Por Humberto Jacques

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Mesma família

Em um país com muitos imigrantes como o Brasil, quem já não viu uma pequena letra ser invocada para criar-se uma distância infinita entre pessoas próximas?

Falo por mim, tenho um “Jacques” de família, que não tem nada a ver com os “Jaques” sem “c”, ou com os “Jackes”, ou os “Jakes”… Enfim, a um cartorário ou a um oficial da imigração – ah, esses servidores públicos, sempre eles! – se atribui uma cisma que só as pesquisas caras de DNA para resolverem.

Conversemos sobre o estrago que um AD permite. Vamos economizar, assim, no DNA.

Toda criança medianamente esperta e muito treinada na pré-escola com exercícios de encaixe de formas, a uma certa altura, se dá conta de que a costa brasileira, no mapa-múndi, se encaixa com a costa africana. A não ser, claro, pela presença azul e vazia de nomes, como do Oceano Atlântico Sul, a apartá-los na cartografia. 

Há dois outros mundos separados por um AD! E separações podem, sim, gerar até guerras. Só diálogo e superação de preconceitos para fazermos com que de um AD não se faça uma relação belíssima, como a do mito de Pólux e Castor, se tornar parecida com a bíblica relação de Caim e Abel.

Mas afinal, de que AD distorcido falo eu, o qual teria vulnerado seu papel prefixal de aproximação e promovido o inverso, com afastamento e distanciamento?

Antes, sejamos honestos e não culpemos o AD pelos nossos defeitos atávicos[1]! O problema reside em nós. Vamos a ele.

Mesma família

“Ministério Público” e “ministração do público” são termos de igual expressão, com uma escolha estilística do sufixo para transformação de verbo em substantivo.

Mas de repente, não mais que de repente, coloca-se um AD e temos Administração Pública e Ministério Público! Tão perto, mas tão longe. 

O “gentílico” público evidencia que são da mesma família. Grande, unida, ouriçada, brigando por qualquer razão, pedindo perdão, fazendo pirraça e catucando, como diz o jocoso hino da mais popular família brasileira?

Aliás, é outro integrante da família – a República.org – a nos instar a melhorar o diálogo intrafamiliar, o que começo por este primeiro escorço. 

Mas a proximidade a que me refiro neste momento vai além da evidência de que são ambos públicos. Administração e Ministério são termos incidentes sobre o mesmo ponto: serviço. Rogo, apenas, para não dificultarmos nossa aproximação, que não coloquemos ainda o “patronímico”[2] público no serviço, pois caminharíamos para a trimúrti[3] e não seria construtivo já identificar um “Xiva” nessa relação…

Seguindo na aparente dicotomia “ministração-administério”, a raiz etimológica latina está em minus (menos), minor (menor) e chegou a minister (o servo) e administer (posto a serviço de). Salustio, ao descrever a liderança do rei Jugurta (107 a.C.), da Numídia, em Bellum Iugurthinum (cap. LXXIV), afirma que para ele não havia “administris” que lhe permitissem gerir a guerra (cum neque bellum geri sine administris posset); nem havia medida, projeto ou pessoa que o satisfizesse (neque illi res neque consilium aut quisquam hominum satis placebat)…  Jugurta, preso, desfila em uma jaula como presa de guerra em Roma, antes de vir a morrer na prisão.

Gradativamente, àqueles que servem foi se transferindo o prestígio daqueles ou daquilo a que serviam. Um “Ministro de Estado”, portanto, tornou-se um magistrado importante na Administração Pública. A propósito, na raiz latina, magistrado, magistério, magistratura procedem de magis (mais) magister (acima dos demais). Talvez tenha se operado no léxico e no espaço público a regra de Mateus, 23:12, e o menor se tornou maior.

Apesar de, quer a Administração Pública, quer o Ministério Público, serem entes em serviço ao público, há distâncias criadas entre eles e em desfavor do público a que servem. É tempo de olharmos para a homologia entre Ministério Público e Administração Pública e reforçarmos as muitas ligações entre eles. Não é possível que de um simples AD se gere tanta sombra em um campo vocacionadamente luminoso. 

Poderíamos investir num estudo evolutivo para encontrar causas da apartação, mas o momento reclama um diálogo aproximativo e produtivo, que desarme conflitos potenciais e aponte para uma colaboração resolutiva da extensa pauta pública da qual a sociedade brasileira espera respostas há tempo demais. É possível, sim, que em um trabalho afinado entre Administração Pública e Ministério Público se produza a percepção da fraternidade, quiçá gemelar, entre esses dois mundos, ao mesmo tempo que já se ofereçam à cidadania avanços em suas legítimas expectativas.

São as muitas necessidades públicas, portanto, que convocam à priorização das pontes e alianças entre Ministério Público e Administração Pública, malgrado todas as vicissitudes e idiossincrasias que os trouxeram ao quadro presente. A colaboração, assim, é tanto um imperativo de suas missões institucionais como uma postura inteligente para uma parceria duradoura (com muitas descobertas genéticas a serem feitas) e eficiente para os tantíssimos desafios postos. 

Enfim, há obviedades e truísmos nesse caminho, que nem por isso se mostra simples ou fácil. Ao contrário, exige-nos virtude e esforço, além de muito diálogo franco e construtivo. Ad augusta per angusta. Vamos?

[1] Hereditários.
[2] Relativo ao pai, especialmente ao nome do pai.
[3] Conjunto formado pelos três principais deuses do hinduísmo (Brama, o criador, Vixnu, o preservador, e Xiva, o destruidor), considerados por algumas seitas e autores indianos como manifestações ou qualidades de um único deus absoluto ou realidade primordial.

Esta nota é de responsabilidade dos respectivos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais os autores estão vinculados.

Humberto Jacques
Professor da Faculdade de Direito da UnB. Subprocurador-Geral da República. ex-Vice-Procurador-Geral da República. ex-Vice-Procurador-Geral Eleitoral. ex-Vice-presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República.

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