Por Virgínia Bracarense Lopes, Isabela Gomes Gebrim, Andréa Heloisa da Silva Soares
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Conhecimentos técnicos e competências comportamentais
O processo de contratação pública é formado por várias etapas e conta com múltiplos atores envolvidos. De forma geral – e a Nova Lei de Licitações (Lei n° 14.133/2021) trouxe essa estrutura explicitamente -, uma compra pública passa por três grandes fases: a preparatória, a de seleção de fornecedores e a de gestão e fiscalização de contratos.
A fase preparatória inicia-se com a identificação de um problema ou necessidade a ser atendida, passando pelo seu entendimento detalhado e o levantamento das soluções disponíveis no mercado e cabíveis à Administração, porque nem tudo o que é desejado é possível; pela preparação dos documentos que irão nortear a licitação (termo de referência, edital, minuta de ata e/ou contrato); pela precificação do valor do bem ou serviço que será contratado; pela análise jurídica do procedimento; e finda na publicação do edital. Inicia-se, então, a fase de seleção dos fornecedores, quando os particulares interessados apresentam pedidos de esclarecimento, impugnações caso entendam haver ilegalidade no edital; propostas, passando-se à etapa de disputa entre eles; análise do cumprimento, pelo fornecedor mais bem classificado e com a proposta aceita, inclusive aprovação de amostra, se for o caso, das exigências jurídica, técnica, fiscal, social, trabalhista e econômico-financeira (ufa, sim, tudo isso tem que ser analisado pelo agente público); até chegar na decisão de com quem será firmado o contrato e as providências necessárias para sua formalização. Chega-se, então, na última etapa, quando se inicia o fluxo de entrega dos bens ou prestação dos serviços, competindo à Administração aferir a conformidade do atendimento das obrigações pelo contratado, atestando a tempestividade e a qualidade do objeto para fins de pagamento, bem como verificando situações de irregularidade que demandarão instauração de procedimentos de responsabilização e sanções.
Em um primeiro momento, você deve pensar: bom, sendo um processo de compras, lógico que tudo acontece no setor de compras! Ou, no máximo, envolve também o núcleo jurídico, já que tudo tem que estar dentro da legalidade. Ah, sentimos lhe informar: ledo engano, caro leitor! Só pelas atividades listadas em cada uma das etapas anteriores é possível perceber o quão diversificadas são as atividades executadas e, por isso, quantos conhecimentos, habilidades e atitudes diferentes alguém (ou “alguéns”) deve dominar para conseguir fazer um processo de contratação do início ao fim. Por isso que, só por essa primeira perspectiva, podemos dizer: comprar é quase um jogo, e ele é coletivo! E exige estudo, treino, resistência e resiliência!
Conhecimentos técnicos e competências comportamentais
Na fase preparatória, de grande importância pois determinará o sucesso ou o fracasso da contratação, devem atuar principalmente o setor demandante e outro que possua conhecimento técnico acerca do problema tratado e/ou das soluções que serão analisadas. Nessa etapa são necessárias competências tanto técnicas quanto comportamentais, como definição e enquadramento de problemas, análise de mercado, construção de cenários, visão sistêmica, foco em resultados, comunicação, análise de riscos, trabalho em equipe, análise de dados, técnicas de precificação (envolvendo estatística, matemática, economia), tomada de decisão, dentre outras. Esses departamentos e seus agentes, na maioria das vezes, não conhecem nada de compras públicas e, por terem atribuições muitas vezes relacionadas com as atividades-fim (ou core) da instituição, é recomendável que atuem conjuntamente com um representante da área de compras, que agregará o conhecimento das possibilidades e restrições de contratação no âmbito da legislação vigente, mitigando riscos ao processo.
Na seleção de fornecedores temos quase o oposto. Aqui entram os especialistas no processo de compras, que dominam as normas vigentes, as doutrinas e jurisprudências (infinitas), os procedimentos e sistemas envolvidos, e os documentos necessários para a instrução do processo administrativo. Porém, isso não basta! Por ser nessa etapa em que há a disputa entre os fornecedores e a análise dos documentos que certificarão o atendimento (ou não) aos requisitos mínimos necessários, os agentes públicos têm que saber analisar se o objeto ofertado atende aos requisitos técnicos exigidos (em conjunto ou com apoio da unidade demandante), conduzir negociações, analisar balanços patrimoniais e demonstrativos contábeis, identificar condutas suspeitas de conluio e fraude durante o processo, avaliar se o preço ofertado é inexequível, analisar recursos apresentados, responder mandados de segurança… Enfim, são verdadeiros maestros de algo que parece totalmente regulamentado e, claro, sustentado por soluções tecnológicas, mas que a cada licitação se deparam com novas emoções, precisando de intensa interlocução com aquelas áreas demandante e técnica atuantes na fase preparatória, além de apoio jurídico. E para fazer isso tudo, também precisam dominar competências comportamentais de trabalho em equipe, tomada de decisão, responder a demandas urgentes e contingências, lidar com pressão etc.
Chegando na última etapa, temos os fiscais e gestores de contratos, que precisarão, de forma geral, de duas perspectivas de conhecimentos distintos. Os fiscais devem dominar o conhecimento sobre o objeto, sabendo quando solicitar o bem ou serviço, realizar análise acerca da qualidade técnica do objeto entregue/prestado, identificar situações de descumprimento de obrigações e atestar o recebimento do bem ou prestação do serviço que subsidiará um fluxo de pagamento. Já os gestores necessitam saber questões de cunho mais legal-administrativo, verificando a manutenção das condições de regularidade do fornecedor, providências quanto ao pagamento, análise de situações de reajuste de valor, prorrogação contratual, repactuação de condições para manutenção do equilíbrio financeiro do contrato e, quando necessário, instauração de procedimento de apuração de irregularidades e aplicação de penalidades. Vê-se, novamente, que esses atores precisam de competências relacionadas ao conhecimento de legislação, processos e sistemas vigentes, bem como habilidades de negociação, comunicação, gestão de conflitos, análise de dados, dentre outras. E novamente temos a necessidade de esses agentes saberem articular e trabalhar em equipe, uma vez que sua atuação é conjunta.
Passadas as grandes etapas de uma contratação e a visualização dos agentes envolvidos, é importante ainda destacarmos três atores que têm forte influência no andamento dos procedimentos:
a) o jurídico, que irá promover o suporte e a conformidade legal dos atos, sendo ponto de apoio em momentos que precisam de interpretação e clareza quanto à aplicação da lei;
b) os órgãos de controle interno e externo, que orientam as práticas sob o viés de compliance e integridade emanando diretrizes e, também, acompanhando e auditando os processos para avaliar sua conformidade e o uso do recurso público;
c) a alta administração e demais lideranças envolvidas, que irão viabilizar (ou, infelizmente, dificultar) as condições necessárias para a boa condução das compras públicas, indo desde planejamento e priorização de atividades, garantia de capacitações dos atores para que tenham competências alinhadas ao que suas atividades demandam, apoio a situações críticas, estímulo à inovação, simplificação e uso de melhores práticas de contratação.
Podemos dizer que esses são os principais atores, internos ao setor público, que atuam nas compras públicas e que, para além da complexidade do processo de contratação, agregam a ele as peculiaridades, conflitos, oportunidades e dificuldades da dimensão do ser humano e de suas interações. E, por isso, não basta ter somente os conhecimentos técnicos relacionados ao processo, que, como vimos, são muitos e conquistados não apenas com estudo, mas com prática. Ainda é necessária toda uma camada comportamental, a qual tende a uma dinamicidade que acompanha a própria evolução das instituições, do papel do Estado e das compras públicas, das interações sociais e econômicas.
Fica então a questão: nossos agentes estão preparados para tudo isso? Considerando o contexto atual, são eles heróis ao conseguirem vencer essa maratona que é comprar, ou são vilões responsáveis por um processo que tem fragilidades e ineficiência? Ou ainda, são vítimas de uma estrutura que demanda muito além daquilo que eles estão aptos a ofertar? Não há resposta certa, ou melhor, talvez seja um pouco disso tudo! Resta, então, para além de uma avaliação teórico-procedimental, conhecer um pouco da vida desse alguém, suas dores, desejos, capacidades, limitações…
Esta nota é de responsabilidade dos respectivos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais os autores estão vinculados.
Virgínia Bracarense Lopes
Especialista em Direito Público (PUC-MG), bacharel em Direito (UFMG) e Administração Pública (Fundação João Pinheiro). Cursando o Master em Liderança e Gestão Pública, do CLP (turma 7). Com mais de 15 anos de atuação no setor público, concentra sua experiência em compras públicas, com foco em centralização e inovação, tendo participando de projetos premiados. Foi ganhadora do Prêmio Espírito Público 2019 na categoria Gente, Gestão e Finanças Públicas. Membra da Rede de Líderes MLG. É da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do Governo Federal. Professora na Escola de Governo da Fundação João Pinheiro, palestrante e autora de artigos nos livros Inteligência e Inovação em Contratação Pública e Terceirização na Administração Pública, da Editora Fórum. Membra efetiva do Instituto Nacional da Contratação Pública (INCP).
Andrea Heloísa da Silva Soares
Especialista em Direito Público (Unipac), bacharel em Direito (UFMG) e em Administração (UFMG), sendo premiada como melhor desempenho da turma pelo CRA/MG.
Com 27 anos na área pública; 18 na área administrativa, sendo 6 anos como superintendente de compras, contratos, logística e patrimônio. Atuação também em implementação da LGPD. Atualmente é Gerente Administrativo Financeiro da Conexis Brasil Digital e cursa Formação de Líderes em Cibersegurança (FIA). Palestrante e autora de artigo no livro Terceirização na Administração Pública, da Editora Fórum.
Isabela Gomes Gebrim
Graduada em Administração (UnB), pós-graduada em Gestão Pública (UPIS) e cursando MBA Executivo em Economia e Gestão: Planejamento, Financiamento e Governança Pública (FGV). Ganhadora do prêmio Mérito Acadêmico em Administração (CRA/DF). Premiada no 22° Concurso de Inovação (ENAP). Possui mais de 15 anos de experiência nas áreas de logística, contratações públicas e centralização de compras. Atuou como professora colaboradora na Universidade de Brasília, ministra cursos na ENAP e palestras e eventos de capacitação e possui artigos publicados nos livros Inteligência e Inovação em Contratação Pública e Terceirização na Administração Pública, da Editora Fórum. Foi finalista no prêmio Desafios da ENAP e participou como palestrante na Semana de Inovação (ENAP) em 2020 e 2021.