Dentre as muitas instituições do Estado brasileiro que precisam ser profundamente reformuladas, o serviço secreto civil é, talvez, o caso mais urgente.

Criado em 1956, sob o nome de Sfici (Serviço Federal de Informações e Contra-informações), o órgão teve posteriormente a famigerada sigla SNI (Serviço Nacional de Informações) e, hoje, é chamado de Abin (Agência Brasileira de Inteligência). Desde a década de 1950, aparece no centro de operações que investem contra o Estado democrático de direito.

Há décadas, acadêmicos, legisladores e defensores dos direitos humanos se debruçam sobre qual seria o desenho institucional ideal para o órgão. Contudo, pouco se sabe sobre o que pensam seus integrantes. O que é lamentável, visto que há, dentro do corpo funcional da Abin, um grupo que se dedica a refletir com propriedade sobre as correções necessárias.

Esse grupo é composto pelos chamados “concursados”. Há quase três décadas, o órgão realiza concursos públicos para oficiais de inteligência (OI). 

Roberto Numeriano, um dos oficiais da geração dos concursados, é professor e doutor em ciência política, com sólida pesquisa sobre inteligência e democracia. Ele defende a refundação do órgão, com base em três premissas: a) respeito aos direitos e garantias constitucionais; b) eficácia no provimento de conhecimento estratégico de caráter informativo e/ou preditivo; e c) responsividade (accountability) em face dos meios e métodos de fiscalização e controle da atividade quanto às suas ações secretas.

Numeriano sempre defendeu a ruptura do que ele chama de “dualidade civil-militar” da Abin, materializada na tradicional subordinação do órgão ao GSI (Gabinete de Segurança Institucional, a antiga Casa Militar). Em sua opinião, “há sinais claros de esgotamento de um modelo administrativo que jamais criou uma identidade institucional que rompesse com o figurino criptomilitar, influência ainda dos tempos de uma atividade vinculada aos governos do regime autoritário, não ao Estado”.

Depois da tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023, a voz da geração dos concursados comprometidos com o fortalecimento do Estado democrático de direito começou finalmente a ser ouvida. Dois meses após o evento, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva determinou o fim da subordinação da Abin ao GSI, o que configura o primeiro passo para estancar a “dualidade civil-militar” do serviço secreto. Entretanto, o caminho é longo, haja vista que, após quase sete décadas de desvios institucionais, a cultura castrense está entranhada na área de inteligência civil.

A nota é de responsabilidade do autor e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais ele está vinculado.

Lucas Figueiredo

Jornalista e escritor. Atuou como pesquisador da Comissão Nacional da Verdade.

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