Por Marcelo Coppola
Na manhã de 31 de março passado, uma sexta-feira, o uruguaio Conrado Ramos deu uma palestra na Enap (Escola Nacional de Administração Pública), em Brasília, sobre as tendências das reformas administrativas na América Latina. Autor de vários livros sobre o assunto, fez um diagnóstico pessimista. Em linhas gerais, disse que a reforma do Estado é uma agenda pouco relevante na região. Os países latino-americanos não parecem preocupados em modernizar a gestão pública, melhorar as condições de trabalho de seus funcionários ou prestar serviços mais eficientes à população. Em alguns deles, as coisas até pioraram nos últimos tempos, com a precarização do trabalho no setor público.
Na condição de diretor da Oficina Nacional del Servicio Civil [Escritório Nacional do Serviço Público], Ramos está à frente de iniciativas que pretendem transformar a máquina pública de seu país. Um projeto que inclui a reforma das carreiras públicas, a criação de um sistema único de informação sobre os servidores e a implantação de uma nova metodologia para avaliá-los e ajudá-los a melhorar seu desempenho.
Para entender um pouco melhor o que acontece no país vizinho, o site da República.org conversou com Ramos no mesmo dia de sua palestra na Enap. As reformas que está comandando, com foco principalmente na chamada administração central (ministérios), têm a ambição de motivar os funcionários a crescer dentro de suas carreiras. Se derem certo, podem transformar o país platino num enclave de boas práticas numa região dominada por máquinas públicas pesadas e ineficientes.
Por se tratar de um dos mais renomados pesquisadores de gestão pública na América Latina, aproveitamos para questioná-lo sobre os entraves para a melhoria da gestão pública no Brasil e sobre a criação pelo governo Lula do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos. Ramos falou ainda sobre o que os dois países podem ensinar um ao outro e sobre o que fazer para aumentar a presença de mulheres em cargos de chefia.
Doutor em Ciências Políticas pela Universidade de Frankfurt e professor da Universidad de la República (Montevidéu), é autor de diversos livros sobre gestão pública, entre eles o recém-lançado The Politics of Patronagem Appointments in Latin American Central Administrations (University of Pittsburgh Press, 2023), com B. Guy Peters e Francisco Panizza. Integrante hoje do governo de centro-direita de Lacalle Pou (Partido Nacional), Ramos foi, entre 2007 e 2010, subdiretor do Escritório de Planejamento e Orçamento durante os governos Tabaré Vázquez e Pepe Mujica (Frente Ampla).
Você está à frente de um esforço para reformar o Estado uruguaio. Quais os principais objetivos dessa reforma e em que medida esses objetivos estão sendo atingidos?
Estamos fazendo uma reforma de gestão de pessoas baseada em três pilares. O primeiro é melhorar o sistema de informação sobre recursos humanos, integrar os distintos sistemas hoje existentes, tornar as informações mais confiáveis, não somente com fins estatísticos, mas operativos. O novo sistema terá informações sobre todos os funcionários, desde o lugar onde trabalham, sua ocupação, o vínculo jurídico com o Estado, além de remuneração, trajetória, avaliações, etc. Vamos tornar essas informações mais confiáveis. Hoje, os dados dos departamentos e municípios não são confiáveis, mas o serão graças à colaboração do Banco da Previdência Social, que tem informações sobre todos os servidores civis que entram no sistema de seguridade social. E estamos fazendo acordos entre o Banco de Previdência Social e instituições de seguridade social de outras categorias, como militares e policiais, para termos informações muito completas e fidedignas sobre todos os vínculos existentes no Estado uruguaio. E haverá um subgrupo, formado pelos funcionários da administração central, cujas informações serão ainda mais detalhadas e profundas.
Esse processo já está avançado?
Já. No princípio do ano que vem já teremos um sistema único, no qual, na mesma plataforma, de software livre, estarão todas essas informações. Com o apoio do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), o governo coreano está nos ajudando na criação desse sistema integrado de informações. A parceria foi firmada há cerca de um ano e estamos trabalhando juntos há seis meses. Uma primeira missão da Coreia do Sul já nos visitou este ano para fazer o primeiro diagnóstico na auditoria de processos que estão realizando.
Quais os outros pilares da reforma?
O segundo pilar é a reforma das carreiras administrativas. Vivemos uma realidade onde o princípio constitucional de igual função, igual remuneração, não se cumpre. Hoje uma pessoa pode ganhar duas ou três vezes mais, a depender do lugar onde trabalha dentro de um ministério, por exemplo. As pessoas não são pagas pelo que fazem, mas em razão do lugar onde trabalham. Muitas repartições incluíram no salário de seus funcionários ganhos extras que acabam provocando essas distorções. O resultado é que os funcionários não têm estímulo para ascender na carreira, porque isso não significa necessariamente aumento significativo de remuneração, a não ser que sejam enviados para lugares que incluam compensações robustas aos salários. Nosso objetivo principal é criar um sistema no qual o funcionário público seja estimulado a crescer dentro de sua carreira e receba de acordo com o valor que agrega à sociedade. Para isso, optamos por um sistema híbrido, recomendado pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), que combina a classificação anglo-saxônica de postos de trabalho com um sistema de carreiras no qual identificamos o que as pessoas fazem realmente em seu trabalho. Passamos dois anos perguntando o que fazem e identificamos ao redor de cem ocupações. E criamos uma pontuação segundo o valor que essas ocupações agregam à sociedade.
E o terceiro pilar?
É a avaliação dos servidores públicos. Temos fracassado sistematicamente no sistema de avaliação dos funcionários. Um gestor demora hoje cinco minutos para avaliar um funcionário. Faz isso analisando cinco fatores, sendo que cada fator vale cinco pontos. Costuma dar a avaliação máxima porque, se der 22 pontos em vez de 25, o funcionário recorrerá a um tribunal, e o gestor não saberá bem como defender-se, porque também não sabe como chegou a essa avaliação, já que se trata de uma avaliação muito subjetiva, impressionista, sem comportamentos observáveis que gerem evidências. Então, vamos retirar essa pontuação e fazer uma avaliação de atitudes, de “competencias blandas” [habilidades pessoais e interpessoais], transversais, que se cruzam com competências técnicas da ocupação do servidor. Já temos cem ocupações identificadas, descritas, com fichas técnicas e suas competências. Elaboramos um dicionário de competências para cem ocupações. O que acontecerá é que os servidores receberão a avaliação feita por seus gestores que, por sua vez, receberão a autoavaliação de seus subordinados. A partir daí eles vão se reunir, e o gestor apontará onde o funcionará pode melhorar. Juntos, fecharão então um plano de trabalho conjunto para que o servidor alcance os resultados combinados e que será revisado periodicamente. O que importará não é tanto o resultado, mas se o funcionário se esforçou para atingir a meta de competência. A ideia é que o funcionário possa melhorar seu desempenho com suas próprias ferramentas e suas próprias armas. A avaliação não importará tanto. Como dizia o Óscar Tabárez [técnico que dirigiu a seleção uruguaia de futebol por 15 anos], “o caminho é a recompensa”.
Você afirmou na palestra na Enap que a reforma do Estado ainda é um tema pouco relevante na América Latina. No mundo todo há exemplos de países que colocam a modernização da gestão pública entre suas prioridades, entre eles Reino Unido, França e Austrália. Por que isso não acontece na América Latina? Quais países da região são exceção e estão mostrando evolução nessa agenda?
Recentemente, publiquei um diagnóstico sobre a América Latina com B. Guy Peters (The Politics of Patronage in Latin American) que continua válido, as coisas não mudaram muito desde então. A América Latina é uma região muito politizada, com muita instabilidade política. E com muito ritualismo, por se tratar de uma região de colonização ibérica. Com isso quero dizer que nos apegamos muito aos processos, à rotina, mais do que aos resultados, o que reflete em nossa cultura burocrática. E, por outro lado, trata-se de reformas complexas, que têm poucos atrativos para os políticos, porque seus benefícios não são imediatos, aparecem a longo prazo. Além disso, há muita pressão corporativa. Em vez de um sistema por mérito crescer na América Latina, o que está aumentando na verdade é a precarização do trabalho.
E como o senhor vê o Brasil e o Uruguai dentro dessa tradição?
Em comum, acho que o Uruguai e o Brasil têm um sistema de ingresso meritocrático no serviço público que é exitoso. São países em que o recrutamento das pessoas não acontece por ingerência política. Sobre o Uruguai, se conseguirmos esse novo formato de carreiras, acho que estaremos na vanguarda na região. O Brasil, que é um país mais desenvolvido nessa matéria, tem um problema sério de superposição e distintas lógicas de carreiras, com pressões corporativas muito fortes, uma realidade que, em algum momento, terá de enfrentar. É um país que tem carreiras verticais e carreiras horizontais, grupos de carreiras que não dialogam uns com os outros. Pressões de mudanças nas carreiras só acontecem com vistas a aumentos salariais. O resultado é que se vão acumulando distintas lógicas que resultam em uma administração fragmentada, na qual não existe uma lógica coerente de carreiras. Nessas circunstâncias, do jeito que funciona o sistema de partidos no Brasil, é muito difícil pedir a um governo que defenda uma mudança radical do sistema de carreiras.
Em sua visão, portanto, é muito difícil realizar no Brasil uma mudança na escala que está sendo pensada no Uruguai?
Exatamente. Creio que o melhor para o Brasil é estudar quais as mudanças incrementais podem ser feitas a esse sistema. Em primeiro lugar, recomendo que comece por fazer uma análise muito profunda de quais são as ocupações no sistema do serviço público brasileiro e que haja um esforço para valorizar essas ocupações. E, depois, que defina quais as transformações a serem feitas no sistema de carreiras, na integração das distintas lógicas de carreira, no tema da racionalização das remunerações etc.
O governo Bolsonaro adotou uma postura de desmonte do Estado, que, em muitos setores, se mostrou bem-sucedida. Um ataque que atingiu órgãos e mecanismos de proteção ao meio ambiente, de defesa dos direitos humanos, de incentivo à igualdade de gênero, de inclusão da população negra e LGBTQIA+ etc. O senhor considera que as medidas tomadas até agora pelo governo Lula indicam que essa reconstrução do Estado terá sucesso? Pode ser feita em curto prazo?
Sim. É só pegar a questão da presença das mulheres em cargos de liderança. Em 2019 o Brasil ocupava a última posição no ranking da América Latina nessa questão. Essa situação está mudando rapidamente. Não há avaliações atualizadas, mas basta conversar hoje com mulheres em cargos de liderança na máquina pública para concluir que o país já deve estar entre os primeiros nessa questão na região.
Mas, apesar das novidades nessa questão trazidas neste início do governo Lula, as mulheres ainda ocupam um percentual reduzido de cargos de liderança e a remuneração é muito inferior do que a dos homens.
Sem dúvida. E isso acontece apesar de serem mais qualificadas. Estudos indicam que as mulheres têm mestrado e doutorado em percentuais mais elevados do que os homens.
E como acelerar esse processo de igualdade de gênero?
Acho que é preciso viabilizar concursos para o ingresso em cargos de liderança. Como as mulheres estão mais preparadas do que os homens, é muito provável que ocupem majoritariamente esses cargos, hoje dominados pelos homens. Se esses sistemas se abrirem para a competência, essa situação vai mudar.
O governo do presidente Lula criou o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, comandado por Esther Dweck, professora do Instituto de Economia da UFRJ. O senhor visitou o ministério no último dia 31 de março, quando falou para seus funcionários depois da palestra da Enap. Qual a sua impressão sobre os primeiros passos do atual governo para lidar com a gestão pública?
Fiquei impressionado, além da juventude, com o preparo das pessoas com quem falei. Foi uma das conferências mais fáceis que já fiz. Não havia muito o que explicar sobre a questão das carreiras públicas. Todos pareciam ter um conhecimento profundo sobre o que significa um sistema de carreiras, ocupações, avaliações, sobre a problemática salarial, a discussão sindical… Achei um nível de discussão muito elevado. Além disso, conheci pessoas no ministério que têm bem claro as dificuldades da agenda, do desenho institucional que o Brasil possui, tão complexo. Tive a impressão de que se trata de uma equipe que está pensando seriamente em como avançar estudos e análises para gerar propostas realistas, concretas, sólidas.
Chegaram a falar sobre a possibilidade de um intercâmbio entre o Brasil e o Uruguai?
Sim. Falamos de fazer intercâmbio governo a governo, por meio de equipes técnicas. Temos muito a aprender um com o outro. Nós podemos falar da nossa experiência de dois anos na metodologia de identificação de ocupações e da valoração delas, assim como sobre a racionalização do sistema salarial. E nós temos muito o que aprender com o Brasil sobre inovação no serviço público e capacitação de funcionários, porque a Enap (Escola Nacional de Administração Pública) é um exemplo não apenas para a América Latina, mas em nível mundial.
Você citou inovação. Acredita que seja uma característica do serviço público no Brasil?
Sem dúvida. Vou dar um exemplo. O Brasil está fazendo experimentos com o uso de inteligência artificial na seleção de currículos para cargos a nível de Direção e Assessoramento Superior (DAS). Essa é uma experiência para acompanharmos muito de perto.