Por Gabriela Lotta

Embora em cada política pública os burocratas de nível de rua desempenhem tarefas específicas, há algumas atividades que são comuns a todos estes profissionais, independentemente de onde eles trabalhem ou de que política implementem. 

Em primeiro lugar, é tarefa dos burocratas de nível de rua triar, classificar e categorizar usuários. A partir do contato com pessoas reais que trazem situações complexas e com informações infinitas, estes profissionais precisam transformar demandas individualizadas em categorias previamente existentes nas políticas. Esta categorização tem como consequência a alocação dos indivíduos a agrupamentos de clientes em políticas que recebem tratamentos específicos dependendo da categoria. Por exemplo: uma mulher que chega a um serviço de assistência social com um conjunto grande de condições de vulnerabilidade e problemas sociais, econômicos e familiares precisa ser categorizada de maneira sintética como uma beneficiária (ou não) do Bolsa Família. De um indivíduo que vivencia situações complexas e interrelacionadas, ela se transforma em um número associado a uma categoria de política pública. Outro exemplo é o professor que precisa categorizar os alunos entre os que aprenderam ou não, entre os disciplinados ou não, entre os que precisam de reforço ou não. 

Este processo de categorização é altamente complexo e se baseia não apenas nas regras formais das políticas, mas especialmente em estigmas e no senso comum. As pesquisas mostram, por exemplo, que, ao categorizarem quem são os “potenciais suspeitos” para realizar abordagem, os policiais levam em conta critérios como raça e roupa, e que muitas vezes reproduzem estigmas sociais. 

Índice
Reprodução de preconceitos
Grau de liberdade

Reprodução de preconceitos

O uso de estereótipos sociais faz com que o processo de categorização possa ter um duplo efeito: material, em termos de acesso diferenciado a bens e serviços, e simbólico, em termos dos efeitos sociais das categorias na produção ou reprodução de estigmas. O aluno classificado como “indisciplinado” pode não apenas receber mais sanção, mas pode carregar para sua vida essa categorização, gerando o que se chama de profecia auto-realizável, na qual o aluno taxado como aquele que não terá sucesso, de fato, não terá sucesso. 

Uma segunda tarefa dos burocratas de nível de rua é distribuir benefícios e sanções que afetam o bem-estar dos clientes. Os burocratas fazem isso a partir das categorizações já explicadas. Mas também fazem isso determinando graus de prioridade das diferentes situações ou categorias – que podem ou não ser formais (Lipsky, 1980). São exemplos os agentes comunitários de saúde que distribuem consultas com médicos ou dentistas; ou assistentes sociais que definem que indivíduos serão inscritos no Cadastro Único; ou dos fiscais de trânsito que decidem quais carros parar para fazer vistoria. A distribuição de benefícios e sanções tende a ser sempre diferente (e aquém) da idealizada pelos serviços. Isso porque recursos são escassos e burocratas precisam decidir (exercendo discricionariedade) quem deve receber o quê. 

Uma terceira tarefa dos burocratas de nível de rua é estruturar contextos de interação, determinando quando, com que frequência e sob quais circunstâncias a ação ocorrerá. É o caso do agente de saúde que determina dia e horário das visitas domiciliares; dos assistentes sociais que determinam quantidade de retornos e se haverá visita domiciliar; dos professores que determinam distribuir ou não horário extra de atendimento aos alunos etc. Mais uma vez, como recursos são escassos e o trabalho tende ao infinito (Lipsky, 1980), os burocratas de nível de rua exercem discricionariedade determinando quem deverá ser tratado, quando e de que forma. E estas determinações não são automáticas ou neutras, já que as situações reais encontradas pelos burocratas são muito mais complexas do que aquelas previstas pelas normas e regulamentos.

Por fim, uma quarta tarefa central dos burocratas de nível de rua é ensinar aos cidadãos o papel de ser cliente/usuário do Estado. Cabe a estes burocratas ensinar procedimentos, formas de comportamento, grau de deferência e respeito esperados, penalidades possíveis. Cabe a eles ensinar ao cidadão o que é possível (ou não) ser esperado do Estado, como tratar os burocratas e como conseguir adquirir informações no sistema. Cabe a estes burocratas disciplinar os usuários para se tornarem bons cidadãos – como fazem, por exemplo, os professores ao exigirem uniforme e silêncio em sala; ou os policiais ao dar sanção a comportamentos indesejados; ou o assistente social ao ensinar aos pais o tratamento correto para com as crianças. Estes processos de ensinar bons comportamentos aos usuários são exercidos pelos burocratas usando sua discricionariedade e, assim, são carregados de julgamento moral, de assimetria de poder, de categorias sociais sobre o que é certo ou errado. Mais uma vez, não são processos neutros, automáticos ou desprovidos de personalização. 

Grau de liberdade

Todas estas tarefas que definem a atuação cotidiana de um burocrata de nível de rua têm como elemento constitutivo o exercício de discricionariedade. Este é, na realidade, um conceito central para entender como as decisões acontecem nos serviços públicos. 

A discricionariedade implica dois elementos diferentes. O primeiro é o que chamamos de espaço de ação, ou seja, o tamanho de liberdade concedida aos profissionais para tomarem decisões. Quando um gestor define todos os procedimentos que devem ser operados, ele diminui o espaço de discricionariedade dos burocratas de nível de rua. Tende, assim, a aumentar a padronização dos serviços prestados. Ao contrário, quando as regras são muito genéricas, os burocratas terão mais espaço de discricionariedade. Isso significa que terão mais margem de interpretação e os serviços tendem a ser menos padronizados. 

Além do espaço de discricionariedade, é importante considerar como a discricionariedade é utilizada. Isso porque nem todos os burocratas sujeitos ao mesmo espaço de discricionariedade agem da mesma forma. Um exemplo é a variação na forma de trabalho comparando professores que atuam na mesma escola: eles têm o mesmo espaço de discricionariedade, mas o usam de forma muito diversificada. Este segundo elemento é o que chamamos de exercício da discricionariedade, ou discricionariedade como ação. Os estudos mostram que o exercício da discricionariedade é influenciado por vários elementos, como o gênero, raça, profissão e trajetória do burocrata de nível de rua, ou sua formação, os incentivos que recebem, a relação com seus colegas etc.

Isso significa que, para gerenciarmos melhor os serviços públicos, precisamos gerenciar melhor o espaço e o exercício da discricionariedade dos burocratas de nível de rua, já que suas decisões afetarão diretamente a vida dos cidadãos e os resultados das políticas públicas. 

Esta nota é de responsabilidade dos respectivos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais os autores estão vinculados.

Gabriela Lotta
Professora de Administração Pública da FGV, professora visitante de Oxford, pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole e do Brazil.Lab da Universidade de Princeton. Doutora em Ciência Política. Professora visitante de Oxford em 2021.

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