Por Regina Luna Santos de Souza

Esta é a primeira de uma série de seis notas técnicas, escritas para tratar com maiores detalhes o tema “Cargos Comissionados na Administração Pública”. Nesta nota, procuro apresentar os conceitos e as características principais dos diversos cargos existentes nas organizações públicas, distinguindo os possíveis regimes de contratação decorrentes da ocupação desses cargos. A ênfase, no entanto, repousa na caracterização e na descrição dos cargos comissionados – ou cargos de livre nomeação e exoneração. Nas próximas notas, apresento outras questões mais específicas a respeito dos cargos comissionados (evolução histórico-jurídica; comparações internacionais de experiências de designação, usos e abusos de cargos comissionados e profissionalização da burocracia, entre outros).

Índice
1. O que são cargos públicos?
2. Profissionalização da burocracia estatal: sistema do mérito vs. spoils system
3.  Uma breve caracterização dos cargos de livre provimento

1. O que são cargos públicos?

O conceito constitucional de cargos públicos é bem simples: trata-se de um “conjunto de atribuições e responsabilidades previstas na estrutura organizacional que devem ser cometidas a um servidor” (art. 3º da Constituição Federal de 1988). Ainda segundo a mesma constituição, são, todos obrigatoriamente “criados por Lei, com denominação própria e subsídios ou vencimentos pagos pelos cofres públicos, para provimento em caráter efetivo[1]como aos cargos em comissão de livre nomeação e exoneração[2], com algumas distinções”.

Essas definições são centrais para entender o processo de profissionalização da Administração Pública brasileira. É sabido que, no Brasil, a implantação do sistema do mérito se deu de forma bastante precária, o que faz diversos estudiosos e práticos da área, em pleno século XXI, duvidarem mesmo da existência de uma burocracia minimamente profissionalizada no país. É um debate recorrente e, no fundo, decorre de um traço cultural reconhecidamente latino e brasileiro: o patrimonialismo.

É sempre interessante recorrer à análise de Sérgio Buarque de Holanda, em seu clássico “Raízes do Brasil”, para ilustrar essa característica social que acaba transbordando para diversas esferas de relacionamento, incluindo o setor público. A análise, de inspiração weberiana, mas manejada com muita liberdade criativa, opera por tipos contrapostos: o ibérico e o saxônico, o espanhol e o português, o rural e o urbano, o semeador e o ladrilhador, o trabalho e a aventura. Este procedimento, na reconstituição de nossa formação social, vai se revelando, no decurso do texto, uma estratégia particularmente eficaz para a montagem do perfil do “homem cordial”, categoria que, com rara felicidade, procura apanhar as estruturas mais íntimas de nosso modo de ser. Esta “cordialidade” brasileira, traduzida pela tendência nativa de estabelecer todas as suas relações com base na afetividade e, principalmente, na dificuldade de “objetivizar” ou “racionalizar” as relações fora da família, até o momento constitui forte base para compreensão e explicação da tendência a não considerar as fronteiras entre as esferas pública e privada. Mais que isso, da tendência de “familiarizar” todos os seus relacionamentos, inclusive no tratamento dos assuntos de interesse coletivo, uma vez que a família é, para todos os efeitos, a base de sustentação desta sociedade.

Se, no entanto, a história da Administração Pública brasileira começa pela ocupação de cargos públicos por laços familiares, a partir do século XIX percebe-se uma virada no sentido de garantir a profissionalização, ou a objetivização de seu provimento.

2. Profissionalização da burocracia estatal: sistema do mérito vs. spoils system

São diversas as iniciativas no sentido de implantar-se um sistema do mérito na Administração Pública brasileira e derivaram, quase sempre, da iniciativa do Estado. A Constituição de 1824 já previa, em seu art. 179 inciso XIV, que “todo cidadão pode ser admitido aos cargos públicos civis, políticos ou militares, sem outra diferença que não seja por seus talentos ou virtudes”. A Carta de 1934 previa a universalização do direito de ingresso no serviço público, fixando o concurso de provas e títulos como meio para a primeira investidura em postos de carreira. E desde 1936, pelo menos, buscam-se soluções política e tecnicamente corretas para a implantação do sistema do mérito no serviço público brasileiro, reduzindo-se o espaço à corrupção no provimento dos cargos públicos.

Historicamente, tais normas têm-se constituído em bills on the book, posto que não se tem assegurado a sua implementação efetiva, ao longo das décadas. Em mais de uma oportunidade, chegou-se bem perto das soluções pretendidas, cumprindo analisar os motivos pelos quais as mesmas não foram adequadamente implementadas. Para Guerzoni Filho (1995), por exemplo, as primeiras tentativas sistemáticas de instituição de uma burocracia orgânica no Brasil, que se seguiram à Revolução de 1930, foram fruto do esgotamento do modelo de Estado existente, e determinadas pela percepção da necessidade de sua constituição, para que o novo governo pudesse exercer o poder de forma eficiente:

“(…) trata-se de exigência do próprio crescimento da complexidade da ação estatal. Vale registrar que os anos 1930 são marcados pelo fato de que o Governo passa a atuar em novas áreas. É sintomática a criação dos Ministérios da Educação e Saúde Pública e do Trabalho, Indústria e Comércio. A atividade de elaboração e implementação de políticas públicas começa a exigir maior especialização e profissionalismo” (GUERZONI FILHO, 1995).

Segundo Souza (1994), ao assumir o poder em 1930, o governo Vargas tinha como plataforma implementar reformas institucionais básicas no Brasil e, nesse sentido, a Administração Pública deveria assumir um papel de agente do processo de desenvolvimento. Até então, segundo esse autor:

“(…) o setor público, em seus três níveis, havia sido, tradicionalmente, um dos principais esteios da oligarquia rural. Seu controle proporcionava emprego para os protegidos políticos, sob uma forte mentalidade da prática da distribuição de cargos públicos entre os membros do partido vitorioso. Numa espécie de efeito retorno, tais práticas garantiam o sucesso eleitoral para a elite que as controlava. Ordenados certos e benefícios vitalícios tinham sido sempre ponto vital para nossa embrionária classe média, numa economia de escassas fontes de emprego fora da monocultura agrária” (SOUZA, 1994).

A Administração Pública, assim, não apenas não estava qualificada para desempenhar as funções esperadas, como era utilizada como uma fonte de privilégios pessoais, sendo virtualmente inexistentes as preocupações com racionalidade, qualidade dos serviços e eficiência no desempenho da atividade pública. O novo regime, por meio das reformas administrativas, visava, portanto, a controlar o poder oligárquico, redesenhando a política brasileira. Apesar das mudanças implementadas, especialmente em nível legal, tais reformas não lograram modificar as condições que produziam o spoils system[3] nativo, no qual os cargos públicos continuaram a ser distribuídos entre os partidos vitoriosos.

Ao longo do século XX, a Administração Pública brasileira presenciou um grande cabo de guerra entre a diversas tentativas de profissionalização, racionalização e implantação do sistema do mérito (representadas pelas sucessivas reformas administrativas, pela instituição do Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp), no governo  Getúlio Vargas, passando pela constitucionalização da implantação do sistema do mérito na Constituição de 1988, até a apresentação do Plano Diretor da Reforma do Estado, durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso) e a tendência à utilização da patronagem para alcance de objetivos políticos (representada por ocupação de posições públicas por formas diferentes do proposto no ordenamento jurídico, na linha de contratações sem concurso público, na certeza de uma futura incorporação daqueles profissionais ao quadro, com sua efetivação).

Ousaria dizer que, a partir do momento em que o Estado brasileiro tem como grandes aliados a utilização intensa de tecnologia de informação e comunicação (que permitiu, entre outras coisas, a automatização da função de gerenciar a força de trabalho) e o fortalecimento da função dos controles interno e externo (que permitiu analisar casos desviantes e desconstituir os atos lesivos à Administração), parte das condições necessárias para garantir a profissionalização da burocracia pública se concretizaram.

De fato, a entrada na carreira pública se faz por concursos abertos, competitivos e organizados por comissões ou bancas independentes. A transparência dos dados igualmente permite afirmar que, de um modo geral, a qualidade da força de trabalho no setor público vem aumentando gradativamente, à medida que se percebe também a valorização do esforço para garantia de aprovação nos certames. O servidor público médio é, com certeza, um profissional muito mais capacitado e comprometido com a entrega de resultados do que se poderia encontrar há um século.

Por outro lado, o que se poderia dizer a respeito da ocupação dos cargos de livre provimento, responsáveis pela gestão e pelo assessoramento nas organizações públicas?

3.  Uma breve caracterização dos cargos de livre provimento

Em primeiro lugar, deve-se ressaltar que a existência de cargos de confiança/livre provimento na estrutura das organizações públicas é inerente ao regime democrático, uma vez que se confere aos representantes e dirigentes executivos eleitos um certo grau de liberdade para compor as estruturas de comando. Entende-se que é do jogo democrático que, uma vez que haja uma alternância de projetos políticos, a designação para os cargos que respondem pelo funcionamento do governo, a entrega de resultados e a manutenção das atividades essenciais do Estado, haja igualmente uma alternância de pessoas a ocuparem tais funções.

Para isto, os cargos classificados como de provimento em comissão constituem dois grupos, a saber: o grupo denominado de Direção e Assessoramento Superiores, sendo este subdividido em duas categorias, Direção e Assessoramento Superiores e Assessoramento Superior; e o grupo denominado Cargos de Natureza Especial. O primeiro grupo compreende o que se pode chamar de atividades de confiança, abrangendo planejamento, supervisão, coordenação, orientação e controle no mais alto nível da hierarquia dos órgãos da administração federal direta.

Em específico, quanto ao cargo público de livre provimento, destaca-se que a classificação ‘livre provimento’ aplica-se em decorrência de não haver formalidades do mesmo tipo que as requeridas para ocupação de um cargo efetivo, quanto à seleção de seu ocupante, ou seja, livre provimento é atributo do cargo público e não da pessoa que nomeia. A motivação para escolha do ocupante do cargo, futuro servidor, independentemente se originado ou não de carreira no serviço público, depende exclusivamente de quem nomeia. Este fato implica expectativas de desempenho do cargo associadas aos interesses políticos de quem tem o poder de nomear. Por este motivo, exige-se lealdade pessoal do nomeado e seu vínculo é precário. Outra característica do cargo público de livre provimento é seu poder hierárquico sobre os demais de provimento efetivo. Também existem requisitos formais quanto às suas atribuições funcionais associadas ao lugar que ocupa na hierarquia e quanto às atribuições que o ato de nomeação definir.

Assim, percebe-se que a existência desses cargos no ordenamento jurídico e nas organizações públicas é tão justificado quanto a existência de assemelhados (gerentes, diretores, entre outros) no setor privado. Seus ocupantes se revestem de uma responsabilidade diretamente relacionada à garantia de bom funcionamento do órgão.

O que se procura discutir aqui é que limites devem existir na ocupação dessas funções, assegurando que as nomeações políticas atendam, em algum grau, a garantia de que os indicados detenham um mínimo de competências necessárias para a continuidade da prestação dos serviços, respeitando-se também os instrumentos normativos vigentes e os princípios constitucionais de moralidade. De fato, durante boa parte do processo de constituição dos quadros permanentes da burocracia federal brasileira, por exemplo, houve uma profusão de cargos em comissão de livre nomeação e exoneração, cujo provimento jamais foi vinculado de forma geral à ocupação de cargos efetivos. Apesar de tentativas de “enxugamento” da máquina, como afirma Luiz Alberto dos Santos (2009),

“(…) os cargos foram sempre numerosos e se tornaram moeda de troca na busca de apoio político por parte do governo, quando não se constituíam em mera apropriação clientelista, fisiológica ou nepotista de postos de trabalho, cujo acesso se dá sem concurso público. As tentativas de fixar regras limitadoras do foram ora tímidas, ora inefetivas, pela própria ausência de servidores com o perfil seu exercício, por meio de sua vinculação a carreiras ou ao sistema do mérito, necessário para poderem prover a administração de quadros capazes de garantir a continuidade administrativa e refrear a tendência ao clientelismo” (SANTOS, 2009).

Esse quadro, no entanto, se alterou significativamente nos últimos anos. Desde 1988, com a implantação da Constituição Federal, avançou-se na definição de critérios para sua ocupação, com a preferência, na indicação, para servidores ocupantes de cargo de carreira técnica ou profissional, ao mesmo tempo em que mantinha a necessidade de lei para definir casos, condições e percentuais mínimos em que os cargos em comissão (destinados apenas para funções de direção, chefia e assessoramento) deveriam ser preenchidos por servidores de carreira: “as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento” (Constituição Federal, inciso V do artigo 37). 

Com efeito, tem-se questionado o uso desses cargos para fins menos republicanos, inclusive no caso de nomeações feitas para assegurar o apoio dos partidos no Legislativo, ou em casos de nepotismo ou de clientelismo, havendo mesmo uma Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal (STF) limitando a prática:

“A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica, investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança, ou, ainda, de função gratificada na Administração Pública direta e indireta, em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição” (Súmula Vinculante nº 13, de 21 de agosto de 2008).

Assim, sustento a afirmação de que o cenário para ocupação dessas posições temporárias na Administração Pública brasileira mudou bastante, ainda que não esteja tão perto dos valores weberianos. Nas próximas notas, vou aprofundar a distinção entre cargos de livre provimento e funções de confiança, além de avançar na evolução histórico-jurídica e na atual concepção de seleção e ocupação.

BIBLIOGRAFIA
GUERZONI FILHO, Gilberto (1995). Burocracia, Tecnocracia, Pseudoburocracia e a Constituição de 1988: Tentativas e Perspectiva de formação de uma burocracia pública no Brasil. Brasília, Senado Federal.

SANTOS, Luiz Alberto dos (2009). “Burocracia profissional e a livre nomeação para cargos de confiança no Brasil e nos EUA”. Revista do Serviço Público. Brasília 60(1): 05-28 Jan/Mar.

SANTOS, Luiz Alberto dos e SOUZA, Regina Luna Santos de (2005). Corrupção, Nepotismo e Gestão Predatória: um estudo do caso brasileiro e alternativas para seu enfrentamento. XVII Concurso del CLAD sobre Reforma del Estado y Modernización de la Administración Pública, Santiago-Chile.

SOUZA, Nelson Mello (1994). “Reforma Administrativa no Brasil: um debate interminável”. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, FGV, vol. 28, nº 1, p. 54-70, Jan-Mar.


[1] Esses cargos são os pilares da organização funcional dos órgãos públicos, sendo ocupados por pessoas aprovadas e classificadas em concursos públicos competitivos de provas e títulos, além de serem organizados em padrões e classes numa carreira, e terem definida uma forma de evolução horizontal (padrões em uma classe) e vertical (promoção à classe seguinte) baseada em desempenho ao longo do tempo.

[2] Já esses cargos, como o próprio nome já sugere, são de livre provimento e seu conteúdo atributivo se relaciona diretamente com a divisão e a hierarquia de responsabilidades, definidas na estrutura de uma organização pública.

[3] Na política dos Estados Unidos da América, o spoil system (também conhecido como patronage system) é uma prática na qual um partido político, depois de ganhar uma eleição, dá cargos no governo para seus apoiadores, como retribuição ao apoio dado na eleição e um incentivo para continuar trabalhando pelo partido, totalmente em contraposição a um sistema que privilegie o mérito, tendo semelhanças com o clientelismo. O termo deriva da frase do então senador norte-americano William L. Marcy, “to the victor belong the spoils” (ao vitorioso pertence o espólio), referindo-se à vitória do democrata Andrew Jackson na eleição de 1828. Quando Andrew Jackson foi eleito presidente, muitos ricos norte-americanos possuíam cargos no governo que até então eram considerados perpétuos – uma vez indicados pelo presidente ou pelo Congresso, não eram substituídos até sua morte ou sua aposentadoria. Todavia, Jackson, após assumir a presidência, afastou muitos destes oficiais do governo, substituindo por seus seguidores; diversos historiadores acreditam que Jackson tenha iniciado o sistema de spoils.

Esta nota é de responsabilidade dos respectivos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais os autores estão vinculados.

Regina Luna Santos de Souza
É mãe por escolha de 4 filhos maravilhosos, professora por vocação e servidora pública por convicção e compromisso com uma vida melhor para o povo brasileiro. Graduada em Relações Internacionais e Ciência Política (UnB), especialista em políticas públicas e gestão governamental (Enap), mestre em Ciência Política (UnB) e doutora em Comunicação (UnB). Atua na Administração Pública Federal desde 1988, tendo acumulado experiências diversas, em cada órgão em que atuou. No momento, concilia a função de EPPGG com a experiência acadêmica e de pesquisa, ao coordenar os programas de pós-graduação profissional stricto sensu da Escola Nacional de Administração Pública (Enap/ME).

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