Por Maria Aparecida Chagas Ferreira

“Quando as mulheres negras se movem, toda a estrutura política e social se movimenta na sociedade.”
Angela Davis

Índice
Sub-representatividade e distorções

Sim, nós podemos ser gestoras públicas. Porém, há outras perguntas que devem ser feitas. Nós, mulheres negras, somos gestoras públicas? Já falamos nesse espaço sobre a importância do serviço público para a ascensão social e, para as mulheres negras, vai além de alcançar melhores condições de vida. Muitas de nós nos envolvemos na militância feminina e/ou racial e decorrente disso promovemos ações não apenas para nós mesmas como um coletivo, mas também para outros públicos.

Vamos ampliar a imagem. Dados do IBGE de 2019 [1] revelam que a maior parte da força de trabalho no Brasil é constituída de pessoas negras, elas representam 54,9%, o que significa 25% a mais do que a população não negra. Por outro lado, a população negra forma 64% da força de trabalho desocupada e 66% da subutilizada. Enquanto 35% das pessoas brancas ocupam informalmente o mercado de trabalho, esse percentual entre as pessoas negras é de 47%. Não podemos nos esquecer que trabalho informal é igual a trabalho precário sem proteção social, como garantia do salário mínimo e aposentadoria. A despeito das pessoas negras serem maioria como força de trabalho, essa proporção não se reflete em cargos gerenciais, os quais 69% são ocupados por pessoas brancas, enquanto 30% por negras. 

Nós, mulheres negras, somos 28% da população brasileira em idade ativa (acima de 14 anos). Somos maioria entre as trabalhadoras domésticas, 55%, e dessas, 61% trabalham sem carteira assinada. No mercado de trabalho estamos concentradas em posições frágeis, temos a maior taxa de desocupação, de subutilização e rendimento médio inferior. Somos maioria em postos de trabalho relacionados ao “cuidado”, que incluem funções domésticas, de saúde e de educação. O problema não é a natureza do trabalho, mas o estereótipo, a baixa remuneração e a valorização dessas posições. 

SUB-REPRESENTATIVIDADE E DISTORÇÕES

A interseção entre racismo e o machismo é o que caracteriza as relações sociorraciais no mercado de trabalho brasileiro [2]. Homens brancos se situam no topo, seguidos das mulheres brancas, dos homens negros e das mulheres negras. Essa hierarquia se reproduz também no serviço público. Nós, mulheres negras,  estamos sub-representadas na administração pública, assim como nos cargos de direção. Além disso, 65% das mulheres negras no serviço público estão no funcionalismo municipal, onde se concentram os rendimentos médios inferiores da administração pública. Ainda no município, 12% das prefeituras são comandadas por mulheres, dessas, 3% são negras. 

Na esfera federal, homens brancos são maioria e têm a maior renda, enquanto, nós, mulheres negras, somos 7% do funcionalismo [3]. Nos cargos de nível superior civil, as servidoras negras representam 11,7%. Estou destacando o nível superior, pois é um requisito básico para o exercício de função de direção no serviço público federal. Aqui é interessante observar que, dentre os cargos mais elevados, como ser diretora ou secretária nacional, dados de 2020 apontam que nós, mulheres negras, não passamos de 5%. 

A importância da área de gestão de pessoas debater a questão racial na administração pública não se deve apenas ao fato da ocupação desigual de cargos efetivos e de direção, vai muito além, a identificação de fatores que impactam a nossa atuação no contexto organizacional. Estudos realizados com mulheres negras em posição de gestão [4]evidenciam tendências nefastas [5] para a nossa autoestima, saúde mental e emocional. Quando estamos em cargos de direção, sofremos constrangimentos nas relações de trabalho, somos discriminadas e enfrentamos um jogo político que não tem equidade racial e de gênero. Mesmo as que têm um alto nível de instrução, com mestrado e doutorado, e experiências profissionais diversificadas, nada disso nos blinda. Não conseguimos desenvolver nossas carreiras como poderíamos e deveríamos. Somos relegadas a precariedades das condições de trabalho, espaços institucionais sem estrutura e concentradas em temas periféricos. Sofremos com desvio de função, apropriação da autoria de nossas ideias, excesso de trabalho, silenciamento e precisamos de elevada obstinação para sermos ouvidas. Distorções que geram descrédito e, consequentemente, o não reconhecimento da nossa competência para ocuparmos determinados postos de trabalho com poder de decisão e autoridade.   

Sabemos que pensar em estratégias para diversificar o estrato gerencial da administração pública por meio da inserção de pessoas negras, sobretudo de mulheres negras, não é uma política isolada a ser conduzida por uma singular unidade de gestão de pessoas, mas uma ação mais ampla do Estado brasileiro. Uma política de gestão de pessoas que abranja todas as dimensões da área, uma política de recursos humanos com inclusão e diversidade. Já temos experiências na administração pública de seleções intencionadas a achar a pessoa certa para o cargo gerencial certo, assim sendo, por que não incluir ações afirmativas nesse processo? 

A frase de Angela Davis que introduz este artigo, amplamente discutida na literatura especializada [6], provoca a seguinte reflexão: a mulher negra está na base da pirâmide social, vivenciamos descasos sistemáticos e temos buscado estratégias coletivas para o enfrentamento das desigualdades. Assim, qualquer mexida desestabiliza as estruturas consolidadas das relações desiguais de poder com um potencial de efeitos colaterais positivos a toda a sociedade. 

[1] IBGE. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. Estudos e Pesquisas-Informação Demográfica e Socioeconômica, v. 41, 2019.TEIXEIRA, Victor Epitácio Cravo. Entre máquinas administrativas e governos inteligentes. UnB, Brasília, 2020. Disponível em: <https://repositorio.unb.br/handle/10482/39235>.
[2]  FILETTI, J. P.; GORAYEB D. S.; MELO, M. F. Mulheres Negras no mercado de trabalho no 1º trimestre de 2021. In Facamp: Boletim NPEGen Mulheres Negras no Mercado de Trabalho. Campinas: Editora FACAMP, v. 2, n.1, junho de 2021.
[3]  Considerando apenas as mulheres negras ocupadas no setor público. Uma radiografia ampla se encontra na publicação “Perfil Racial do Serviço Civil Ativo do Executivo Federal” (1999-2020), do Ipea, elaborada por Tatiana Dias Silva e Felix Lopez.  A publicação analisa o perfil de servidores efetivos, permanentes, do Poder Executivo Federal.
[4] GODINHO, L.; SOUZA-SEIDL, R. (org.). Mulheres, negras e gestoras: porque sim! Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 2021.
[5]  CRUZ, T. M. Sankofa, políticas públicas e interseccionalidade: um estudo sobre Matilde Ribeiro, uma mulher negra na gestão da SEPPIR (2003 A 2008). Brasília, 2020.
[6]  DAVIS, A. A liberdade é uma luta constante. São Paulo: Boitempo Editorial, 2018.

Esta nota é de responsabilidade dos respectivos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais os autores estão vinculados.

Maria Aparecida Chagas Ferreira
Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental. Doutora em Sociologia e mestre em Educação. Foi secretária de Planejamento e Formulação de Políticas na Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Foi membro da Comissão de Acompanhamento de Políticas de Ações Afirmativas na pós-graduação da UnB, onde trabalhou na proposta aprovada de implementação das ações afirmativas na pós-graduação para estudantes negras e negros, indígenas e quilombolas. Na Administração Pública Federal, atua em processos de gestão estratégica e gestão interna.

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