Índice
Introdução
Promoção da transparência
O caso do robô Alice

Este é o quinto artigo da série “Corrupção: como avançar nessa agenda?”, que vem abordando como o Brasil tem progredido no combate à corrupção a partir do uso de inteligência artificial (IA). As análises são frutos das pesquisas realizadas recentemente pela autora, ao longo do mestrado em políticas públicas na London School of Economics and Political Science (LSE). A partir de estudos qualitativos, buscou-se ampliar a compreensão acerca do uso de IA no combate à corrupção, bem como reconhecer os esforços protagonizados por servidores públicos brasileiros na geração de significativo impacto e no avanço dessa agenda.

Leia o primeiro, segundo, terceiro e o quarto artigo desta série.

Neste artigo, a autora examina o promissor uso de inteligência artificial a partir da bem-sucedida implementação do robô Alice (Analisador de Licitações, Contratos e Editais) pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Quatro fatores merecem destaque e, nos próximos parágrafos, será analisada a importância de se promover a transparência de maneira mais abrangente.

Introdução

Na atual conjuntura de crescimento acelerado na geração de dados, as condições mostram-se propícias para o investimento em ferramentas tecnológicas a exemplo da inteligência artificial. Tecnologias como essa viabilizam análises de grandes volumes de dados, geração de informações oportunas, promoção de mais transparência, identificação de irregularidades, prevenção da má alocação de recursos públicos e maior participação e colaboração social no combate à corrupção (Schatsky et al, 2014; Davies et al., 2019). 

Nesse contexto, vem ganhando destaque nos debates acadêmicos a iniciativa inovadora da Controladoria-Geral da União (CGU) e do Tribunal de Contas da União (TCU) de utilizar o sistema Alice (Analisador de Licitações, Contratos e Editais). Trata-se de uma inteligência artificial que vem auxiliando os controladores e auditores no acompanhamento de licitações, que é a etapa do processo de contratação pública durante a qual ocorrem os maiores riscos de fraude e desfalque.

Portanto, é altamente relevante investigar os fatores que vêm contribuindo para o sucesso na implementação do sistema Alice na identificação de irregularidades, possibilitando ao Brasil avançar no uso de IA no combate à corrupção na área de compras públicas.

Promoção da transparência

A implementação bem-sucedida de uma política pressupõe uma relação direta entre causa e efeito, o que significa que a combinação adequada de insumos deve levar a um conjunto de resultados esperados (Hogwood & Gunn, 1997). No contexto de implementação de inteligência artificial ​​para combater a corrupção, o uso de grandes quantidades de dados abertos, combinados com outros recursos, deve permitir que um sistema anticorrupção baseado em IA apresente análises que detectem vestígios de irregularidades como principal resultado, e que tais análises sejam transparentes às partes interessadas no projeto.

Nesse sentido, é importante destacar que a transparência, conforme defendido por Fung (2013), ultrapassa o mero fornecimento de informações e engloba um conceito muito mais abrangente, contemplando não apenas a mesma disponibilização de informações, mas também considerando os princípios da acessibilidade e da acionabilidade. Dito de outra forma, os stakeholders envolvidos na implementação de IA, de maneira a proteger seus interesses, devem ter acesso às análises produzidas (disponibilidade), bem como ser capazes de realizar inferências a partir das informações acessadas (acessibilidade) e poder atuar para solucionar qualquer problema encontrado (acionabilidade).

À luz da implementação de ferramentas baseadas em IA, para que a corrupção seja efetivamente reprimida, a transparência das descobertas levantadas pela tecnologia ​​deve ir além da pura e simples disponibilização de informações para abranger igualmente os princípios de acessibilidade e acionabilidade. Em outras palavras, o mero acesso às análises disponibilizadas pela inteligência artificial constitui apenas o primeiro passo no combate à corrupção (ODC, 2018). Também é importante que os usuários dessas análises sejam capazes de dar sentido às informações (acessibilidade), sejam capacitados e estejam aptos para atuar na solução dos problemas encontrados (acionabilidade).

O caso do robô Alice

O Brasil tem se mostrado à frente na implementação de IA ​​para coibir a corrupção na área de compras públicas. Isso está intimamente associado aos esforços do Tribunal de Contas da União para criar mecanismos que promovam uma noção de transparência que vá além do levantamento de bandeiras vermelhas, superando a mera disponibilização de relatórios gerados pela tecnologia (disponibilidade).

No que diz respeito ao princípio de acessibilidade, o TCU adotou duas estratégias que facilitam a análise dos auditores. Primeiro, o Alice foi programado para enviar dois e-mails diariamente. Em um deles, são compartilhadas as principais informações dos editais de licitação publicados no dia, e, no outro e-mail, são apresentados os alertas identificados pela inteligência artificial (Sandes, 2016).

Paralelamente, cada auditor recebe apenas informações sobre irregularidades relacionadas aos processos pelos quais é responsável, permitindo-lhe acessar estritamente as informações necessárias para realizar análises mais assertivas, evitando que fiquem sobrecarregados com informações desnecessárias.

A segunda estratégia diz respeito à criação de um dashboard1, por meio do qual os auditores podem navegar pelas diferentes licitações, acessar a estrutura de cada processo para analisar as irregularidades identificadas, bem como aplicar filtros de modo a obter mais detalhes sobre um determinado processo licitatório.

Já no que tange o princípio da acionabilidade, é relevante mencionar que os auditores possuem a prerrogativa legal de conduzir investigações e tomar as medidas necessárias para solucionar irregularidades envolvendo gastos orçamentários e financeiros na esfera federal. No entanto, o uso do Alice trouxe algumas inovações na forma de trabalho dos auditores, o que levou o TCU a formalizar um novo fluxo de trabalho de modo a garantir que esses profissionais pudessem tomar as melhores ações a partir da identificação de indícios de corrupção apontados por essa tecnologia.

A partir dessa alteração no fluxo de trabalho, os auditores passaram a investigar diretamente os alertas indicados nos e-mails enviados automaticamente pelo sistema Alice, avaliando a documentação necessária para confirmar se o modelo previu corretamente casos de irregularidade (verdadeiros-positivos) e identificar ainda qualquer outro problema nos editais de licitação. Confirmada a existência de um problema, os auditores realizam contato com a entidade pública responsável pela sua correção, impondo a adoção das medidas necessárias à reparação das irregularidades em prazo determinado. Se o problema persiste, o TCU possui autonomia para adotar os procedimentos formais para resolvê-lo.

No próximo artigo desta série, será analisado o quarto fator que tem assumido um papel determinante para a implementação bem-sucedida do sistema Alice na luta contra a corrupção: o estabelecimento de arranjos institucionais favoráveis.

Referências
[1] Painel visual que concentra um conjunto de informações importantes para a gestão de uma empresa ou de um projeto, por exemplo, como dados, indicadores e métricas.

Bibliografia
DAVIES, T.; WALKER, S. B.; RUBINSTEIN, M.; PERINI, F. The State of Open Data: Histories and Horizons. IDRC – International Development Research Centre, 2019. Disponível em: <https://www.idrc.ca/en/book/state-open-data-histories-and-horizons>.
FUNG, A. Infotopia: Unleashing the Democratic Power of Transparency. 2013.HOGWOOD, B.; GUNN, L. Why ‘Perfect Implementation’ is Unattainable. In M. J. Hill (Ed.), The policy process: A reader. Prentice Hall/Harvester Wheatsheaf, v. 2, p. 217-225, 1997.
ODC. Open Up Guide: Using Open Data to Combat Corruption. 2018. Disponível em: <https://open-data-charter.gitbook.io/open-up-guide-using-open-data-to-combat-corruption/>.

Esta nota é de responsabilidade dos respectivos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais os autores estão vinculados.


Camila Penido Gomes

Graduada em administração pública pela Fundação João Pinheiro (FJP) e mestre em políticas públicas e administração pela London School of Economics and Political Science (LSE). Há 10 anos vem liderando projetos relacionados à transformação digital no serviço público brasileiro e atualmente atua como consultora na Divisão de Integridade do Setor Público da OCDE.

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