Índice
A autoridade policial
Direção-Geral da Polícia Federal
Autonomia das polícias em outros países
Considerações finais

Dentre as várias incumbências da Polícia Federal dispostas no artigo 144 da Constituição, uma das mais importantes é a de exercer com exclusividade a função de Polícia Judiciária da União. Compete à Polícia Federal apurar as infrações criminais que envolvam bens, serviços e interesses da União, ou de suas autarquias e empresas públicas. Muito se tem ouvido falar das grandes operações da Polícia Federal no combate à corrupção, ao desvio de verbas públicas, à lavagem de dinheiro, às fraudes em licitações, dentre outros crimes que fazem com que o dinheiro dos cofres públicos não tenha a destinação esperada, que em termos gerais é a de promover o desenvolvimento do país e de financiar políticas públicas que promovam o bem estar da população. Sendo integrante da estrutura do Poder Executivo é comum que estas investigações, muitas vezes, envolvam integrantes do próprio governo federal, que podem estar ocupando posições até mesmo hierarquicamente acima dos dirigentes da PF na estrutura do Poder Executivo. De todo modo, em muitas investigações, os investigados possuem algum tipo de relação com figuras do alto escalão, como ministros, secretários executivos, e até mesmo com o próprio presidente da República, o que torna o trabalho da instituição bastante desafiador.

A autoridade policial

Na tarefa de elaboração da Constituição Federal de 1988, o poder constituinte delimitou os poderes e as atribuições das instituições de forma intencionalmente motivada de modo a evitar injustiças, em sintonia com os fundamentos do Estado Democrático de Direito, considerando a proteção aos direitos e garantias fundamentais do cidadão. Nesse diapasão, a Constituição Federal conferiu ao Ministério Público a titularidade da ação penal, e, por outro lado, atribuiu às Polícias Judiciárias as funções investigatórias, afastando assim o acúmulo de poderes nas mãos do Ministério Público, que, sendo o detentor do poder acusatório, não poderia ter ainda o comando das apurações das infrações penais, de modo a garantir a imparcialidade e a isenção da investigação criminal. Muito embora esteja nítida a preocupação do legislador em garantir a lisura do procedimento investigatório, houve uma omissão constitucional ao não estender aos Delegados de Polícia as prerrogativas conferidas aos membros do Ministério Público e do Poder Judiciário, deixando esses importantes atores da persecução penal sem o resguardo necessário ao desempenho de suas funções. Em que pese o avanço advindo da aprovação da Lei n° 12.830, de 2013, reconhecendo a relevância do trabalho do delegado de polícia na condução do inquérito policial – procedimento administrativo que tem por função apurar a existência de uma infração penal e a sua autoria – a ausência de prerrogativas de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídio acaba por deixar a autoridade policial sem a devida proteção contra as eventuais pressões políticas, ainda mais estando seu cargo dentro da estrutura organizacional do Poder Executivo.

O papel desempenhado pelo delegado de polícia é importantíssimo na persecução penal ao instaurar inquéritos policiais, solicitar ao Judiciário mandados de busca e apreensão, representar por prisões e conduzir investigações criminais (com exceção de crimes militares). Quando analisamos essa situação na esfera federal, com as peculiaridades que são inerentes ao trabalho da Polícia Federal, a situação é ainda mais preocupante, muito pela abrangência destas investigações e, de igual modo, pelo alcance que eventuais interferências indevidas teriam sobre os interesses do país e da sociedade. É pertinente salientar quais prerrogativas estão relacionadas ao exercício de um cargo, de uma função, que muito embora possam transmitir a noção equivocada de que se tratam de meros privilégios, são, na verdade, condições de garantia ao efetivo exercício dessas atribuições contra eventuais obstáculos que possam ser criados no sentido de impedir sua regular atuação. 

O ordenamento jurídico reconhece a independência funcional da autoridade policial dentro do inquérito policial, bem como é pacífico o entendimento de que a hierarquia funcional dentro do órgão deve se limitar à esfera administrativa. Nem mesmo o Ministério Público em sua função de controle externo da polícia pode interferir no trabalho do delegado de polícia. Muito embora seja permitido ao Ministério Público requisitar a instauração de inquérito policial, tal iniciativa depende do atendimento de certos pressupostos. O delegado de polícia, exercendo um juízo de admissibilidade, poderá rejeitar requisições genéricas, que não contenham um mínimo de dados que permitam o início de uma investigação, ou que não se relacionem a um fato típico (previsto em lei) ou ainda que envolvam crimes cuja apuração dependa de representação ou queixa-crime. Não existe vínculo de subordinação entre a figura do delegado de polícia e a do membro do Ministério Público, sendo o indiciamento um ato privativo do delegado de polícia. Com base nessas peculiaridades inerentes à atividade policial e investigativa, não são poucos os que defendem a retirada dos órgãos de polícia judiciária da estrutura dos poderes executivos federal e estaduais. Contudo, para que as instituições de polícia judiciária sejam reconhecidas como órgãos autônomos, dotados de independência funcional e administrativa, é necessária a aprovação da matéria por meio de Projeto de Emenda Constitucional.

Direção-Geral da Polícia Federal

A Polícia Federal está subordinada ao Poder Executivo Federal e pertence à estrutura organizacional do Ministério da Justiça e Segurança Pública. O cargo de diretor-geral da Polícia Federal, dirigente máximo da instituição, é de livre escolha do presidente da República, dentre os ocupantes do cargo de delegado de Polícia Federal que estejam na Classe Especial (última classe). Não existem outros critérios definidos para essa escolha, bem como não existe um mandato que delimite um lapso temporal de permanência no cargo. Em tese, o diretor-geral pode ser substituído quantas vezes o presidente da República entender conveniente, contudo, se espera que os princípios constitucionais que regem a administração pública sejam respeitados, que esta escolha seja orientada por valores morais e que seja pautada na impessoalidade. A escolha direcionada a viabilizar intenções de interferência no trabalho da polícia para favorecer aliados, ou no sentido de prejudicar adversários, além de ilegal, seria demonstração de profundo desrespeito e desapreço ao trabalho da Policia Federal, que é patrimônio do Brasil, uma polícia de Estado, e não uma polícia de governo.

 O diretor-geral é quem define os ocupantes dos demais cargos de direção, bem como todos os superintendentes nos estados. A rotatividade na direção da instituição tem reflexos nos cargos que compõem os escalões seguintes, pois é comum que o novo dirigente queira levar pessoas da sua confiança para compor posições estratégicas no órgão. Nesses casos, as remoções se dão na modalidade ex officio, ou seja, no interesse da administração, que dá tanto ao novo ocupante que chega quanto ao anterior que sai, direito ao pagamento de ajudas de custo, passagens e transporte de mobiliário, caso estas remoções impliquem em mudança de sede. O custo destas remoções é alto, não apenas do ponto de vista financeiro como também funcional, é a chamada “dança das cadeiras”. Outro aspecto que muitas vezes não é levado em consideração é o prejuízo emocional do servidor, que apesar de estar fazendo um bom trabalho na posição que lhe foi confiada, quando é substituído subitamente, tem que retornar com sua família à lotação anterior, algumas vezes em pouquíssimos meses ou até menos, gerando inúmeros transtornos. Quando as alterações são feitas repetidamente em curto espaço de tempo, evidencia a violação do princípio da economicidade. O estabelecimento de um mandato de dois anos com a possibilidade de recondução, a exemplo do que ocorre na definição do procurador-geral da República, ofereceria estabilidade e maior segurança ao processo de escolha do chefe máximo da instituição.

Na Polícia Federal, a atividade policial é desenvolvida por cinco cargos, todos imprescindíveis ao sucesso da investigação criminal e diretamente responsáveis pelo respaldo da instituição perante a sociedade – são delegados, agentes, escrivães, papiloscopistas e peritos criminais, cada um na sua esfera de atribuições, mas trabalhando em conjunto, que elucidam os crimes da competência da Polícia Federal e que desenvolvem as muitas operações policiais, algumas famosas, e grande parte delas direcionadas ao combate da corrupção. Conhecedores dos meandros das investigações, das nuances que envolvem o trabalho policial federal e como partes vitais que constituem a instituição, seria um grande avanço não apenas para a polícia mas para toda a sociedade, que é a maior beneficiada pelas ações da Polícia Federal, que a definição da direção do órgão fosse feita mediante escolha em lista tríplice, composta com os nomes dos três delegados mais votados pelos policiais da instituição. Uma medida assim demonstraria impessoalidade, e por conseguinte, a moralidade do processo, além de priorizar a eficiência e a legitimidade na escolha, que teria o respaldo do efetivo policial.

Autonomia das polícias em outros países

Nos Estados Unidos, a escolha dos diretores do Federal Bureau Investigations (FBI) e do Department of Homeland Security (DHS) é feita através de processo que conta com a participação do presidente dos Estados Unidos e do Senado. A eventual substituição destes diretores pelo presidente está condicionada à apresentação de sérias justificativas.  No FBI, um diretor pode permanecer por até 10 anos à frente da instituição, conforme alteração legal aprovada pelo Congresso americano em 1976. 

Na Alemanha, o Bundeskriminalam (BKA) é dirigido por três altos executivos, um chefe e dois vice-chefes, que em alemão são referidos como Amtsleitung, que pode ser entendido como gabinete de gestão. O chefe do BKA é um cargo de escolha política, ocupado por alguém que pertence ao mais alto nível da carreira, nomeado pelo presidente da Alemanha por recomendação do ministro do Interior. A formação jurídica e o mestrado são levados em consideração na escolha. Os vice-chefes são policiais do nível mais alto da corporação. O atual chefe do BKA está no cargo desde 2014. Na França, a indicação do diretor-geral da Police Nationale é feita a partir da escolha do ministro do Interior e submetida à deliberação de um conselho composto por integrantes do Congresso francês.No Reino Unido, a National Crime Agency (NCA), desde 2013, é um departamento governamental não ministerial que lida com natureza de assuntos que dispensam uma supervisão política direta de modo a mantê-lo preservado de eventuais interferências políticas. O diretor-geral da NCA é selecionado mediante rigoroso processo para um mandato de cinco anos. Na Austrália, a Australian Federal Police (AFP) é uma agência independente. Um comitê conjunto de membros da Câmara e do Senado australiano tem a responsabilidade de supervisionar a AFP.

Nos dias atuais, em países democráticos, se reconhece a necessidade de conferir às forças policiais proteção contra ingerências políticas como forma de salvaguardar as polícias de, no desenvolvimento de suas atribuições, serem afetadas por posturas autoritárias que tenham por finalidade utilizar as forças policiais como ferramenta particular de proteção e de vinganças pessoais, ações essas que violam o princípio da igualdade de todos perante a lei. Desse modo, cada país tem procurado estabelecer mecanismos para extirpar as interferências ou, ao menos, reduzi-las ao máximo.

Considerações finais

A partir da Constituição Federal de 1988, com a efetivação do Estado Democrático de Direito, a Polícia Federal ganhou protagonismo na defesa dos interesses nacionais, sobretudo pela forma como tem combatido crimes de desvios de recursos públicos, praticados na maioria das vezes com a anuência e participação de pessoas de grande poder. Se por um lado o trabalho da Polícia Federal no cumprimento de suas atribuições se destaca de forma positiva perante a população, transformando-a em uma das instituições mais respeitadas do Brasil, por outro incomoda àqueles que intencionam tirar proveito dos bens e do dinheiro público. 

O fato é que a forma de organização das polícias judiciárias no país deixa espaço a pressões de ordem política que não podem existir em um Estado comprometido com a justiça. Aliado a este problema, o ordenamento jurídico pátrio não confere à autoridade policial as mesmas garantias conferidas aos membros do Ministério Público. Essa configuração, prejudicial à polícia e aos interesses da sociedade, precisa ser corrigida em nível nacional, de modo a beneficiar não apenas a polícia judiciária da União, mas também as polícias judiciárias dos estados e, desse modo, seguir o exemplo das democracias mundo afora que têm estabelecido mecanismos de proteção das polícias contra interferências externas. 

No que diz respeito especificamente à Polícia Federal, alterações nos critérios de escolha do diretor-geral, como a adoção de lista tríplice com a participação de todo o efetivo policial da instituição na definição dos nomes dos três delegados da lista, bem como a estipulação de um mandato para esse dirigente, seriam medidas que certamente enalteceriam a legitimidade, além de conferir estabilidade ao cargo, diminuindo o espaço que possibilita a ingerência de forças políticas na instituição. Muito embora nem toda administração tenha envidado esforços na tentativa de interferir nas ações da Polícia Federal em função do interesse público, que deve nortear as relações no âmbito da administração pública, medidas que previnam este tipo de ocorrência devem ser consideradas bem-vindas e necessárias.


Esta nota é de responsabilidade dos respectivos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais os autores estão vinculados.

Vanessa Maria de Paula Pessoa Rezende

Com 27 anos de experiência como Agente da Polícia Federal, é formada em Direito pela Universidade Federal do Ceará, especializada em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e mestranda em Governança e Desenvolvimento na Enap. Atuou como Oficial de Ligação da Polícia Federal no Departamento de Segurança Interna (HSI, na sigla em inglês) do Serviço de Imigração e Controle de Aduanas dos Estados Unidos (ICE) e ministrou aulas nos cursos de formação profissional da renomada Academia Nacional de Polícia (ANP), na área de polícia aeroportuária.

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