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Falta de visibilidade da Lei de Cotas Raciais no serviço público é problema grave
Cotas raciais no serviço público são dever do Brasil de reparação para pessoas negras
O Observatório das Políticas Afirmativas Raciais (Opará) é um grupo de pesquisa vinculado à Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), que nasce com a missão de desenvolver pesquisas, discussões e advocacy no âmbito das políticas afirmativas e das relações étnico-raciais no contexto institucional. Tendo como ponto de partida a questão racial no Brasil, compreendemos que a reparação à população negra continua necessária e urgente. Afinal, todas as estatísticas nacionais, em todas as áreas, demonstram com muita precisão esta realidade: a vulnerabilização da população negra fez parte de um projeto.
O Opará tem se notabilizado na produção de avaliações críticas, suportadas por evidências, de que a reparação pretendida com a lei de cotas raciais (LCR) no serviço público federal, Lei n.º 12.990/2014, não resistiu à pressão da branquitude para manter o status quo. A garantia da ineficácia da norma fez e continua fazendo parte de um projeto: para muitos, a verdadeira integração da população negra continua sendo um problema a ser evitado.
Em março de 2024, divulgamos o relatório “A implementação da Lei n.º 12.990/2014: um cenário devastador de fraudes”, elaborado em parceria com o Movimento Negro Unificado (MNU). No documento, apresentamos resultados de três anos de pesquisas baseadas em evidências de como instituições federais produziram mecanismos de burla ao direito da população negra firmado na Lei n.º 12.990/2014. Os dados evidenciam que não foram contratadas pessoas negras pela reserva de vagas da lei (ou pelas cotas, como preferirem chamar) no serviço público federal nos termos propostos pela norma.
Como apresentado em nosso relatório de pesquisa, a reprodução de mecanismos de burla nos editais de concursos públicos e processos seletivos simplificados (PSS) resultaram no fato de que, na maior parte dos casos, não houve sequer reserva das vagas nos documentos que regularam os processos de seleção de pessoas para ingresso no serviço público federal.
Falta de visibilidade da Lei de Cotas Raciais no serviço público é problema grave
Veja: a LCR prevê que “a reserva de vagas a candidatos negros constará expressamente dos editais dos concursos públicos, que deverão especificar o total de vagas correspondentes à reserva para cada cargo ou emprego público oferecido (§ 3º, do Art. 1º da Lei n.º 12.990/2014 – grifos nossos). Portanto, se o edital não expressou a reserva de vagas para cada cargo ou emprego público, não houve reserva de vagas imediatas pela LCR. Diante disso, também não houve contratação por cotas raciais, não nas vagas imediatas. Consequentemente, não há que se falar em implementação da Lei n.º 12.990/2014, mas sim na falta de implementação dela.
O Estado Democrático de Direito é regido pelas leis. Quando se trata do setor público brasileiro, esse respeito está impresso na Constituição da República Federativa do Brasil, no princípio da legalidade. Esse princípio exige o cumprimento rigoroso das normas. Aos servidores públicos resta apenas seguir o que está previsto em lei. Nem pode se furtar de aplicá-la, nem pode criar suas próprias regras.
Lei de Cotas existe para ser cumprida, e isso é um dever
Dois dispositivos da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LINDB) são interessantes para o debate aqui proposto. Sem estabelecer hierarquia, no art. 3º do Decreto n.º 4.657/1942 está expresso que “Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”. A Lei n.º 8.112/1190, que trata do regime jurídico dos servidores públicos, estabelece, em seu art. 116º, inciso 3, que um de seus deveres é “observar as normas legais e regulamentares”.
A LNDB estabelece, em seu art. 6º, que a “A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”. Nesse sentido, como estabelece a Lei n.º 12.990/2014, a reserva de vagas às pessoas negras nos concursos públicos federais entrou em vigor na data de sua publicação, 9 de junho de 2014. A única ressalva à não implementação da regra, são os editais que já haviam sido publicados no dia 09/06/2014 (art. 6º, parágrafo único).
A partir da entrada em vigor da LCR, todas as instituições públicas federais, bem como seus(suas) servidores(as), deveriam estar cientes da necessidade legal e moral de dar ampla publicidade à nova regra e se adequar a ela. No entanto, o relatório do Opará encontrou algo que fere, em duas direções, o Estado Democrático de Direito. Desconsideram a necessidade de certas instituições se adequarem à lei, e, por conseguinte, desrespeitam o direito da população alvo da política, ou seja, a população negra. A primeira experiência da população negra escravizada no Brasil foi viver numa terra sem direitos. Quando o direito nos alcança, assistimos, perplexos, às instituições públicas federais sequestrarem esse direito. Em nossa pesquisa, identificamos que um dos seis mecanismos de burla foi a “não publicização da norma (NPN)” nos editais. Essa modalidade de burla aconteceu quando a instituição deixou de mencionar em seus editais de certames a Lei nº 12.990/2014 (Oliveira, Santos e Santos, 2024). Ou seja, mesmo depois que a LCR entrou em vigência, houve editais que nem sequer citaram a norma. O sumário executivo do estudo apresentou os dados das instituições analisadas em que encontramos NPN. Em contratações via concursos públicos, o mecanismo de NPN foi reproduzido em editais de 23 instituições e em processos seletivos simplificados, esteve presente em editais de 51 instituições.
Cotas deveriam ser aplicadas para cargos temporários no serviço público
Na pesquisa, lemos em editais que a Lei n.º 12.990/2014 não abrange PSS. Nas apresentações de nosso relatório, ouvimos a mesma coisa. Para nós, do Opará, não há razoabilidade que a modalidade de contratação temporária de excepcional interesse público, regulada pela Lei n.º 8.745, de 9 de dezembro de 1993, não seja alcançada pela política de ação afirmativa expressa na lei de cotas raciais e não contribua para os objetivos propostos, desde sua formulação, para a promoção da igualdade racial.
Este entendimento também é conclusivo em decisão da Justiça Federal, em 2022, no âmbito da Ação Civil Pública n.º 5043371-85.2022.4.02.5101/RJ, que confirmou liminar e julgou procedente o pedido para “determinar que a União adote, por todos os seus órgãos, autarquias e fundações, a reserva de 20% das vagas oferecidas nos processos seletivos regidos pela Lei n.º 8.745/93, em analogia à Lei n.º 12.990/2014” (trecho extraído da Ação Civil Pública n.º 5043371-85.2022.4.02.5101/RJ).
Cotas raciais no serviço público são dever do Brasil de reparação para pessoas negras
A reparação à população negra não veio com a Lei Áurea e tardou para se efetivar em políticas públicas de ações afirmativas. Quase um século depois do “fim” da escravização, Abdias do Nascimento propôs Projeto de Lei n.º 1332/1983, que previa que todos os órgãos da administração pública, direta e indireta, de níveis federal, estadual e municipal as autarquias e fundações; as Forças Armadas; o Poder Judiciário, o Poder Legislativo e o Poder Executivo tomasse medidas de ação compensatória para ter em seus quadros de servidores, funcionários e titulares, a participação de pelo menos 20% de homens negros e 20% de mulheres negras. O então deputado federal propunha que a previsão acontecesse em todos os escalões de trabalho e de direção, particularmente entre aquelas funções que exigem melhor qualificação e que são mais bem remuneradas e em que, diga-se de passagem, também é onde encontramos menos pessoas negras atuando profissionalmente.
Apesar da proposição na década de 1980, foi somente em 2014 que o Brasil passou a ter a primeira Lei de Cotas com recorte exclusivamente racial, para acesso ao mercado de trabalho do serviço público, a Lei nº 12.990/2014.
Mais de 40 anos depois, nossa pesquisa publicada em 2024 evidenciou que editais destinados à seleção de pessoas ao serviço público, continuaram a não publicizar o direito da população negra expresso na Lei n.º 12.990/2014, demonstrando com evidências que, apesar do avanço, ainda há ausência de medidas eficazes de reparação para mais de 55% da população brasileira que se autodeclara preta ou parda (negra). Ainda continuamos social e economicamente atrás de outros grupos.
É por isso que, no que diz respeito à questão racial no Brasil, o Opará seguirá defendendo e lutando para que a reparação à população negra continue necessária, e é urgente escrever novas histórias aos que estão aqui e aos que virão. Dar visibilidade às ações afirmativas é o mínimo que as instituições do Estado brasileiro devem fazer.
Em nossa compreensão, enquanto grupo de pesquisa vinculado a uma universidade pública federal, toda e qualquer modalidade de contratação que se utiliza de recursos públicos decorrentes da contribuição dos brasileiros e brasileiras (estágios, contratos temporários, funções gratificadas, cargos comissionados, licitações, financiamentos com recursos públicos, entre outros) deveria assegurar o princípio constitucional da igualdade à população negra. Para nós, a medida de reparação é um dever, nos termos do que prevê a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, ratificada pelo Brasil como Emenda Constitucional, conforme o Decreto n.º 10.932, de 10 de janeiro de 2022.
Reparar é reconhecer o que a história nos negou. A história nos negou o acesso a políticas públicas que deveriam ter produzido outra história para a população negra deste país. Não é aceitável que, em pleno século XXI, documentos públicos continuem a não dar publicidade a nossos direitos de pessoas negras. Se algumas instituições atacaram o Estado Democrático de Direitos sem que fossem incomodadas pelo próprio Estado, que recados estão sendo dados à população negra?
Referência Bibliográfica
OLIVEIRA, A. L. A.; SANTOS, A. G.; SANTOS, E. S. Relatório de pesquisa baseado em evidências: A implementação da Lei nº 12.990/2014: um cenário devastador de fraudes. Petrolina-PE: UNIVASF, 2024. 947 p.
A nota são de responsabilidade dos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais eles estão vinculados.