Por Paulo Modesto

Índice
O silêncio administrativo: resposta preventiva à inatividade formal
Silêncio translativo: efeito processual e organizativo da inatividade formal
Silêncio ablativo: efeito processual radical da inatividade formal
A alquimia do silêncio administrativo

O processo administrativo é o locus por excelência da disciplina do tempo de emissão dos atos da Administração Pública. Não é apenas o itinerário, o mapa ou o roteiro para a sucessão de atos que antecedem a decisão final do poder público. É inconfundível com a simples marcha de atos, o singelo sequenciamento procedimental, pois o processo administrativo encerra a relação jurídica capaz de definir a situação do cidadão vítima de autoridades que se omitem de praticar qualquer ato.

A coordenação de interesses, informações, recursos e competências no âmbito da Administração Pública pressupõe a programação do tempo de tomada das decisões. Em situação-limite, para usar uma metáfora visual, envolve a definição normativa sobre como limpar a mesa dos administradores que dilatam em excesso o processo decisório na Administração Pública ou se ausentam de decidir.

Em alguns casos, a lei pode definir preclusões processuais ante o desrespeito de prazos estabelecidos; em outros, presumir uma decisão substitutiva material para a pretensão do cidadão ante a inertia deliberandi; pode também prever a transferência transitória e em concreto da atribuição para decidir determinada pretensão para outra autoridade administrativa em caso de omissão da autoridade normalmente competente ou, ainda, simplesmente eliminar a participação de determinada autoridade em ato originalmente complexo. Fórmulas variadas e cada vez mais criativas de tratamento da omissão decisória e de aceleração do processo administrativo são, hoje, contempladas na legislação brasileira.

Essa variedade pode ser empregada com maior frequência pelo legislador na disciplina de processos administrativos, inclusive em termos experimentais, mas para isso é importante atualizar a doutrina tradicional do silêncio administrativo, que se mostra insuficiente para explicar o atual estágio do direito brasileiro.

O silêncio administrativo: resposta preventiva à inatividade formal

Em trabalho anterior, sustentei que o silêncio administrativo é uma das respostas preventivas do sistema jurídico à inatividade formal da Administração Pública. Não se confunde com a inatividade administrativa tout court, nem é a única resposta do sistema jurídico para inibir, prevenir ou reduzir o prolongamento excessivo do processo administrativo [1].

O silêncio formal é tema clássico do direito administrativo, diretamente relacionado ao descumprimento pela Administração Pública do dever de decisão expressa aos requerimentos formulados por particulares, pessoas físicas ou jurídicas [2]. Porém, tema clássico não significa imune a transformações ou a novas abordagens.

Violado o prazo de decidir os requerimentos formulados, tem-se a inatividade formal como fato jurídico e cabe pleitear a condenação judicial da Administração à prática do ato administrativo devido. Não há, neste caso, silêncio em sentido próprio, mas simples incumprimento do dever de decisão e eventual responsabilidade da Administração por prejuízos e lesões efetivamente decorrentes da demora em decidir.

Segundo a doutrina convencional, sem norma jurídica que impute efeitos expressos, da omissão decisória administrativa não se pode deduzir qualquer declaração de direito. A omissão converte-se em silêncio administrativo apenas quando é prevista expressamente em norma, com enunciação também de efeitos ope legis, substitutivos da decisão ou declaração omitida pela Administração. Em termos sintéticos: silêncio administrativo é a omissão qualificada a que norma jurídica atribui efeitos substitutivos da decisão expressa da Administração Pública.

Não se trata de uma simples omissão, mas de omissão qualificada pelo incumprimento de um dever concreto de decidir e, por conseguinte, caracterizada objetivamente em norma como fato antijurídico e ensejador de precisos efeitos de direito. Onde há silêncio administrativo há omissão contra legem, porém também medida substitutiva atenuadora ou superadora do estado de indefinição decisória.

Na doutrina tradicional esses efeitos são de natureza jurídico-material: a lei pode estabelecer a ficção concessória ou a ficção denegatória do pleito apresentado pelo particular, em face da superação de prazos estabelecidos para a emissão da decisão administrativa. A ficção concessória é denominada silêncio positivo; a denegatória, silêncio negativo.

O silêncio negativo é usualmente denominado de indeferimento tácito, pois substitui o ato formal de indeferimento da pretensão do particular e sem resposta explícita da Administração Pública. Vale como uma recusa do pedido e abre a possibilidade de recurso para o interessado. O silêncio positivo é efeito material equivalente ao deferimento tácito da pretensão: substitui o deferimento do pedido. A rigor, em qualquer dessas situações não há ato administrativo algum, mas simples ficção legal com efeito substitutivo do ato expresso de deferimento ou indeferimento omitido. A omissão ingressa no suporte fático da norma legal como fato jurídico, não como ato jurídico em sentido estrito.

A regra usual no Brasil sempre foi o silêncio negativo; nos últimos anos, especialmente após o inciso IX do artigo 3º da Lei nº 13.874/2019 (“Lei da Liberdade Econômica”), o silêncio positivo ampliou o seu alcance como técnica de aceleração do processo administrativo.

O entendimento tradicional — claramente binário, silêncio positivo/silêncio negativo — não esgota os efeitos substitutivos possíveis da categoria silêncio administrativo. Há um número importante de situações em que o efeito substitutivo previsto na norma legal para a inatividade formal administrativa é exclusivamente de natureza processual e não importa na ficção do deferimento ou indeferimento material de pretensões. Destaco duas hipóteses: o silêncio translativo e o silêncio ablativo.

Silêncio translativo: efeito processual e organizativo da inatividade formal

Há matérias administrativas que não se compatibilizam com presunções legais absolutas (juris et de jure) ou relativas (juris tantum), pois exigem análise fática e contextual necessária. Não admitem, por isso, a técnica do silêncio positivo ou negativo na atividade administrativa. Isso pode ocorrer por diversas razões: complexidade da matéria, gravidade das repercussões na comunidade, irreversibilidade dos efeitos práticos, fragilidade, escassez ou relevância pública do bem jurídico, entre outros motivos.

Considere-se, por exemplo, o licenciamento ambiental. Não parece compatível com o sistema jurídico brasileiro, à luz do artigo 225 da Constituição, normas que presumam o deferimento tácito de licenciamento ou o indeferimento tácito pelo simples transcurso do tempo, sem que se apure concretamente o risco de dano, o dano inevitável, ou se previna dano ambiental evitável. Sem prévio estudo de impacto ambiental não se pode realizar a “instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente” (artigo 225, IV, CF). A Lei Complementar nº 140/2011 (artigo 14, §3º) recusa o efeito positivo e negativo ao decurso do prazo de licenciamento, sem emissão da licença ambiental.

Isso não significa que os empreendimentos empresariais devam ficar em estado de indefinição por longos anos, pois a própria postergação de investimentos ou a interrupção de obras pode colocar em risco interesses coletivos relevantes, inclusive ambientais. Por exemplo, atrasos no licenciamento ambiental de hidrelétricas podem significar a necessidade de utilização de usinas movidas a combustíveis fósseis, mais danosos ao meio ambiente. Não é razoável que, submetidos à ditadura do tempo, empreendedores fiquem reféns de segmentos específicos da estrutura pública, detentores de grande margem de apreciação discricionária. O prolongamento indefinido da decisão administrativa não se compatibiliza com o princípio da “razoável duração do processo” (CF, artigo 5º, LXXVII). Uma solução para esse impasse é a adoção da técnica que denomino silêncio translativo.

Silêncio translativo é a sub-rogação, por deslocamento transitório e concreto, previsto em lei, da competência decisória ou opinativa de um órgão para outro na organização administrativa, independentemente de presunção de deferimento ou indeferimento da pretensão do particular, em razão de inatividade formal e antijurídica da Administração Pública. Há também aqui efeito substitutivo, não do ato administrativo primário material, porém do órgão que deve emiti-lo.

Não se trata de delegação de simples exercício, ato voluntário por excelência, mas transferência por critério legal da competência de decidir determinado caso concreto de um órgão (normalmente o competente) para outro, por haver o primeiro deixado transcorrer in albis o prazo previsto para seu pronunciamento, embora o agente original preserve a competência para todos os demais casos em que observe os prazos previstos para a decisão [3]. O agente substituto exerce competência legal originária, porém eventual, acionada apenas ante a omissão ilícita da autoridade competente originária. Essa perda de poder em concreto, além das eventuais medidas de responsabilização funcional, constitui um incentivo ao cumprimento dos prazos previstos e, ao mesmo tempo — embora sem resolver a questão de fundo —, homenageia a segurança jurídica devida ao particular.

Por exemplo, a Lei nº 12.209/2011, Lei de Processo Administrativo da Bahia, prevê em seu artigo 55, o cabimento de recurso administrativo para suprir omissão ou recusa da autoridade em emitir decisão ou se manifestar acerca do requerimento apresentado. No §2º, desse dispositivo, a norma prevê que o recurso será dirigido à autoridade imediatamente superior, a qual poderá proferir a decisão ou adotar providências para suprir a omissão, sem prejuízo da apuração de responsabilidade. A norma legal, portanto, permite a supressão de instância, reconhecendo o silêncio translativo ao permitir que a autoridade superior decida a pretensão e não, simplesmente, determine o suprimento pela autoridade inferior da omissão. Exemplos variados de silêncio translativo podem ser colhidos também da aplicação dos artigos 15 e 14 da Lei Complementar nº 140/2011.

Silêncio ablativo: efeito processual radical da inatividade formal

silêncio ablativo quando, ante inertia deliberandi do administrador, a lei exclui a participação da autoridade omissa e de qualquer outro órgão da Administração Pública na decisão administrativa e substitui a intervenção faltosa por critério decisório geral e abstrato.

Exemplo interessante é a previsão constante do artigo 9º, § 4º, da Lei nº 8.625/93, Lei Orgânica Nacional do Ministério Público. Segundo a norma referida, “Caso o Chefe do Poder Executivo não efetive a nomeação do Procurador-Geral de Justiça, nos quinze dias que se seguirem ao recebimento da lista tríplice, será investido automaticamente no cargo o membro do Ministério Público mais votado, para exercício do mandato”. A norma foi declarada constitucional pelo STF (ADI 2611, relatora Rosa Weber, Tribunal Pleno, julgamento 7/12/2020, DJe-007, 15/1/2021, publicação 18/1/2021). Segundo a relatora, a norma atacada é legítima por “evitar o fenômeno de uma acefalia da instituição Ministério Público no âmbito estadual, sobretudo em respeito ao seu caráter permanente, à temporariedade do mandato correspondente a dois anos, permitida uma recondução, e à independência funcional” (p.10) e engendra solução “razoável e proporcional, pois decorre, única e exclusivamente, da inércia do Chefe do Poder Executivo” e assegura “equilíbrio interinstitucional” (p. 14).

A alquimia do silêncio administrativo

O manejo das fórmulas de silêncio positivo, negativo, translativo e ablativo pelo legislador pode constituir incentivo importante para melhorar a diligência de gestores públicos. Essas fórmulas ampliam a visibilidade da omissão administrativa ilegítima, reforçam a segurança jurídica dos particulares e penalizam gestores com a perda ocasional de poder decisório em razão da inércia ilegítima. Devem ser manejadas com cautela pelo legislador, pois interesses públicos relevantes podem exigir a análise detalhada da repercussão prática do deferimento ou indeferimento tácito de pretensões do particular. Nessa matéria, o uso das variadas técnicas do silêncio via legislação experimental, de emprego temporário ou para setores específicos, pode convir antes da generalização ou alteração abrange da disciplina do tempo administrativo para todo um conjunto de matérias ou competências públicas. Pode parecer surpreendente, mas o silêncio como técnica de superação (material e processual) da decisão ilegitimamente omitida pode ser empregado como capítulo relevante do direito administrativo da experimentação.


[1] MODESTO, Paulo. Silêncio Administrativo Positivo, Negativo e Translativo: a omissão estatal formal em tempos de crise. Revista Colunistas de Direito do Estado, 22/12/2016, nº 317, disponível em https://bit.ly/silencio-adm ou no livro Café com Prosa: crônicas de direito e reforma do estado. Rio de Janeiro: Ed. GZ, 2021, pp.230-241.
[2] O dever de decisão expressa, embora decorra implicitamente do próprio direito fundamental de petição e certidão previsto na Constituição (Artigo 5º, XXXIV, “a” e “b”, da CF), possui também consagração legal explícita, com destaque para o artigo 48 da Lei de Processo Administrativo da União (Lei 9784/1999). Na mesma lei, o Artigo 49 prescreve que “concluída a instrução de processo administrativo, a Administração tem o prazo de até trinta dias para decidir, salvo prorrogação por igual período expressamente motivada”. Logo, é de 60 dias o prazo para a decisão final de processos administrativos na União, após a conclusão da instrução, o que apenas não prevalece se houver procedimento especial previsto em lei com prazo distinto. Essa disposição tem sido reproduzida em leis estaduais de processo e, na ausência delas, recebido aplicação subsidiária da lei federal.
[3] Thiago Marrara, em artigo notável, acolhe o conceito de silêncio translativo, que batizei em trabalho de 2016, mas critica a ideia de ocorrer no silêncio translativo uma transferência concreta e eventual da competência, pois prefere a noção de transferência do exercício pontual do direito de decidir. No presente artigo, respondo a Marrara que a transferência é da competência concreta e não do exercício pontual, por decorrer diretamente de previsão abstrata da lei (competência originária eventual) e não de deliberação voluntária do gestor (delegação ou avocação). O PL nº 129/2017, de iniciativa do senador Antonio Anastasia, aprovado no Senado, adota o mesmo entendimento que sustentei em 2016 e regula na espécie a “transferência da competência para a decisão do processo” e não apenas a transferência do exercício (https://bit.ly/pl5473). Cf. MARRARA, Thiago. Administração que cala consente? Dever de decidir, silêncio administrativo e aprovação tácita. Revista Digital De Direito Administrativo, 8(1), p.29. https://doi.org/10.11606/issn.2319-0558.v8i1p19-49

Esta nota é de responsabilidade dos respectivos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais os autores estão vinculados.

Paulo Modesto
Professor da Faculdade de Direito da UFBA, presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público e membro do Ministério Público da Bahia e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia.

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