Coordenação e cooperação são a base da constituição federativa de um Estado, mas, a partir de 2018, o Brasil sofreu um retrocesso nas duas vertentes. O regime fiscal sustentado num teto de gastos; as ações de enfrentamento à Covid-19; o enrijecimento dos critérios de avaliação da situação fiscal dos entes subnacionais; e a brusca redução na receita do ICMS, produzida pela desoneração dos combustíveis fósseis, são exemplos de ações de desagregação. A chegada no novo governo trouxe boas expectativas, produzidas por ações concretas, como o acordo para a compensação das perdas do ICMS, a criação do Conselho da Federação e a instalação da comissão técnica para avaliação dos impactos da reforma tributária nos municípios. Assim, abre-se um positivo caminho de retomada de equilíbrio para a organização de ações transversais e de políticas públicas integradas em várias áreas, como assistência social, meio ambiente e segurança pública.
O regime fiscal que passou a vigorar em 2018 limitava o crescimento da despesa primária (tanto obrigatória quanto discricionária) ao aumento da inflação. Apesar de não aplicável ao Fundeb ou às transferências constitucionais do FPM (Fundo de Participação dos Municípios) e FPE (Fundo de Participação dos Estados), a regra comprimiu o investimento público federal e também comprometeu o orçamento de áreas sociais. Moretti (2019)1 demonstra que, como consequência da EC 95/2016, o orçamento do SUS em 2019 sofreu uma limitação de R$ 9,5 bilhões. Há que se lembrar que a necessidade de investimento em saúde cresce sistematicamente. Se o financiamento do Sistema sofre contenção, os orçamentos estaduais e locais precisam arcar com a diferença para dar continuidade aos serviços públicos. E é o que vem ocorrendo. Dados do anuário multicidades demonstram que:
“A restrição permanente das despesas em saúde por parte do governo federal tem sobrecarregado os municípios, que comprometem sua receita própria bem acima do percentual mínimo de 15% exigido por lei. Ainda que se note uma queda da participação dos desembolsos com saúde na receita própria das prefeituras em 2018, a série histórica permite afirmar a existência de uma tendência de ampliação dos esforços municipais no financiamento do SUS. Se as cidades brasileiras optassem por limitar os gastos em saúde ao mínimo estipulado constitucionalmente, o SUS deixaria de dispor de R$ 29,22 bilhões, apenas em 2018. Vale ressaltar que esse valor é superior ao total da quota-parte municipal no IPVA, de R$ 21,45 bilhões. Se considerados os últimos cinco anos, R$ 152,77 bilhões teriam sido suprimidos do financiamento da política de saúde nacional” (FNP, 2020)2.
Tendência semelhante de pressão para a participação municipal observa-se no investimento público. Entre 2015 e 2020, os municípios foram responsáveis por 37,9% do financiamento de todo investimento governamental. Nesse mesmo período, o peso da União baixou de 26,2% para 22%; e o dos estados, de 47% para 40,1%.
Nesse ambiente de restrição de despesa primária da União, a concessão de garantia soberana a empréstimos de subnacionais também se tornou mais restritiva. A Emenda Constitucional 109 de 15 de março de 2021 estabeleceu um gatilho para ativação de medidas de contenção da despesa quando a despesa corrente superar 85% (oitenta e cinco por cento) da receita corrente. A partir dessa medida constitucional, as regras para classificação de risco de capacidade de pagamentos dos entes subnacionais (Metodologia CAPAG) foram modificadas para tornar mais rígida a concessão do aval da União para a capacidade de pagamento.
Outro grave movimento foi a limitação da tributação dos combustíveis fósseis. Por meio de Lei Complementar, a alíquota do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços foi limitada, afetando negativamente a principal receita tributária de Estados e Municípios de forma súbita e sem planejamento.
Para além das questões fiscais, as medidas necessárias ao enfrentamento da disseminação da Covid-19 durante a pandemia — como o fechamento dos negócios e a suspensão das aulas e atividades produtivas em geral — promoveram uma intensa celeuma sobre a autoridade responsável pela definição dessas ações. A União insistia em não apoiar medidas de isolamento, enquanto estados e municípios, concentrados na redução da velocidade de contágio, determinavam regras aplicáveis às suas áreas geográficas. Até que, em abril de 2020, o Supremo Tribunal Federal reconheceu aos entes subnacionais a autoridade para aplicar medidas restritivas em seus territórios.
Na sequência das ocorrências que comprometeram a confiança na aliança federativa brasileira e, por conseguinte, afetaram sua eficiência, há bons movimentos da União no sentido de retomar seu papel no arranjo das políticas públicas de abrangência nacional. Em abril de 2023, foi instituído o Conselho da Federação, órgão “com a finalidade de subsidiar e de promover a articulação, a negociação e a pactuação de estratégias e de ações de interesses prioritários comuns, com vistas ao desenvolvimento econômico sustentável e à redução das desigualdades sociais e regionais”. O Conselho será composto por ministros de Estado e por representantes de estados e municípios. Esse fórum pode se tornar uma instância necessária de conciliação política em relação a variados temas que hoje são relegados a uma regulamentação unilateral de agências executivas nacionais, que não possuem legitimidade política ou mesmo informações qualificadas sobre a abrangência dos impactos de sua atividade normativa.
Na mesma linha, a União e os estados celebraram um acordo no valor de R$ 26,9 bilhões para a compensação das perdas decorrentes da limitação da alíquota do ICMS dos combustíveis e da energia elétrica. Ainda que, do ponto de vista fiscal, o pacto tenha efeitos limitados para recuperar de forma sustentável a arrecadação comprometida em função das Leis Complementares 192 e 194, de 2022, a prática demonstrou reconhecimento da complexidade do sistema político brasileiro.
Entretanto, possivelmente a prova mais contundente para a confirmação dos sinais alvissareiros para a democracia federativa virá no processo de formulação da Reforma Tributária e da sua posterior implantação. A criação de um Imposto sobre Valor Agregado, que unifica os tributos hoje cobrados por União, estados e municípios, desafia o diálogo federativo e traz ao debate questões como autonomia, equilíbrio e guerra fiscal. Será, sem dúvidas, um grande teste para o país e, para o equilíbrio de suas forças de organização política.
Agora, resta a tarefa de coordenação e governança desse tênue equilíbrio de forças e interesses. A concertação dos movimentos do Congresso Nacional, Setores Econômicos, Entes Subnacionais, Poder Judiciário e Poderes Executivos Nacional, Estaduais e Municipais e sociedade civil organizada será fundamental para a consolidação de processos de mudança e reformas de políticas públicas essenciais ao desenvolvimento social e ao crescimento econômico do Brasil.
Vamos juntos construí-las.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1Disponível em: https:/brasildebate.com.br/efeitos-da-ec-95-uma-perda-bilionaria-para-o-sus-em-2019.
2Disponível em: https://fnp.org.br/publicacoes, Anuário 2020, p. 204.
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