Por Ana Flávia Barros

A participação feminina nas atividades relativas à ciência vem aumentando em escala global nas duas últimas décadas, tanto no que concerne ao ensino como à pesquisa e à sua aplicação. De fato, definir ciência não é tarefa simples. Ciência remete ao acúmulo do conhecimento validado por comunidades de conhecimento e instituições. Ciência progride por meio de debates e até conflitos, marcada por valores, escolhas, visões de mundo e outras características inerentes aos seres humanos e suas construções sociais. Além disso, cisnes negros, crises e relações de poder contribuem para o avanço do debate científico mundial. 

Neste vasto e complexo tema que é a ciência, a participação masculina sempre predominou, com raras exceções. Diversos fatores conduziram a tal contexto de assimetrias, começando pela divisão social do trabalho, mormente nas sociedades em que as mulheres assumiram as tarefas domésticas, enquanto os homens trabalhavam fora de casa. Nas últimas cinco décadas, a participação feminina no mercado de trabalho aumentou de forma geral, mas ainda de maneira lenta e gradual, com grandes disparidades. Geralmente, as mulheres encontram maiores obstáculos para empregos que são tradicionalmente ocupados por homens, principalmente quando se trata de cargos de liderança e de isonomia de salários. Por isso mesmo a Organização das Nações Unidas (ONU) adotou diferentes iniciativas, como a Agenda 2030, e mais especificamente o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 5 para empoderar meninas e mulheres, com vistas a alcançar a igualdade de gênero (https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/5). 

Na ciência, a realidade não é desconectada da sociedade e do mercado de trabalho globalizado e digitalizado. Um dos principais indicadores é a nomeação para prêmios, como no caso do Prêmio Nobel. Não apenas houve pouquíssimas mulheres selecionadas, mas também raras foram as indicações ao longo dos anos. Entre 1901 e 2021, 58 mulheres receberam a distinção, no total de 947 premiados[1]. O Brasil nunca teve um Prêmio Nobel e segue, em larga medida, as tendências mundiais acima mencionadas. Certo é que este panorama de assimetrias e sub-representação feminina na ciência não é novo e nem pode ser simplificado. Cada país tem a sua própria realidade, marcada por sua história, sociedade, cultura e arcabouço institucional, entre outros. Além disso, há um número crescente de cientistas que se consideram não-binários, e que certamente terão impacto nos dados oficiais existentes. 

Apesar destes limites, a análise de dados disponíveis em diversos relatórios do Ministério da Educação (MEC), da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) sugere possíveis correlações entre a evolução recente do acesso à educação, do mercado de trabalho e da participação das mulheres na ciência nacional e internacional. Em outras palavras, não parece arriscado afirmar que quanto mais meninas têm acesso à educação de qualidade, mais oportunidade de emprego terão, incluindo atividades científicas e bolsas de pesquisa. Por enquanto, as brasileiras ainda são minoria nas atividades científicas, concentrando-se nos estágios iniciais da carreira e em linhas de pesquisa das ciências humanas e sociais, que tradicionalmente possuem menos bolsas de pesquisa financiadas com recursos públicos, incluindo as Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes) e as Fundações de Amparo à Pesquisa (FAPs). Haja vista que a maior fonte de pesquisas está relacionada às instituições públicas, fica clara a importância de políticas públicas para o século XXI. Finalmente, as mulheres também carecem de políticas públicas específicas e mais efetivas, por terem, geralmente, um papel central na vida familiar, principalmente quando têm filhos na primeira infância. Esta foi uma das grandes lições da pandemia de Covid-19, que exigiu da nossa sociedade uma imensa capacidade de adaptação em curto espaço de tempo. 

Índice
Avanços e desafios
Antecipação e imaginação: caminhos para a equidade

Avanços e desafios

Por um lado, o acesso das meninas à educação no país melhorou, e o desempenho escolar delas é comparável ao dos meninos. A população brasileira é majoritariamente feminina, e as estudantes no ensino médio superam a quantidade de estudantes homens. Ademais, a proporção de homens e mulheres com diplomas universitários, segundo dados oficiais, já permite augurar bons resultados. Igualmente, a participação feminina no mercado de trabalho em geral, e na ciência, em particular, vem mostrando avanços. Na graduação universitária, cerca 57% do total de estudantes são mulheres, concentradas nos cursos de Pedagogia, Letras e ciências humanas; mas apenas 24% escolhem cursos de ciências exatas, de acordo com dados do CNPq, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e Parent in Science[2]. Preocupante, porém, é o fato de que, segundo o MEC, em 2016, apenas 10,4% das mulheres negras tiveram acesso ao ensino superior[3]

Entretanto, ainda há enormes desafios a serem enfrentados. Primeiro, há, sem dúvida, associações a serem estabelecidas entre o acesso à educação de qualidade, redução da desigualdade social e da corrupção, mudanças de valores na nossa sociedade e oportunidades de pesquisa. O lugar das mulheres na “economia familiar” ou “economia do cuidado” é o ponto de partida desta reflexão. Normalmente, são as mulheres que limitam suas carreiras para cuidar dos filhos, enquanto a sociedade brasileira vem avançando lentamente nesta questão sobre como conciliar trabalho e família. Prova disso são os resultados das primeiras pesquisas no Brasil mostrando que as mulheres cientistas tiveram as maiores baixas de produtividade em razão da pandemia. Raça, gênero e parentalidade estão sendo cada vez melhor analisados no Brasil. Porém, ainda é necessário avançar nas pesquisas para estabelecer correlações mais robustas. Com a pandemia desde 2020, por exemplo, mulheres com filhos foram as que menos conseguiram trabalhar[4]. Apenas 4,1% das pesquisadoras responderam que haviam conseguido trabalhar remotamente, enquanto mulheres sem filhos somaram 18,4%. Comparativamente, 14,9% de homens com filhos conseguiram trabalhar, e 25,6% de homens sem filhos também. Quando se refinam as pesquisas com outros critérios, as mais prejudicadas foram as pesquisadoras e estudantes de pós-graduação negras. Enquanto apenas 47,3% das mulheres negras respondentes conseguiram submeter artigos científicos nos prazos planejados, 50,1% das mulheres brancas, 63,2% dos homens negros e 70,4% dos homens brancos também conseguiram. Considerando a parentalidade, a porcentagem mais baixa é de mulheres negras com filhos (46,5%), e a mais alta é de homens brancos sem filhos (77,3%). Embora tais resultados não sejam uma surpresa e nem uma verdade incontestável, evidenciam o tamanho do desafio que o Brasil precisa enfrentar por meio de políticas inclusivas que promovam igualdade social, sustentabilidade e maior capacidade adaptativa para os próximos desafios, com foco nas mulheres e mães. Afinal, são elas que assumiram os cuidados familiares e parte da responsabilidade da educação dos filhos em tempos de confinamento. 

Outro desafio concerne ao financiamento de pesquisadores. O orçamento da União sancionado em janeiro de 2022 pelo presidente da República[5] teve novos e profundos cortes nas áreas da educação, pesquisa, saúde e sustentabilidade. Logo, os recursos públicos para a pesquisa nacional estão mais escassos. Apesar deste contexto desalentador, dados sobre a concessão de bolsas de pesquisa demonstram algum progresso da participação feminina no contexto brasileiro. Estima-se que a maioria dos bolsistas de iniciação científica, mestrado e doutorado foram mulheres em 2021.

Contudo, as bolsas do CNPq de Produção Científica (PQ) mantiveram o padrão da maioria masculina nos níveis mais altos (Bolsas PQ1/sêniores). Das 12.917 bolsas PQ/CNPq implantadas, apenas 35,6% foram alocadas para mulheres. No que concerne aos cargos de coordenação e de liderança de diferentes processos decisórios, a realidade brasileira ainda é conservadora, pois a maioria das pessoas envolvidas nos processos de tomada de decisão era de homens[6]. No caso da Capes, havia apenas 14 mulheres coordenadoras de área, no total de 49 pessoas em 2021[7]. Apesar da presidente ser uma mulher, os membros natos do Conselho Superior da Capes em 2020 eram seis homens, e os membros designados eram oito homens e quatro mulheres[8]

Antecipação e imaginação: caminhos para a equidade

À guisa de conclusão, a igualdade de gênero na educação e na ciência avança lentamente no mundo e no Brasil, porém ainda com muitas assimetrias no espaço e no tempo. Como resultado, as mulheres são geralmente sub-representadas nas estruturas decisórias e nas comunidades de pesquisadores sêniores, principalmente nas ciências exatas. No Brasil, as mulheres conseguiram melhorar sua participação na ciência, porém concentram-se nas ciências humanas e sociais e nas etapas iniciais da carreira. 

Por último, merece destaque a carência de políticas públicas brasileiras para a efetiva promoção da igualdade de gênero na ciência, do nível federal até o nível das diversas instituições de pesquisa. O fato do Currículo Lattes ter espaço para que a licença maternidade seja devidamente informada é um avanço recente, mesmo que seus efeitos sejam limitados. Por exemplo, os editais de pesquisa e as missões científicas normalmente não têm flexibilidade alguma para as mães. Todavia, o essencial não são apenas políticas para tempos normais. São políticas com imaginação e antecipação, para responder aos novos desafios que vieram com a pandemia, por exemplo. Muitas mulheres médicas, enfermeiras e todas as demais profissões da área da saúde, bem como muitas pesquisadoras, tiveram que suspender ou reduzir suas atividades profissionais para cuidar dos filhos quando escolas e creches foram fechadas. Esta era uma situação imprevisível com o confinamento obrigatório? Não. Se sabemos que as pessoas trabalham e produzem melhor quando se sentem seguras, podemos pensar em políticas públicas inovadoras para tentar dirimir conflitos familiares e problemas de saúde mental? Certo é que o tratamento diferenciado para mães e pais com filhos pequenos ajudaria a manter a paz social em tempos de crise sanitária e contexto de profundas incertezas. Mas a antecipação e a imaginação certamente vão muito além de simples políticas públicas. Podem ser representadas por ações concretas, como grupos de vizinhos que se organizaram com “creches temporárias” e a distribuição de comida para populações vulneráveis. Temos um longo debate sobre como melhorar nossa capacidade de adaptação para 2022, como sociedade, e assim contribuir para a igualdade de oportunidades na ciência. 

[1] Rodrigues, A. “Nobel completou 120 anos premiando poucas mulheres e nenhum brasileiro”. Agência Brasil. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2021-10/nobel-completou-120-anos-premiando-poucas-m ulheres-e-nenhum-brasileiro>. Acesso em 22 de janeiro de 2022.
[2] Dados comentados pelas professoras Sônia Bao e Fernanda Sobral no evento “IB Discute: Mulheres na Ciência”, de 08 de março de 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=v7HSaRy4Ac8. Acesso em 19 de janeiro de 2022.
[3] CUNHA, R.; DIMENSTEIN, M. e DANTAS, C. ”Desigualdades de gênero por área de conhecimento na ciência brasileira: panorama das bolsistas PQ/CNPq”. Revista Saúde Debate, 45 (spe 1), 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/X4B8B69D9cPFhxQbZDQSD6c/. Acesso em 19 de janeiro de 2022. Brasil. Ministério da Educação. Notas Estatísticas – Censo da Educação Superior 2016. Brasília, DF: Inep; 2016. Disponível em: <http://download.inep.gov.br/educacao_superior/censo_superior/documentos/2016/notas_sobre_o_censo_ da_educacao_superior_2016.pdf>. Acesso em 2 de fevereiro de 2020.
[4] Produtividade Acadêmica Durante a Pandemia: Efeitos de Gênero, Raça e Parentalidade (2020). Levantamento realizado pelo Movimento Parent in Science durante o isolamento social relativo à Covid-19. Disponível em: <https://www.parentinscience.com/_files/ugd/0b341b_81cd8390d0f94bfd8fcd17ee6f29bc0e.pdf?index=tru e>. Acesso em 22 de janeiro de 2022.
[5] Despacho do Presidente da República Nº 26, de 21 de janeiro de 2022. Diário Oficial da União. Publicado em: 24/01/2022 | Edição: 16 | Seção: 1 | Página: 31. Disponível em: <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/despacho-do-presidente-da-republica-375545448?utm_source=meio &utm_medium=email>. Acesso em 24 de janeiro de 2022.
[6] CUNHA, R.; DIMENSTEIN, M. e DANTAS, C. “Desigualdades de gênero por área de conhecimento na ciência brasileira: panorama das bolsistas PQ/CNPq”. Revista Saúde Debate, 45 (spe 1), 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/X4B8B69D9cPFhxQbZDQSD6c/. Acesso em 19 de janeiro de 2022.
[7] PIMENTEL, C. (2021) Dados comentados pela professora Sônia Bao no evento “IB Discute: Mulheres na Ciência”, de 08 de março de 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=v7HSaRy4Ac8. Acesso em 19 de janeiro de 2022.
[8] Disponível em: https://www.gov.br/capes/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/conselho-superior. Acesso em 19 de janeiro de 2022.


Esta nota é de responsabilidade dos respectivos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais os autores estão vinculados.

Ana Flávia Barros
Professora associada da UnB no Instituto de Relações Internacionais desde 2002. Co-líder do grupo de pesquisa Sistema Internacional no Antropoceno – CLIM/CNPq. Conselheira do Women Leaders for Planetary Health, Alemanha. Diretora do Brasilia Research Centre da Rede Earth System Governance. Senior Research Fellow e Membro da Ocean Task Force da Rede Earth System Governance. Pesquisadora do Centro de Estudos Globais/IREL/UnB.

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