O advogado público tem cliente. Esta afirmação sempre foi suficiente para causar um rebuliço em qualquer prosa com meus colegas de profissão. No entanto, recentemente, esse fato tem ficado tão evidente que os “puristas” parecem estar jogando a toalha. Observo que os esforços começam a se direcionar para tentar adicionar um porém nessa constatação. Ok, temos cliente, mas ele nem sempre tem razão.

O processo de tomada de decisão na Administração Pública brasileira é comandado pelos políticos: detentores de mandatos eletivos e ocupantes de cargos comissionados dos primeiros escalões de ministérios, secretarias estaduais e municipais, autarquias, empresas estatais. O agente político é um cliente fácil de ser identificado pelo advogado público. Seja admirado, tolerado ou odiado, o que varia de acordo com o grau de afinidade ideológica entre o profissional da Advocacia Pública e o grupo político que ocupa o poder, esse cliente está claramente presente e costuma ser bastante exigente. Na democracia, ele representa um projeto político eleito, legitimado pelo voto popular a dirigir o governo e, assim, demandar aos profissionais da área jurídica estatal que advoguem em defesa de atos administrativos (incluída a defesa da própria autoridade) e de políticas públicas da estrutura que comanda.

Além disso, o advogado público atua também sob demanda dos técnicos, ou seja, de um corpo de especialistas que movimenta cotidianamente o funcionamento da máquina administrativa, e sob demanda judicial, quando o Poder Judiciário é acionado por autores de ações para a solução de alguma questão não resolvida por via administrativa. Nesses dois cenários, não é exatamente óbvio para o advogado público que recebeu um processo (administrativo ou judicial) no seu escaninho (físico ou virtual) identificar quais são as necessidades do cliente por trás daquela demanda. O “erário” ou o “ente federativo” em muitas hipóteses são uma abstração localizada no cabeçalho de um parecer ou no preâmbulo de uma petição, cujos interesses a serem defendidos não estão colocados de maneira muito clara para o advogado público. Essa falta de clareza é um problema grande, mas que pode ser resolvido se for encarado como desafio prioritário de gestão, o que passa pelo aprimoramento de caminhos de diagnóstico, planejamento e comunicação.

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O direito e a administração pública

O direito e a administração pública

Em todos esses contextos, coexistem diversas tensões referentes à relação entre o advogado público e a sua clientela. A aplicação prática do Direito na Administração Pública é perpassada por conflitos de muitas dimensões.

Uma tensão permanente encontra-se na relação entre o Direito e a expertise extrajurídica (o conhecimento chamado de “técnico”). Segundo o olhar crítico do pesquisador Victor Cravo[1], na análise jurídica de políticas públicas, ora o advogado público se prende dogmaticamente a questões formais e deixa de contribuir significativamente para a construção da política pública, ora adentra nos detalhes do desenho técnico das ações e subjuga a expertise ao Direito, algumas vezes sacando do bolso a chamada “ponderação de princípios”. 

Entre o conforto da omissão e a tentação da arrogância, o papel da Advocacia Pública no Estado de Direito é colocar-se à disposição dos seus clientes para escutar, aprender e colaborar de maneira substancial, somando-se aos esforços dos outros profissionais da Administração Pública para a entrega de serviços públicos de qualidade. Numa sociedade tão desigual como a brasileira, o Estado faz muita falta. 

Por fim, mas certamente não menos importante, preciso falar de interesse público. Nos últimos anos, tem ocupado os noticiários brasileiros uma sucessão de polêmicas quanto à relação entre os advogados públicos e determinados agentes políticos. Em um contexto político em que a “crise” é estranhamente perene, tem sido intenso o debate sobre os limites da lógica de “atendimento ao cliente” na atuação da Advocacia Pública em situações em que os interesses em jogo são particulares (eufemismo) ou, ainda pior, quando os pilares institucionais da democracia estão ameaçados. A situação só não é mais delicada porque, inacreditavelmente, não têm faltado voluntários para a assinatura de peças jurídicas em casos bastante problemáticos (e o adjetivo aqui, mais uma vez, é deliberadamente eufemístico, pois estes tempos não são apenas estranhos, mas também sombrios). 

Advogar é um exercício de apoio, de permanente entrega do profissional. Mas se a sua atuação é instrumentalizada para o objetivo de violação de direitos, o advogado público (ou mesmo privado, mas aí é outra conversa) não tem obrigação de dar suporte. Ao contrário: tem direito e dever de recusa. Na democracia, o cliente da Advocacia Pública nem sempre tem razão.

* A partir deste pontapé, inicio uma série de textos produzidos a convite do Instituto República. Pretendo discutir alguns desafios da prestação de serviços realizada pela Advocacia Pública aos seus clientes, com enfoque na gestão de seus profissionais no contexto da atuação judicial – equipes do contencioso – e no contexto da atuação administrativa – equipes consultivas. 

[1] TEIXEIRA, Victor Epitácio Cravo. Entre máquinas administrativas e governos inteligentes. UnB, Brasília, 2020. Disponível em: <https://repositorio.unb.br/handle/10482/39235>.

Esta nota é de responsabilidade dos respectivos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais os autores estão vinculados.

Clarice Calixto

Doutora em Direito pela UnB. Servidora pública há mais de 15 anos. Atualmente leciona sobre caminhos de desburocratização na administração pública e atua como Advogada da União.

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