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O Estado entre a negligência e a criminalização
O surgimento de uma pauta social pública
O lugar do Estado no debate atual sobre a população em situação de rua

A discussão sobre a população em situação de rua está entre as pautas mais debatidas pela mídia e por governos. Na cidade de São Paulo, as disputas pelo centro e os debates sobre habitação colocaram o tema em evidência na arena pública. Mas esse é um fato consideravelmente recente na história do país. As primeiras discussões que colocam as pessoas em situação de rua como alvo de políticas públicas sociais foram iniciadas nos anos 1990, em contextos locais. Apenas em 2009, é elaborado um decreto que cria uma política nacional voltada ao público. 

No Decreto n. 7.053, de 2009, a população em situação de rua é definida como “grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória”. A extensão da definição é resultado de décadas de discussão e disputa pelo termo e culmina no reconhecimento da heterogeneidade do público e da diversidade de experiências que marcam essa situação. 

O próprio termo “pessoas em situação de rua” é recente: antes eram chamados de mendigos, vadios, andarilhos, loucos e outras expressões pejorativas. A conceituação passou a adotar outras definições, como povo de rua, sofredores da rua, moradores de rua e população de rua, até encontrar o uso atual (MELO, 2017). Essa foi uma trajetória marcada por disputas em torno do conteúdo dos discursos dos agentes engajados na questão, que marcam a construção de uma categoria política e, frequentemente, questionada. Este texto tem por objetivo recuperar tal história, abordando o percurso de construção da população em situação de rua como um problema público. 

O Estado entre a negligência e a criminalização

Até os anos 1990, o debate acerca das pessoas em situação de rua se dava em duas esferas: (i) como problema público, era tratado de forma repressiva e policialesca (KOHARA, 2018), criminalizando a permanência nas ruas como “vadiagem”; e (ii) como questão de cunho privado, organizada principalmente por instituições religiosas (DE LUCCA, 2007). Esse cenário era acentuado pelo contexto autoritário da ditadura militar, presente até meados dos anos 1980, o que acirrava o antagonismo entre as ações estatais que criminalizavam a permanência nas ruas e o engajamento autônomo da sociedade civil e de entidades religiosas.

O reiterado uso dos termos “mendigos”, “vadios” e “maloqueiros” estava relacionado ao estigma de preguiça e falta de esforço, frequentemente associado a pessoas em situação de rua, responsabilizando-as pela sua condição. Esse era, sobretudo, o tom utilizado pelo setor público para tratar do tema, simbolizado inclusive pelas contravenções penais de mendicância – revogada em 2009 – e vadiagem, que segue em vigor até os dias atuais, a despeito de seu desuso. A ideia moral do trabalho como um valor que atribui dignidade ao sujeito aproximava as pessoas em situação de rua de processos de criminalização e marginalização, além de discursos que reforçavam a ideia de pessoas “perigosas” ou “doentes” (DE LUCCA, 2007).

Em oposição a essa narrativa, no final dos anos 1970, as entidades religiosas que trabalhavam com o público passaram a usar o termo “sofredores da rua”, proposto pelas próprias pessoas em situação de rua atendidas, que buscavam trazer luz para a dimensão de vulnerabilidade à qual estavam expostas. Na época, o trabalho realizado por essas organizações propunha processos de evangelização associados à formação política e ao fortalecimento de lideranças, dando origem à Comunidade de Sofredores da Rua, espaço de convivência e celebração (DE LUCCA, 2007). 

Já nos anos 1980, a pauta passa a ganhar mais espaço na mídia, com amplo crescimento de notícias e reportagens sobre pessoas vivendo embaixo de viadutos, em casas abandonadas e nas calçadas e praças públicas. Nesse contexto, há um reconhecimento da crescente miséria e do desemprego que a população enfrentava, o que tornou mais complexa a disputa entre as narrativas de “vadiagem e delinquência” e de “pobreza e desemprego” (ROSA, 2005).

O surgimento de uma pauta social pública

A crise econômica e o cenário de intenso desemprego no Brasil dão força às reivindicações sobre oportunidades de trabalho, o que também ressignifica o debate sobre população em situação de rua, enfraquecendo o discurso de que essa situação seria resultado do comportamento voluntário dos indivíduos, ou de “gente que não quer trabalhar” (DE LUCCA, 2007). Assim, o poder público passa a reconhecer que esses sujeitos são trabalhadores cujos direitos devem ser garantidos, como pode ser ilustrado, especialmente, pelo caso dos catadores de materiais recicláveis. 

No início dos anos 1990, são realizados os primeiros censos e contagens de pessoas em situação de rua em algumas cidades no país. Também é nesse contexto que surgem as primeiras políticas públicas voltadas para essa parcela da população, como a primeira Casa de Convivência conveniada com a prefeitura de São Paulo, estabelecida em parceria com a Comunidade de Sofredores da Rua, tornando a prática das Oblatas uma referência no atendimento ao público (DE LUCCA, 2007). Esse primeiro modelo de atendimento revela a tônica das alternativas públicas existentes na cidade de São Paulo até os dias de hoje: políticas de assistência social, criadas por meio de convênios com organizações privadas (CANATO, 2017). Um dos aspectos inaugurados nesse momento foi o fortalecimento de um discurso inspirado na ideia de (re)construção da autonomia do indivíduo (FRANGELLA, 2004; MELO, 2017) em suas várias dimensões: emprego, renda, educação e moradia. 

No final dos anos 1990, são inauguradas as primeiras legislações sobre o tema, mas, apenas a partir dos anos 2000, a população em situação de rua se consolida como objeto de interesse público. A década é marcada por contagens periódicas em alguns municípios do país, estimativas realizadas em nível nacional e a construção de um movimento nacional organizado em torno do tema. 

Além disso, o Decreto n. 7.053 cria a Política Nacional da População em Situação de Rua e o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, que surge enquanto espaço de participação social destinado à discussão de políticas públicas para esse segmento. Em seguida, são criadas outras políticas voltadas ao público, como o Consultório na Rua, os Serviços Especiais de Abordagem Social e a tipificação nacional dos serviços de acolhimento institucional, produzindo uma rede de serviços especializados. Esse processo estabelece a população em situação de rua como sujeito político e de direitos, que passa a dialogar com o setor público no sentido de reivindicar suas demandas. 

O lugar do Estado no debate atual sobre a população em situação de rua

A partir do final dos anos 2000 e início dos anos 2010, a população em situação de rua passa a se organizar em torno de movimentos sociais reconhecidos pelo poder público e pela sociedade civil. O lema do Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR) – “não fale da rua sem a rua” – foi se consolidando por meio de um diálogo mais consistente entre setores dos governos e a sociedade civil. 

Além disso, a institucionalização desse padrão se deu com a criação de conselhos participativos destinados à discussão de políticas para esse público, como o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para População em Situação de Rua (CIAMP RUA), criado em 2009, em nível nacional, e o Comitê Intersetorial da Política Municipal para a População em Situação de Rua (Comitê PopRua), criado na cidade de São Paulo, em 2013.

O fortalecimento do tema na agenda e a percepção do aumento crescente das pessoas em situação de rua em todo o país – que pode ser percebido no crescimento de 38% desse público durante a pandemia (segundo o IPEA) – trouxeram à tona discussões que questionam o modelo clássico de acolhimento institucional, principal política disponível ainda nos dias de hoje e pautada na “escada da autonomia” (SALATINO, 2023). Assim, movimentos sociais e entidades da sociedade civil engajados com tema têm proposto a construção de novas alternativas para as pessoas em situação de rua, em busca de soluções que garantam o acesso imediato à moradia, sem necessidade de passagem por centros de acolhida ou de realização de financiamentos habitacionais (KOHARA, 2018).

Apesar da resistência de alguns setores, o debate sobre habitação para pessoas em situação de rua tem ganhado espaço na agenda pública com algumas iniciativas importantes, ainda que de baixo alcance. Em nível nacional, foi publicada, no ano de 2021, uma portaria que institui o Programa Moradia Primeiro, o qual é voltado para pessoas em situação de rua e vem recebendo grande atenção da atual gestão nacional. Em nível local, é possível citar como exemplos o Projeto Piloto de Locação Social, na cidade de São Paulo, e o Projeto Piloto de Moradia Primeiro, no município de Franca. 

Em resumo, o debate público sobre a população em situação de rua foi e é repleto de disputas – desde o termo utilizado para se referir ao grupo até a construção de alternativas para viabilizar a garantia de direitos a essa população. Em todo esse percurso, o que há de comum é uma atuação expressiva da sociedade civil e dos movimentos sociais na mobilização dentro e fora do Estado, buscando pautar políticas e discutir formatos de serviços. 

No entanto, a despeito do reconhecimento atual da pauta e da consolidação dos movimentos sociais como atores importantes nesse debate, os estigmas associados ao público e os processos de criminalização e marginalização ainda se fazem presentes em alguns contextos de atuação do Estado, especialmente nas discussões sobre segurança e limpeza urbana. Assim, trata-se de um percurso inacabado, que provavelmente seguirá se construindo na disputa de narrativas, mas que deve contar com cada vez mais espaço e voz para a sociedade civil e, sobretudo, para as próprias pessoas em situação de rua.

Referências Bibliográficas

CANATO, P. Intersetorialidade e redes sociais: uma análise da implementação de projetos para população em situação de rua em São Paulo. Dissertação (Mestrado em Ciências pelo Programa de Pós-graduação em Gestão de Políticas Públicas) – Escola de Artes e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2017.

DE LUCCA, D. C. A Rua em Movimento: experiências urbanas e jogos sociais em torno da população de rua. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2007.

FRANGELLA, S. M. Corpos Urbanos Errantes: Uma Etnografia da Corporalidade de Moradores de Rua em São Paulo. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) –Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004.

KOHARA, L. A moradia é a base estruturante para a vida e a inclusão social da população em situação de rua. Tese (Pós-Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.

MELO, T. H. A. G. Política dos “Improváveis”. Percursos de engajamento militante no Movimento Nacional da População de Rua (MNPR). Tese (Doutorado em Antropologia) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2017.

ROSA, C. M. M. Vidas de Rua. São Paulo: Rede Rua/Hucitec, 2005.SALATINO, L. C. “Direitos sim, mas deveres também”: percepções da burocracia sobre a autonomia das pessoas em situação de rua. Dissertação (Mestrado em Administração Pública e Governo) – Escola de Administração de Empresas de São Paulo – Fundação Getulio Vargas (FGV), 2023.

Esta nota é de responsabilidade da respectiva autora e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais a autora está vinculada.

Laura Cavalcanti Salatino

Advogada, coordenadora da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama (FDUSP) e mestre em administração pública e governo (FGV).

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