“Alice perguntou: Gato Cheshire… pode me dizer qual o caminho que eu devo tomar? Isso depende muito do lugar para onde você quer ir – disse o Gato. Eu não sei para onde ir! – disse Alice. Se você não sabe para onde ir, qualquer caminho serve.”
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Governança e gestão por competências
Lewis Carroll, na obra “Alice no País das Maravilhas”, trazia essa passagem que cabe para muitas situações da vida cotidiana, mas duvidamos que ele um dia achasse que alguém usaria seu texto para falar sobre compras públicas. Se ele ficaria orgulhoso ou chocado com essa aplicação, aí já são outros quinhentos na discussão!
Você, caro leitor, deve estar se perguntando se está no texto certo. Está sim, mas se não viu nossas reflexões anteriores, volte algumas casas antes de avançar no tabuleiro. Viemos, desde nosso segundo texto, falando de alguns conhecimentos, habilidades, atitudes que os agentes que atuam nas compras públicas precisam dominar para realizar boas contratações. Também falamos um pouco da “vida como ela é” no diário do nosso sofredor comprador público e, chegamos, na última reflexão, na importância da gestão de pessoas para o êxito das compras públicas.
Esse caminho não foi à toa. Se pararmos para pensar em cada uma dessas peças do grande quebra-cabeça das contratações, parece faltar alguma coisa, aquilo que une, harmoniza e alinha o que está sendo feito. Como saber o perfil e os conhecimentos dos compradores se não sabemos as prioridades ou em que eles deverão focar seus esforços? Como ajudar a próxima edição do diário do comprador a ser menos sofrida, mas ainda terminar com a sensação do dever cumprido? E que dever é esse? Como ter uma gestão de pessoas que saiba quais resultados deve realizar e, portanto, saiba quais atores acionar, com quais conhecimentos, onde melhor alocá-los e qual ou quais estilos de gestão serão os mais adequados?
GOVERNANÇA E GESTÃO POR COMPETÊNCIAS
Esse rumo, sentido e objetivo a serem percorridos e alcançados são uma das funções daquilo que se chama governança. Termo cunhado no âmbito corporativo, veio se adentrando no setor público e, em pouco tempo, chegou às aquisições e contratações. Sua menção e recomendações de adoção começaram por meio da atuação dos órgãos de controle, especialmente pelo Tribunal de Contas da União [1], que viram a necessidade da adoção de “mecanismos de liderança, estratégia e controle (…) para avaliar, direcionar e monitorar a atuação da gestão das aquisições, com objetivo que as aquisições agreguem valor ao negócio da organização, com riscos aceitáveis.”.
Tema que já vinha associado à alta administração das organizações, agora ganhou mais espaço e solidez ao vir previsto, expressamente, na Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos – NLLC (Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021), prevendo que:
Art. 11 – O processo licitatório tem por objetivos:
(…)
Parágrafo único.
A alta administração do órgão ou entidade é responsável pela governança das contratações e deve implementar processos e estruturas, inclusive de gestão de riscos e controles internos, para avaliar, direcionar e monitorar os processos licitatórios e os respectivos contratos, com o intuito de alcançar os objetivos estabelecidos no caput deste artigo, promover um ambiente íntegro e confiável, assegurar o alinhamento das contratações ao planejamento estratégico e às leis orçamentárias e promover eficiência, efetividade e eficácia em suas contratações.
Pelo texto percebe-se que estamos lidando com um conceito multidimensional (FENILI, 2018)[2]. A instituição deverá se organizar tanto a partir de processos e de estruturas para realizar suas metas, como deverá ter clareza sobre quais perfis de profissionais serão demandados para realização das atividades. E é aqui, nesse ponto, que temos a conexão com um mecanismo da governança para o qual damos destaque: a gestão por competências.
Prevista também na Nova Lei de Licitações, em seu artigo 7º[3], como responsabilidade da alta administração, a gestão por competências pressupõe a definição de competências individuais que os agentes públicos deverão ter para desenvolver as funções tidas como essenciais, e que balizarão tanto a seleção e designação desses agentes como seu futuro desenvolvimento e capacitação (BRITO, 2022)[4].
Nesse sentido, não se definem as competências dos agentes olhando apenas para os processos de compras enquanto conjunto de atividades e documentos a serem cumpridos, mas, principalmente, para quais as competências organizacionais precisarão ser desenvolvidas a fim de realizar os objetivos estabelecidos, sejam aqueles constantes do planejamento estratégico organizacional, sejam os das leis orçamentárias ou os próprios objetivos do processo licitatório.
Por isso, ao se falar em governança, a alta administração tem papel fundamental na definição de para onde a organização deverá rumar, e o que impacta diretamente nos processos de aquisições e contratações e também para os demais processos. As equipes devem atuar em direção ao mesmo objetivo ou as entregas esperadas não serão feitas, ou levarão mais tempo para se concretizarem. E, para cada realidade institucional, mudam os objetivos e a priorização das políticas públicas, por exemplo, e, consequentemente, serão necessários diferentes tipos e níveis de conhecimentos, habilidades, atitudes e experiências, tanto dos agentes do nível operacional como dos níveis tático e gerencial.
A única certeza que se tem é quanto à necessidade de definição desses papéis, que orientarão a seleção dos agentes, e a essencialidade de “maior qualificação e certificação desses servidores, por meio de uma política de capacitação e de incentivos que garantam maior estabilidade e segurança no exercício da função” (BRITO, 2022, p. 17).
E aqui, a responsabilidade não se limita à alta administração, mas passa por cada um daqueles responsáveis pela gestão das contratações, bem como por cada um dos envolvidos em alguma das etapas da compra pública, pois são protagonistas no seu desenvolvimento, mas que não podem (nem devem) estar desamparados pelas instâncias superiores. Afinal, sem a clareza do para onde ir, qualquer caminho servirá. Sem saber quais resultados e metas alcançar, não haverá capacitação suficiente que supra lacunas de conhecimentos e habilidades. Sem saber aonde dará a rota do suposto labirinto das compras públicas, não há como medir resultados, muito menos buscar melhorias ou ajustar trajetórias. Enfim, se nossas Alices das compras públicas não souberem fazer a pergunta certa ao Gato de Cheshire, certamente ele desaparecerá de nossa frente e nem aquele sorriso restará para nos acalentar.
E agora fica a questão: sabendo aonde queremos chegar, quais caminhos temos ao nosso alcance para fortalecer e municiar os agentes públicos, especialmente, que lidam com as compras públicas? Avance uma casa e não perca a vez no próximo texto!
[1] Alguns acórdãos referenciais sobre o tema são os de números 2.622/2015 – Plenário, 1.546/2016 – Plenário e 508/2018 – Plenário.
[2] FENILI, Renato. Governança em Aquisições Públicas: teoria e prática à luz da realidade sociológica. Niterói: Impetus, p.380, 2018.
[3] Art. 7º Caberá à autoridade máxima do órgão ou da entidade, ou a quem as normas de organização administrativa indicarem, promover gestão por competências e designar agentes públicos para o desempenho das funções essenciais à execução desta Lei que preencham os seguintes requisitos.
[4] BRITO, Isabella. Governança em contratações públicas: a transformação passa pelos meios. Portal Licitação e Contrato, jul. 2020, Disponível em: <http://www.licitacaoecontrato.com.br/assets/artigos/artigo_download_62.pdf>. Acesso em: 23 mai. 2022.
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