Índice
A gestão de pessoas no Sou da Paz

Em 2018, fui selecionada para participar do “Programa República Fellows – Residência em Capital Humano”, realizado pela República.org. O objetivo era aprofundar a discussão e a formação no tema de incentivos não financeiros aos profissionais do setor público e realizar experimentos concretos em diferentes áreas de políticas públicas para testar caminhos para estimular a aplicação desses estímulos. O programa durou cerca de nove meses, entre 2018 e 2019, e foi uma das experiências mais enriquecedoras de minha trajetória profissional e pessoal. Fez muito sentido me agregar ao propósito do República.org de investir em gestão de pessoas, que é um dos problemas centrais do serviço público brasileiro, além de parte essencial do trabalho da organização. Ao longo do programa, pude interagir com outros participantes e com especialistas, propondo e testando soluções para o sistema prisional feminino do Rio de Janeiro, meu campo de atuação. 

Em conjunto com outras duas participantes, Ana Christina Faulhaber, então coordenadora do Sistema Prisional Feminino do Rio de Janeiro, e Ideli Domingues, psicóloga especialista em transdisciplinariedade, formamos o trio que realizou o experimento voltado para as inspetoras femininas atuantes no sistema prisional. Essas profissionais são responsáveis, entre tantas outras funções, pela custódia das mulheres privadas de liberdades no sistema prisional feminino do Rio de Janeiro. Fizemos, portanto, uma imersão na Cadeia Pública Joaquim Ferreira, que custodiava mulheres em prisão provisória, onde buscamos entender os fatores que motivavam e desmotivavam as inspetoras. Também procuramos, a partir de uma escuta empática e de atividades com a arte e com o belo, construir com as agentes caminhos para aumentar a motivação, e, assim, o engajamento1

Cinco anos depois, ainda sinto a ressonância daquela experiência única. Não é trivial ressaltar, por exemplo, que, logo após encerrada a minha participação no programa, tornei-me diretora-executiva do Instituto Sou da Paz. E, desde o primeiro momento em que assumi o posto, trouxe comigo um olhar sedimentado pela experiência junto à República.org: um olhar para a equipe, para as pessoas, para o grupo de profissionais que ajudaram e ajudam a fazer do Sou da Paz a organização que ela é. Mostrando que cuidar das pessoas e fortalecer a equipe é algo que se dá em todas as áreas e setores, tanto no público, como no terceiro setor.

Nascido há 25 anos, o Sou da Paz surgiu destinado a colocar na agenda pública a importância do controle de armas para a redução da violência no Brasil. Em 1996, uma pesquisa da ONU apontava o Brasil como o país em que mais se matava com armas de fogo em todo o mundo. Desde então, o Sou da Paz seguiu trabalhando, em parceria com instituições policiais, para construir modelos democráticos e eficientes de policiamento. Com organizações e governos locais, o instituto também desenvolve metodologias de prevenção da violência, além de dedicar esforços contínuos para a qualificação do debate público.

Não se faz tudo, nem se chega aonde o Sou da Paz chegou, sem pessoas qualificadas e com especial espírito público. Ainda que não seja uma organização do serviço público, trata-se de uma organização da sociedade civil, de interesse público, que trabalha em parceria com governos em todos os níveis para a construção de políticas públicas. Portanto, a correlação entre o nosso trabalho e o serviço público é clara e necessária. Além disso, olhar para os profissionais do terceiro setor me parece fundamental, uma vez que são profissionais bastante movidos por fatores motivacionais intrínsecos, como a vocação e o propósito, sem deixar de lado as necessidades práticas, como os aspectos financeiros – os fatores motivacionais extrínsecos2.

A gestão de pessoas no Sou da Paz

Como diretora-executiva, ao longo desses cinco anos, pude desenvolver uma série de políticas para fortalecer a equipe e promover incentivos para o seu trabalho. Embora sejamos uma equipe pequena, hoje formada por cerca de 25 profissionais, entendemos que havia a necessidade de um espaço institucional específico. Foi a partir dessa convicção que criamos uma área de desenvolvimento institucional, que tem como eixo fundamental estruturar e apoiar a gestão de pessoas. A área criada tem status de gerência, o que dá uma centralidade importante na governança do Sou da Paz.  Além da gerente e da profissional que trabalha com gestão de projetos, trouxemos um profissional especializado, o analista de pessoas. Para aprofundar o olhar para as pessoas e a capacidade de contribuir para o seu desenvolvimento, fizemos uma revisão profunda da avaliação de desempenho da equipe, buscando dialogar com valores e princípios do Sou da Paz, além de sua adequação com o perfil, o interesse e a trajetória de cada profissional da organização. Também incluímos um recorte racial e de gênero nessa avaliação.

A partir daí, estruturamos um plano de desenvolvimento individual, com o qual se pode fomentar o desenvolvimento das pessoas e seus incentivos, esforços para incentivá-las a continuar no Sou da Paz e aperfeiçoar seu propósito institucional e pessoal. Nesse plano, oferecemos possibilidades de formação, aprendizado e/ou aperfeiçoamento da língua inglesa, mentoria, espaços de troca e formações técnicas específicas. Por exemplo, uma profissional da área de pesquisa recebe incentivos para trabalhar sua formação em metodologia, e nossa equipe recebe formação geral sobre questões raciais, o que é tão importante quanto. O foco nos incentivos não financeiros permeia todo o trabalho da área de desenvolvimento institucional. Ainda que busquemos permanentemente melhorar a remuneração e os benefícios de todos e todas as profissionais, o foco nos incentivos não financeiros é também uma prioridade. Os incentivos não financeiros são essenciais também para fortalecer esses e essas profissionais, inclusive para quando saírem em busca de novas oportunidades no mercado de trabalho. 

O resultado é uma equipe mais fortalecida, mais diversa e mais profissionalizada – compatível com as exigências e os desafios do Brasil e do terceiro setor. Por suas semelhanças com profissionais do setor público e consciente da tarefa complexa a que nos propusemos, é possível reconhecer que, em meio a esses avanços do Sou da Paz, enxergo o aprendizado proporcionado por aquela experiência de cinco anos atrás. Um legado importante para a organização, para a equipe que a integra e, especialmente, para mim que a dirijo – uma liderança que, com orgulho, fez parte do República Fellows.

Referências Bibliográficas

1Para maiores detalhes sobre o experimento ver: FAULHABER, Ana Christina; RICARDO, Carolina de Mattos; DOMINGUES, Ideli. Como engajar e motivar Inspetoras de Segurança e Administração Penitenciária no trabalho de custódia e ressocialização das mulheres privadas de liberdade. In: Saberes Prisionais: Estudos e Pesquisa / Janaina de Fátima Silva Abdalla, Caroline Toledo de Oliveira, Ana Christina Faulhaber (orgs.). Rio de Janeiro: SEAP-EP, 2020.

Ver ainda o caso-síntese do experimento “Como engajar inspetoras no trabalho de custódia e ressocialização das mulheres privadas de liberdade no Rio de Janeiro”, disponível no link 2.3.1 Agentes penitenciárias de prisão feminina no Rio de Janeiro.pdf, acessado em 01/06/24.

2A literatura apresenta dois tipos de fatores capazes de motivar profissionais de uma forma geral:

  1. Fatores motivacionais intrínsecos: são aqueles relacionados à natureza do seu trabalho, tais como comportamento pró-social, prazer e identificação com o trabalho, comprometimento com fatores institucionais, senso de dever, busca por desenvolvimento pessoal e profissional, status do cargo, busca por autonomia e responsabilidade na execução do trabalho, responsabilidade de servir à sociedade, e reconhecimento dos colegas.
  2. Fatores motivacionais extrínsecos: remuneração financeira, ambiente do trabalho, segurança e saúde no trabalho, outros benefícios.
  3. Importante ressaltar que todo o trabalho voltado ao desenvolvimento institucional e à gestão de pessoas só é possível de forma coletiva, contando com o engajamento e parceria das e dos profissionais que trabalham ao meu lado no Sou da Paz.

Carolina Ricardo

É diretora-executiva do Instituto Sou da Paz. Advogada e Socióloga. Mestre em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Foi assessora de projetos no Instituto São Paulo Contra a Violência, consultora do Banco Mundial e do BID em temas de segurança pública e prevenção da violência. Foi fellow no programa Draper Hills Summer Fellows oferecido pelo Center on Development, Democracy and the Rule of Law da Universidade de Stanford, Califórnia.

Inscreva-se na nossa newsletter