Quando a sociedade enfrenta uma tragédia coletiva, os olhos se voltam para a capacidade do Estado de prevenir e enfrentar os problemas. Foi assim na pandemia de COVID-19, no desastre ambiental de Mariana e Brumadinho e, agora, no Rio Grande do Sul, entre tantos outros. 

Algumas vezes, a ação do Estado corresponde às expectativas da população, outras vezes, não. No caso da pandemia, a administração pública mostrou a importância de um Estado organizado para prestar serviços à população através do SUS, apesar de termos problemas de gestão e financiamento na saúde pública. 

Na tragédia atual do Rio Grande do Sul, ficou evidenciado o quanto ainda temos que avançar na melhoria das capacidades de gestão da administração pública, particularmente nas de planejamento, prevenção, cooperação Interfederativa, na colaboração entre os setores público e privado e nas regras de gestão e controle. 

Apesar da repetição de tragédias humanitárias e ambientais e da persistência de graves problemas, como desigualdade, pobreza, violência, educação, saúde e mobilidade urbana, ainda não conseguimos priorizar na agenda política um debate aprofundado dos problemas que impedem um bom desempenho da administração pública.

 A reforma administrativa passou a ser quase sinônimo de reorganizar as carreiras dos servidores públicos para reduzir o custo do Estado. Não se considera, nessa visão simplista, a importância dos ambientes político, institucional e normativo que condicionam o desempenho da administração pública.

O Estado pode muito, mas não pode tudo.

A tragédia atual nos coloca, de novo, diante de uma oportunidade de aprendizado sobre como tratar os complexos problemas de ação coletiva que desafiam a sociedade brasileira. Ela nos permite identificar algumas características da nossa cultura política que condicionam o funcionamento da administração pública. 

Uma prática recorrente da nossa cultura política é procurar, imediatamente, algum culpado pela tragédia em questão. Embora muitos dos problemas enfrentados pela sociedade já tenham ultrapassado vários governos de colorações partidárias diversas, gostamos de achar um culpado que, em geral, é o incumbente de plantão. É claro que devemos, sim, apurar responsabilidades, mas tal atitude, de maneira isolada, não resolverá os problemas atuais e futuros. 

Ao insistir nesse tipo de comportamento, contribuímos para que os problemas da sociedade não sejam discutidos com a profundidade necessária, o que dificulta a elaboração de um diagnóstico consistente, que oriente as soluções possíveis. Assim, os problemas se prolongam no tempo, tendo como grave consequência a desqualificação do Estado aos olhos da população como provedor de serviços públicos que melhorem a sua qualidade de vida.

Também achamos mais fácil delegar a alguém a tomada de providências para resolver nossos problemas coletivos. Essa prática ocorre porque achamos que o Estado resolve todos os problemas e que é apenas uma questão de vontade política. Não é bem assim. O Estado pode muito, mas não pode tudo.

Não há solução fora da boa política.

Infelizmente, essa expectativa da população em relação ao Estado se fortalece, pois encontra eco em discursos políticos de grupos que têm interesse em desgastar o governo de plantão para obter vantagens eleitorais nas eleições seguintes. Essa visão oportunista e de curto prazo nos leva ao grave problema da qualidade da nossa liderança política, que deveria promover um debate sério e aprofundado dos problemas da sociedade para apontar o melhor caminho para solucioná-los em vez de estimular uma disputa pelo protagonismo político na gestão das crises e o simplismo no diagnóstico.

Além disso, em todas as tragédias humanitárias que passamos, a solidariedade da população foi fundamental, e, sem essa cooperação, não conseguiríamos superá-las. Todavia, não valorizamos a organização e a mobilização da população como práticas permanentes e necessárias para resolver vários problemas comunitários e evitar a postergação da resolução de questões coletivas por parte dos governantes.

Passada a crise, temos o hábito de esquecer o ocorrido e seguir em frente. Ocorre que, sem cobrança da sociedade, os governos não funcionam direito, e a classe política tende a seguir a demanda que seus eleitores estão fazendo no curto prazo.

Nossa classe política, por interesse eleitoral, não está conseguindo se orientar por uma visão de longo prazo necessária para superar os desafios coletivos da sociedade. Agindo assim, enfraquece seu papel de liderar a sociedade e desgasta a ação política junto à população, conforme nos mostram as pesquisas de opinião.

Outro traço cultural, com grande crescimento recente, é a negação da ciência como orientadora das decisões públicas e privadas. Esse tipo de pensamento se manifesta, por exemplo, nas questões relacionadas à saúde ou na crise ambiental. Alguns voltaram a pensar e agir como no período pré-iluminista.

Não há soluções simplistas nem ‘salvadores da pátria’, embora sempre apareçam candidatos. Por isso, no processo eleitoral que se aproxima, a população tem a responsabilidade de dar uma contribuição relevante para a superação desses desafios, elegendo candidatos comprometidos com o interesse público, com o aperfeiçoamento da gestão pública, e que não ofereçam soluções fáceis para problemas complexos. Precisamos entender que a atividade política importa muito na vida cotidiana de todos nós.

Não há solução fora da boa política.

Ricardo de Oliveira

Engenheiro de produção, foi secretário estadual de Gestão e Recursos Humanos do Espírito Santo (ES) entre 2005 e 2010 e secretário estadual de Saúde do ES de 2015 a 2018. É autor dos livros "Gestão Pública: Democracia e Eficiência" (2012) e "Gestão Pública e Saúde" (2020), publicados pela editora da FGV. Também é conselheiro do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e membro do comitê de filantropia da UMANE.

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