Por Paulo Modesto

Quais são as relações entre inovação, regulação e eficiência no setor público? O Direito vigente oferece respostas para suportar a inovação orientada à melhoria da produtividade e qualidade da ação pública? No Direito brasileiro, sem mudanças estruturais complexas, pode-se identificar instrumental técnico e práticas capazes de incrementar a eficiência administrativa? Regimes jurídicos premiais, microssistemas temporários, sandbox regulatórios, hackathons de seleção ou aperfeiçoamento de projetos, acordos de desempenho, processos administrativos de decisão coordenada e contratos de impacto podem alterar a arquitetura de incentivos dos formuladores e executores de políticas públicas? Normas experimentais podem ajudar a incrementar o regime jurídico administrativo, melhorar a alocação da força de trabalho e incentivar o aumento da produtividade na Administração Pública? Em que medida as leis e o orçamento público podem incorporar estratégias de estímulo à inovação e à experimentação?

Esse conjunto de perguntas vale-se de insights da ciência comportamental e de experiências institucionais dos últimos anos, porém contrasta com o Direito Administrativo convencional. O Direito Administrativo tradicional uniformiza, estiliza e idealiza o “homo administrativus” e, à semelhança do “homo economicus”, pressupõe como regra um personagem fictício: o gestor público permanentemente capaz da melhor decisão, a partir de completa informação empírica e pleno conhecimento de seu ambiente regulatório, pronto a responder de modo ótimo aos desafios do interesse público. Esse modelo heurístico tradicional reage ao erro administrativo com intolerância e inibe a experimentação e a inovação, pois confunde regulação adequada com uniformização ou discricionariedade ótima, sendo pouco realista.

Índice
Racionalidade limitada ou contextos de incertezas
O controle dos gestores públicos

Mecanismos experimentais na gestão pública
Programas de sandbox
Governo digital
Direito administrativo da experimentação

Racionalidade limitada ou contextos de incertezas

No plano concreto, a ação pública quase sempre se move em contexto de “racionalidade limitada”, pois o tempo, a informação e os recursos são escassos, o que obriga a decisão “sub-ótima” e, até mesmo, sujeita a efeitos de contágio, de pânico, de imitação, de medo ou de euforia inconsistentes. Além disso, em várias situações o agente administrativo atua em processos de decisão sequencial, reagindo estrategicamente a decisões de terceiros, que agem ora de modo convergente, ora de modo concorrencial ao poder público. Nesses casos, a rigor, a “ótima” ou “subótima” decisão do gestor em parte depende da reação futura ou da decisão incerta de terceiros[1]. A resposta à pandemia da Covid-19 foi didática sobre o que significa o gestor público decidir em estado de incerteza severa ou incerteza em sentido estrito, trazendo uma “incerteza knightiana”, quando as variáveis sequer são conhecidas e, portanto, não se consegue mensurar a probabilidade de determinados comportamentos futuros de agentes interferentes e usuários[2].

O controle dos gestores públicos

A aversão ao risco, natural no comportamento humano, encontra reforço nos gestores públicos, que se movimentam em ambiente de controle multiportas. O controle dos gestores públicos é marcado pela complexidade de órgãos dispersos em poderes distintos, que frequentemente divergem entre si e adotam lógicas particulares de compreensão da própria legislação vigente. A expectativa de rígida atuação do controle e o risco de punição severa em caso de mínimo erro na atuação do gestor incentivam a cautela, a manutenção de rotinas e desincentivam o experimentalismo. O “apagão das canetas” é a primeira resposta ao agravamento do risco para a decisão administrativa, mas tem custos sociais e econômicos severos. Talvez a criação de espaços normativos de quebra consentida da uniformidade e a aplicação de mecanismos experimentais normativamente autorizados, em caráter temporário e limitado, seja a chave para incentivar a inovação nos modos de atuação do gestor público.

O modelo irrealista do administrador omnisciente afeta o desenho de institutos jurídicos relevantes e, mais do que tudo, altera a percepção do gestor real sobre os limites de sua capacidade de inovar e a compreensão do controlador sobre o seu papel. Este último tende a valorizar a defesa do paradigma da ação pública “ótima” ou, segundo padrões, do “gestor médio”, figura que não deixa de ser uma idealização manipulável e uniformizadora, desatenta ao dever de análise concreta do contexto decisório (artigo 22 do Decreto-Lei nº 4.657/1942, com a redação da Lei nº 13.655/2018). A caricatura do gestor público maximalista é resistente, porém pode ser desestruturada e vencida quando confrontada por institutos de experimentação controlada na ação administrativa.

Mecanismos experimentais na gestão pública

É fato que o gestor público brasileiro não possui uma estrutura adequada de incentivos ao avanço institucional e à adoção de mecanismos experimentais na gestão pública. Nesse campo, para fazer valer os riscos, é preciso cogitar prêmios e incentivos orçamentários, e oferecer segurança para o planejamento da atuação do gestor no tempo e o desenvolvimento de projetos-piloto inovadores, desestimulando o fetiche da rotina e a segurança do velho modelo de atuar[3].

A experimentação jurídico-administrativa é sempre quebra da uniformidade e reconhecimento do ambiente regulatório como fator decisivo para o desenho de serviços novos, de impacto singular e valor público. É a compreensão de que inovação não é simples sinônimo de informatização e exige aprendizado também do regulador. A experimentação pode receber suporte direto do legislador ou derivar de decisões conscientes de gestores, que empregam espaços regulatórios delegados à Administração para ensaios de microssistemas normativos especiais.

Leis temporárias, como a Lei Geral da Copa do Mundo (Lei nº 12.663/2012), ou as normas de caráter transitório aplicáveis a parcerias celebradas pela Administração Pública durante a vigência de medidas restritivas relacionadas ao combate à pandemia da Covid-19 (Lei nº 14.215/2021), leis que fomentam a experimentação, como a Lei das Startups (Lei Complementar nº 182/2021), leis que permitem a experimentação organizacional, como a Lei do Contrato de Desempenho (Lei nº 13.934/2019), ou modelos decisórios coordenados (Lei nº 14.210/2021), ainda são incomuns e pouco compreendidas. Por outro lado, experiências com regulatory sandbox (“caixa de areia regulatória”) têm ganhado desenvolvimento em várias agências governamentais (como, por exemplo, na Comissão de Valores Imobiliários – CVM, na Superintendência de Seguros Privados – Susep, e Banco Central do Brasil).

Programas de sandbox

Em regra, após um processo de seleção, os programas de sandbox oferecem a empreendedores um regime regulatório flexível, com menor carga de exigências burocráticas e, eventualmente, acrescido de apoios administrativos e financeiros para o desenvolvimento de projetos inovadores, sem extensão das flexibilidades para a disciplina geral da área[4]. São programas de prazo determinado, que asseguram a empresas em estágio inicial a possibilidade de testarem serviços e produtos em ambiente limitado e supervisionado (ambiente regulatório controlado) e em regime de exceção temporário, isto é, com redução de custos e remoção ou adaptação temporária de barreiras regulatórias[5]. O objetivo é favorecer a inovação e, ao mesmo tempo, permitir aos órgãos reguladores a aprendizagem sobre riscos e problemas relacionados a iniciativas e tecnologias disruptivas e, assim, criar ambiente de testes de regulação e controle[6]. Nada impede que a legislação contemple um “ambiente regulatório experimental” também no âmbito de relações entre unidades da organização administrativa, ou para facilitar a criação de projetos-piloto em áreas do serviço público atendidas por entidades públicas.

Governo digital

Por outro lado, ensaios de simplificação e desburocratização administrativa – a exemplo da Lei nº 13.726/2018, que ratificou a eliminação da exigência de comprovantes desnecessários e formalidades inúteis, permitindo aos agentes administrativos o reconhecimento direto de firma, a autenticação imediata de documentos, a certificação administrativa de autenticidade de cópias, e a declaração de equivalência documental – apenas tentam afastar a burocracia cartorial da rotina da administração. As normas mais recentes vão além, pois dispensam a presença dos próprios agentes, facilitando o autosserviço administrativo, segundo o que se tem denominado de governo digital (Lei nº 14.129/2021). O objetivo nos dois casos não é exatamente a experimentação, mas a aceleração da atividade administrativa e sua simplificação, com estímulo ao fornecimento de serviços públicos por meio digital, sem necessidade de solicitação presencial; a simplificação dos procedimentos de solicitação, oferta e acompanhamento dos serviços públicos; a interoperabilidade de sistemas e a promoção de dados abertos; a implantação do governo como plataforma e a promoção do uso de dados, preferencialmente anonimizados; o uso de inteligência artificial para produção de atos vinculados; criação de uma “janela única” (one-stop-government), entre outros objetivos. Esses são exemplos meritórios de uniformização simplificadora, inseridos no amplo campo de estudo das transformações do direito administrativo[7], porém inconfundíveis com a experimentação administrativa, pois nesta última predomina a singularidade e não a padronização.

Direito administrativo da experimentação

A experimentação opera em pequena escala e visa a favorecer o aprendizado fatual e incremental, a descoberta das variáveis relevantes e a coleta de informações antes da decisão regulatória geral ou da generalização de práticas bem-sucedidas. Experimentação envolve análise controlada de erros e acertos, a descoberta da dose certa de disciplina normativa, o que não se faz sem “teste de necessidade” e avaliação de impacto regulatório (prospectivo e retrospectivo). No setor público essa avaliação também pode ser acompanhada pela suspensão de determinadas exigências regulamentares e, eventualmente, até exigências legais (se a lei permitir), durante certo tempo e para um conjunto limitado de serviços, que passam a ser regidos por normas alternativas (a exemplo do mecanismo denominado “direito ao desafio”, previsto no direito português pelo Decreto-Lei nº 126/2019). Entre nós, são mais frequentes regimes jurídicos experimentais através de sandbox, em ambiente controlado, ou contratos de gestão intra-administrativos, sob a nomenclatura atual de contratos de desempenho (Lei nº 13.934/2019).

Estudar alguns desses instrumentos do Direito Administrativo da experimentação constitui uma agenda de reflexão que apresenta enorme relevância neste momento de recursos escassos e elevada exigência de aumento de eficiência e entrega de resultados pelo Estado. Nos próximos meses, em parceria com Walter Baère Filho, serão abordados em textos específicos alguns desses instrumentos do Direito Administrativo da experimentação, vocacionados a criar ambientes normativos controlados de inovação na Administração Pública, ancorados em iniciativas nacionais e em subsídios do Direito Comparado, com vistas a avaliar os pressupostos necessários para uma lei geral para a experimentação administrativa no Brasil.

Como bem ensina Franco Berardi, não há um futuro, mas muitos (“not one future, but many”), sendo intrínseca em cada momento a pluralidade de futuros possíveis (futurabilidade)[8]. No Direito Administrativo, o mesmo ocorre: são muitos os futuros possíveis, apenas o passado é que não tem volta.

Esta nota é de responsabilidade dos respectivos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais os autores estão vinculados.

Paulo Modesto
Professor da Faculdade de Direito da UFBA, presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público e membro do Ministério Público da Bahia e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia.

[1] MODESTO, Paulo. Café com Prosa: crônicas de direito e reforma do estado. Rio de Janeiro: Ed. GZ, 2021, p. 214, ou, também, em MODESTO, Paulo, “O erro grosseiro administrativo em tempos de incerteza”. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2020-jul-30/interesse-publico-erro-grosseiro-administrativo-tempos-incerteza>.
[2] KNIGHT, Frank H. Risk, Uncertainty, and Profit (Boston MA: Hart, Schaffner and Marx; Houghton Mifflin, 1921). Disponível em: <https://oll.libertyfund.org/titles/306>.
[3] Neste sentido, ver UNGER, Roberto Mangabeira. O Direito e o Futuro da Democracia. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 18.
[4] Ver, sobre o tema, FILHO COUTINHO, Augusto. Regulação ‘Sandbox’ como instrumento regulatório no mercado de capitais: principais características e prática Internacional. Revista Digital de Direito Administrativo. Jul/2018. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/rdda/article/view/141450/146135>.
[5] No Direito brasileiro, para fins da Lei Complementar nº 182/2021, que instituiu o marco legal das startups e do empreendedorismo inovador, “sandbox regulatório” é sinônimo de “ambiente regulatório experimental”. A definição é explicitada no Art. 2º, II, da LC nº182, segundo a qual considera-se “ambiente regulatório experimental (sandbox regulatório): conjunto de condições especiais simplificadas para que as pessoas jurídicas participantes possam receber autorização temporária dos órgãos ou das entidades com competência de regulamentação setorial para desenvolver modelos de negócios inovadores e testar técnicas e tecnologias experimentais, mediante o cumprimento de critérios e de limites previamente estabelecidos pelo órgão ou entidade reguladora e por meio de procedimento facilitado”.
[6] Com abordagem crítica, atualizada e cuidadosa, conferir RANCHORDAS, Sofia. Experimental Regulations and Regulatory Sandboxes: Law without Order? (September 30, 2021). University of Groningen Faculty of Law Research Paper No. 10/2021. . Disponível em SSRN: <https://ssrn.com/abstract=3934075>.
[7] Sobre as transformações do direito administrativo, conferir, entre muitos outros, TAVARES DA SILVA, Suzana. Um novo direito administrativo? Coimbra: Imprensa Universidade de Coimbra, 2010; BAPTISTA, Patrícia. Transformações do direito administrativo. Rio: Lumen Juris, 2018; MARRARA, Thiago (org.). Direito Administrativo: transformações e tendências. São Paulo: Almedina, 2014; BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo. Rio: Renovar, 3ª. Ed, 2014; MODESTO, Paulo (org). Nova Organização Administrativa Brasileira. Belo Horizonte: Fórum, 2ª. Ed, 2010; RIBEIRO, Leonardo Coelho. O Direito Administrativo como ‘Caixa de Ferramentas’. São Paulo: Malheiros, 2016; CYRINO, André. Direito Administrativo de carne e osso. Rio: Ed. Processo, 2020; BARNES, Javier (org). Innovación y Reforma en el Derecho Administrativo. Sevilla: Ed. Derecho Global, 2006; ALFONSO, Luciano Parejo. Crisis y Renovacion em el Derecho Publico. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991.
[8] BERARDI, Franco. Depois do futuro. Trad. Regina Silva. São Paulo: Ubu Editora, 2019, p. 178 e segs.

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