até 5% do teto), auxílio-transporte (até 3% do teto), indenização por uso de veículo próprio (até 7% do teto) e auxílio-creche (até 3% do teto por dependente até 5 anos). Esses benefícios ficarão fora do teto salarial. O PL isenta também do teto o auxílio-funeral, benefício pago à família dos servidores quando eles falecem.
Peso dos penduricalhos
O estudo da República.org mostra que as chamadas verbas indenizatórias têm peso grande nos gastos com o pagamento de remunerações que extrapolam o teto remuneratório de R$ 44 mil nas carreiras do Judiciário e do MP. Segundo o levantamento, pelo menos 62% do valor extrateto vêm de rubricas consideradas indenizatórias, como licença-prêmio, abono permanência, auxílio-saúde e alimentação, diárias, entre outros.
Pelo estudo, 38% das rubricas não são identificáveis — 23% são despadronizadas e 15% padronizadas. Ou seja, não é possível saber o que tem caráter indenizatório e o que é de caráter remuneratório, o que dificulta o controle social e impede a fiscalização eficiente. “O problema maior é a falta de transparência”, observa Ana Pessanha. “Essa discussão do que entra e o que não entra no teto salarial, do que é remuneratório ou indenizatório, é fundamental. Isso é que pode fazer valer o cumprimento do teto salarial”, aponta Vanessa Campagnac.
Proporção de gastos extra-teto por tipo de rubrica (valores percentuais / 2023)
A licença-prêmio, que concede três meses de férias remuneradas a cada cinco anos trabalhados, é um exemplo dos benefícios que contribui para o acúmulo de remunerações acima do teto. Extinta em 1997 no Poder Executivo Federal, a licença ainda vigora no Ministério Público, permitindo a conversão dessas férias em dinheiro (não sujeito ao teto remuneratório devido ao seu caráter indenizatório). Entre 2019 e 2022, foram gastos R$ 438,6 milhões com o pagamento da conversão da licença-prêmio em dinheiro a servidores dos ministérios públicos da União, do Trabalho, Militar e do Distrito Federal. Nesses quatro anos, 2.089 procuradores do Ministério Público da União receberam, em média, R$ 184 mil cada um em licenças-prêmio.
Folgas convertidas em dinheiro ajudam a turbinar supersalários
Outro benefício de caráter indenizatório que turbina os salários de integrantes do Judiciário e do Ministério Público é a licença-compensatória, que originalmente era uma folga concedida a magistrados federais e do trabalho que se dedicam em mais de um juízo ou são responsáveis por muitos processos. Tal folga passou a ser convertida em dinheiro, em janeiro de 2023. O pagamento de licença-compensatória teve um crescimento de cerca de 400% entre 2023 e julho de 2024, pulando de R$ 100 milhões para mais de R$ 300 milhões.
Dados do governo federal mostram que, em 2021, as despesas anuais com os tribunais de Justiça e ministérios públicos passaram a representar 1,6% do PIB brasileiro. É um valor superior à média dos países emergentes (0,5% do PIB) e das economias mais avançadas (0,3% do PIB). De acordo com pesquisa de Luciano Da Ros e Matthew Taylor, de 2019, os magistrados brasileiros ganham muito mais que seus pares europeus ou norte-americanos em comparação com a renda média de seus países.
Um juiz federal brasileiro, por exemplo, ganhava em início de carreira, em 2015, o equivalente a 11,3 vezes o PIB per capita local, enquanto seus pares na Itália ganhavam apenas o dobro do PIB per capita italiano. Para juízes no final da carreira, no Brasil o valor era de 13,9 vezes em comparação com 6,7 vezes na Itália. A pesquisa também mostra a comparação internacional do custo do Ministério Público: enquanto no Brasil se gasta 0,32% do PIB, na Itália se gasta 0,09% do PIB, Portugal 0,06% e Alemanha e Espanha 0,2%.