O desafio de promover a governança na segurança pública no Brasil (parte 1)

Publicado em: 10 de outubro de 2023

Índice
O pacto federativo e suas implicações na segurança pública
Uma disputa de conceitos e o ofício do policial

A República.org promoveu dois encontros da rede República com profissionais públicos e pesquisadores da área de segurança para debater o tema das carreiras do setor sob a ótica de gestão de pessoas. Foram debatidos os seguintes tópicos: governança, ingresso e concursos públicos, formação e capacitação continuada, profissiografia e mapeamento de competências, além de valorização profissional e a saúde dos profissionais de segurança pública. Esta é a primeira de uma série de cinco notas que sistematizam a discussão e trazem reflexões sobre o caminho que precisamos avançar como sociedade nessa temática. 

Os textos trazem as contribuições das participantes em cada um dos temas debatidos durante os encontros. Desta nota participam Ana Paula Pellegrino, doutoranda em ciência política e pesquisadora em segurança pública; Ana Cristina Faulhaber, inspetora da Polícia Penal do Rio de Janeiro e especialista em políticas e gestão de segurança pública; Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz; Kelly Carvalho, inspetora da Polícia Penal do Maranhão e Especialista em Gestão Pública; Gracimeri Gaviorno, doutora e mestre em direitos fundamentais, que já atuou como secretária de Direitos Humanos e ouvidora da Secretaria de Segurança Pública do Espírito Santo e como chefe da Polícia Civil do mesmo estado; e Vanessa Campagnac, doutora em ciência política, especialista em segurança pública e gerente de dados e comunicação da República.org. 

Nesta primeira nota, apresentamos uma discussão sobre governança; o desafio da integração de diferentes instituições de segurança pública no contexto do pacto federativo brasileiro; as diferenças de normativas entre os entes; e o papel e as prerrogativas dos ofícios de policial e trabalhador da segurança pública.

O pacto federativo e suas implicações na segurança pública

O pacto federativo brasileiro cria um ambiente de debate sobre o equilíbrio da autonomia dos entes federativos e a organização integrada de políticas nacionais. Isso acontece para as diversas áreas da gestão pública, e não é diferente na área da segurança. Entretanto, a ausência de diretrizes nacionais e políticas integradas pode ocasionar desarticulação na implementação de políticas, o que traz consequências diretas à população. A ex-chefe da Polícia Civil do Espírito Santo, Gracimeri Gaviorno, apontou essa dualidade em sua fala: 

Penso que, diante desse protagonismo do governo federal, mesmo que a gente fale de pacto federativo, sonhando com uma coisa e lutando por outra, a gente vive realmente uma dualidade entre ter autonomia dos estados, enquanto, ao mesmo tempo, a gente quer procedimentos únicos federais de impacto.”
Gracimeri Gaviorno

Gracimeri Gaviorno: A discussão sobre o pacto federativo é um grande desafio para o Brasil, pois falamos de Federação, mas não admitimos a Federação de fato. Sempre queremos uma unificação nacional. A gente discute a desconcentração, mas o tempo todo a gente busca a concentração. Nas carreiras de segurança, quando o governo federal começou, nos anos 2000, a pensar em segurança como profissionalização, houve um protagonismo no avanço de todas as formas e de todos os eixos dentro da segurança pública. Por exemplo, defendemos a questão de ter um ministério próprio, mas demoramos muito tempo para criar, em forma de lei, o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP). E, quando pensamos que ele havia avançado, ele se estagnou. Penso que, diante desse protagonismo do governo federal, mesmo que a gente fale de pacto federativo, sonhando com uma coisa e lutando por outra, a gente vive realmente uma dualidade entre ter autonomia dos estados, enquanto, ao mesmo tempo, a gente quer procedimentos únicos federais de impacto. Mas sabemos a dificuldade que enfrentamos de deixar mecanismos, profissões e instituições tão importantes para a democracia sendo manipuladas por interesses locais e que fogem do conceito de ‘polícia cidadã’ ou da ‘carreira cidadã de segurança’. Acho que a Lei do SUSP traz isso, e ela é muito importante para a gente discutir a participação da sociedade, o fortalecimento dos Conselho de Segurança, por exemplo, pois nos ajuda a pensar a carreira de segurança.

A ausência de uma articulação nacional e de diretrizes únicas sobre uma determinada carreira de Estado produz graves consequências na execução e implementação de políticas coordenadas. As especialistas Ana Faulhaber e Kelly Cristina contaram sobre as implicações da falta de uma articulação nacional no sistema penitenciário: 

Quanto ao Sistema Penitenciário do Brasil, os estados têm normativas internas diferenciadas. Não há um protocolo nacional, e fica a critério dos gestores como administrar a execução da pena. Não há uma regulamentação nacional da carreira com as atribuições específicas.”
Ana Faulhaber

Ana Faulhaber: A polícia penal foi a última carreira normatizada nacionalmente, entrando no artigo 144 da Constituição Federal1. Então, apesar de ser uma carreira antiga, já que os presídios existem, no mínimo, há uns duzentos anos, só agora que a carreira realmente entrou no rol da segurança pública e, mesmo entrando na segurança pública, antes nós éramos carcereiros, antes nós éramos agentes penitenciários, cada estado tinha uma nomenclatura para esse cargo e em cada estado esse cargo estava em algum lugar na área de segurança pública. Havia alguns que nem na segurança pública estavam, e sim na Educação ou com Direitos Humanos. E, com essa entrada na Constituição Federal, no artigo 144, chegamos a uma carreira de policial penal, porém continua a mesma coisa: cada governo gerencia de uma forma diferenciada, com protocolos diferenciados, o sistema prisional de seus estados. O policial penal no Rio de Janeiro tem uma responsabilidade; no Maranhão, pode ser que seja diferente. E a Polícia Penal Federal ainda não tem a carreira regulamentada, então não existe uma diretriz nacional. É importante considerar que os policiais penais federais têm, no seu dia a dia, uma realidade completamente diferente da dos policiais penais estaduais. É como se fosse a Polícia Federal e a polícia civil. Então, é muito complexo pensar sobre a identidade da polícia penal. Isso é um problema muito grave em que a gente se encontra e, pessoalmente, como policial penal, não considero ser a melhor denominação para a profissão porque, de certa forma, militarizou a nossa carreira, transformando-a em polícia. Eu vejo meus colegas pensando mais em policiamento do que em ressocialização, e as duas coisas devem andar juntas.

A falta de padronização de procedimentos, protocolos e diretrizes gerais sobre a atuação policial traz consequências diretas à execução das políticas de segurança. Essa padronização é desafiadora em virtude da necessidade de diretrizes e desenhos institucionais distintos entre as unidades da federação e as diferentes corporações policiais.”
Kelly Cristina

Kelly Cristina: É muito importante essa padronização de procedimentos nos sistemas penitenciários de todos os estados. Em alguns, o sistema penitenciário está alocado na Secretaria de Segurança Pública como um anexo dentro de uma estrutura, que acaba de alguma maneira não sempre priorizada dentro daquilo que é o seu escopo de trabalho. Dentro de outra conjuntura, quando a gente trata do sistema penitenciário, fala-se muito da Lei 7.210/84, que é a Lei de Execução Penal, que já até caducou, porque não traz detalhamento e ainda necessita de muita atualização, embora traga as diretrizes do que é o nosso trabalho. No entanto, cada estado faz de uma maneira. Trazendo um pouco da nossa experiência, eu já fui diretora de unidade prisional também em tempos em que nós não tínhamos padronização de procedimentos. Estou falando mesmo de instruções normativas dentro do sistema penitenciário que tratem acerca de todos os procedimentos, tanto os que estão alocados na área eminentemente de segurança quanto aqueles que estão na área de humanização, que é a área pela qual sou responsável. A falta de normativas de procedimentos bem traçados, de diretrizes para os servidores e para os gestores, causa, de fato, uma série de confusões na hora em que o trabalho precisa ser executado. Além disso, ainda há ausência dessa padronização de procedimentos de normativas específicas para cada coisa que você vai realizar dentro do sistema penitenciário.

 Uma coisa que também é essencial para o sistema penitenciário é que a gente consiga alocar a carreira nos cargos de poder do sistema penitenciário. Nós somos os profissionais formados para trabalhar no sistema penitenciário, então a capacidade técnica que esses profissionais têm muitas vezes não é priorizada. A gente vem dessa realidade aqui no Maranhão, e isso acontece em vários estados: muitas vezes, secretários, secretários adjuntos e outros cargos de decisão são indicações políticas ou profissionais de outras áreas. Isso gera uma grande barreira na entrega dos nossos resultados. A gente ainda tem o sistema penitenciário no país muito perdido acerca daquilo que a gente precisa fazer e de quais resultados nós devemos alcançar. 

A falta de padronização de procedimentos, protocolos e diretrizes gerais sobre a atuação policial traz consequências diretas à execução das políticas de segurança. Essa padronização é desafiadora em virtude da necessidade de diretrizes e desenhos institucionais distintos entre as unidades da federação e as diferentes corporações policiais. A definição de metas estratégicas e resultados esperados nacionalmente delineia o projeto de segurança pública que se tem para o país e é fundamental para a definição de qual perfil de profissional queremos. Termos um sistema penitenciário com um caráter estritamente ostensivo ou com elementos socioeducativos, por exemplo, passa por essas definições. A partir das falas aqui sintetizadas, é possível perceber que a identidade do ofício do policial tem implicações diretas nos objetivos que queremos alcançar como sociedade, impulsionados pelas carreiras de segurança pública, e é objeto da próxima seção.

Uma disputa de conceitos e o ofício do policial

A distinção entre a identidade policial e quais são as carreiras da segurança pública foram temas recorrentes no tópico de governança, pois é a definição teórica que terá efeito na prática do ofício. Não há consenso para alguns tópicos na área, como o próprio conceito do que é ser um profissional de segurança, o qual é geralmente definido como aquele que faz parte do Sistema Único de Segurança Pública e está, portanto, inserido no artigo 144 da Constituição Federal, por exemplo.  

O que é o artigo 144? 
Quando a temática é segurança pública, na ótica do artigo 144 da Constituição Federal, estão incluídas as carreiras de policial federal, policial rodoviário federal, policial ferroviário federal, policial civil, policial militar e corpo de bombeiros militar e, recentemente, polícias penais estaduais, federal e  distrital.

O Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) inclui, além das carreiras citadas no art. 144, os então agentes penitenciários, agora denominados policiais penais, os guardas municipais e os “demais integrantes estratégicos e operacionais do segmento da segurança pública”2.

As pesquisadoras Ana Paula Pellegrino e Carolina Ricardo relembraram a disputa conceitual e político-corporativa sobre outras carreiras, além das policiais, que fazem parte do que pode ser entendido como segurança pública. 

Ana Paula: Está em curso um debate sobre quais são as carreiras de segurança pública, se somente as citadas no 144 ou todas as incluídas no SUSP, que é mais amplo. Como é que as vemos? Elas são carreiras de segurança pública ou são todas de polícia? Elas se transformam em polícia ao entrar dentro dessa categoria? E essa transformação em polícia é ou não é necessária? Ao falarmos de segurança pública, estamos falando apenas de polícia ou existem carreiras de segurança pública que não precisam ser pensadas a partir desse marco?3

Carolina Ricardo: Esse ponto é importante, pois pensamos imediatamente a carreira de segurança pública como carreira policial. E, nesse sentido, há  um desafio: se quisermos realmente pensar o que são outras carreiras não policiais no âmbito da segurança pública, é preciso começar esse debate muito antes. Por exemplo, a perícia é um ofício com uma formação tão ampla, uma gama de especialidades tão variadas, que me questiono: por que que precisa ser uma carreira policial? 

Enfim, o desafio aqui é pensar quem faz a prevenção social ou tem outras naturezas de atuação que têm a ver com governança, gestão de dados e informação e gestão de pessoas. Isso implica em trazer para mesa outros grupos, não só as secretarias de segurança e as polícias. A gente sabe que as questões são mais complexas, e as próprias polícias dizem isso. A questão não é só policial, embora fique na conta da polícia. Então, acho que deve-se deixar reservada para algum momento uma discussão de carreiras de segurança não policiais. E, nesse sentido, é importante sermos estimulados a pensar, para que o debate não foque apenas em carreiras policiais. 

“Trazer à tona essa discussão do que significa ser policial e de como essa definição do ofício produz efeitos em objetivos estratégicos do país na área da segurança pública é fundamental para a produção de políticas mais efetivas e coerentes.”
Carolina Ricardo

O ponto trazido sobre o papel da intersetorialidade na resposta a nossos problemas sociais sugere a importância de pensarmos na atuação conjunta, não apenas das diferentes corporações policiais, mas também das diferentes secretarias. A especialista em segurança pública Vanessa Campagnac trouxe à discussão o debate sobre a importância das leis orgânicas e como elas devem refletir os desafios reais das instituições. Carolina Ricardo complementou com uma fala sobre o papel que a legislação tem de desenhar a identidade policial.

Carolina Ricardo: A lei orgânica das polícias idealmente é uma oportunidade de se pensar a identidade policial. Pensar na lei orgânica da Polícia Militar, por exemplo, é pensar no ofício profissional do policial militar. Mas, quando a discussão posta foca na exigência de bacharelado em Direito para ser oficial, por exemplo, nós concentramos a discussão em interesses corporativos a partir de referências de estados que têm esse desenho, o que leva para uma visão  excessivamente jurídica, sem margem para pensar no ofício do policial militar. Então, repensar a lei orgânica das polícias é uma oportunidade de se pensar esse ofício, mas, infelizmente, na prática, acaba sendo um debate bastante corporativo. A dimensão corporativa faz parte e deve ser incluída, mas acaba-se perdendo a oportunidade de discutir o que é ser policial militar ou o que é ser policial civil. Ser policial civil não é ser advogado ou um promotor de justiça. O debate tem se focado na dimensão jurídica, com pouco espaço para a participação mais ampla da sociedade civil.  

A discussão sobre as leis orgânicas das polícias no Brasil (polícia militar e polícia civil) poderia ser uma excelente oportunidade de se debater a profissão, o ofício e o mandato policial (qual/quais polícias o Brasil quer e precisa), mas, acompanhando a forma como o debate tem se dado, as discussões acabam se voltando quase exclusivamente aos interesses corporativos. Falta uma identidade mais clara às diferentes carreiras policiais, que acabam se voltando para o modelo jurídico.

Trazer à tona essa discussão do que significa ser policial e de como essa definição do ofício produz efeitos em objetivos estratégicos do país na área da segurança pública é fundamental para a produção de políticas mais efetivas e coerentes. Esta nota teve como principal objetivo fomentar o debate sobre o desafio da governança das carreiras policiais e estimular outros debates que podem nos ajudar a pensarmos em carreiras civis e militares mais alinhadas com a democracia. Esse tópico será complementado na próxima nota, que tratará das formas de ingresso nas carreiras de segurança pública e concursos públicos. 

Referências bibliográficas

1A Emenda Constitucional 104/19 adiciona ao rol das carreiras listadas no artigo 144 as polícias penais estaduais, a  federal e a distrital. Acesso em: https://www.conjur.com.br/2019-dez-12/opiniao-policia-penal-novidade-sistema-seguranca-publica
2https://www.gov.br/mj/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/susp
3Em uma decisão recente, o STF decidiu pela inclusão de guardas municipais no Sistema de Segurança Pública. A corte estabeleceu esse entendimento em agosto de 2023. Esse reconhecimento estabelece as guardas como forças policiais, o que lhes dá possibilidade de condução de suspeitos a delegacias, por exemplo, além de outras atividades. Fonte: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=512996&ori=1.

A nota é de responsabilidade das autoras e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais elas estão vinculadas.

Paula Frias: Cientista Social pela UFRJ e mestre em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ (IESP-UERJ). Trabalha como Analista de Dados na República.org e anteriormente trabalhou com monitoramento de política públicas e produção de indicadores sociais no Instituto Pereira Passos e na ONU-Habitat.

Ana Sales: graduanda em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e em Análise e Desenvolvimento de Sistemas pelo Centro Universitário Augusto Motta (UNISUAM). É estagiária na República.org na área de dados e já trabalhou com Educação Ambiental, mais especificamente com macrotendência crítica, em escolas públicas do Rio de Janeiro. É uma das fundadoras da Liga de Educação Ambiental da UERJ (LEducA).

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