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Falta de estrutura para o atendimento
Categorizações e estereótipos de gênero

Imagine uma adolescente de 17 anos: ela se chama Letícia, mora em um bairro do Jardim Ângela (São Paulo/SP). Letícia acabou de começar um namoro com Jeferson, seu colega de sala, e tem várias dúvidas sobre como cuidar da sua saúde sexual e reprodutiva: qual o melhor método para evitar gravidez? Como ter relações prazerosas e seguras? A quem recorrer caso tenha algum problema? Ela poderá ter contato com diferentes abordagens sobre essas questões nas mais diversas esferas de sua vida – em casa, na escola, na igreja, na internet, seja com pessoas da mesma idade, gênero e raça ou não. No âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), Letícia será alvo de algumas políticas que visam garantir seus direitos sexuais e reprodutivos, como a Política Nacional de Planejamento Familiar, o Programa Nacional de HIV/Aids, o programa Nacional de Humanização do Parto, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, entre outras.

Muitos desses programas são implementados na atenção básica ou atenção primária em saúde. Diferentemente da atenção “secundária” e “terciária”, que têm caráter mais emergencial e/ou de alta complexidade, a atenção básica é o nível de atenção do SUS que se encarrega do atendimento ambulatorial e orientado para prevenção e promoção de saúde. São exemplos a prevenção a problemas cardiovasculares, hipertensão, diabetes e doenças de pequena complexidade em geral.  A principal organização que implementa a atenção básica é a Unidade Básica de Saúde, chamada por muitos de UBS ou “o postinho” do bairro. O carro-chefe da atenção básica é a Estratégia de Saúde da Família, famosa por ter os agentes comunitários de saúde, que vão de porta em porta fazer prevenção e verificar as necessidades da população dentro de seus domicílios.

Em termos de saúde sexual e reprodutiva, a atenção básica foca principalmente em prevenção de infecções sexualmente transmissíveis, anticoncepção e acompanhamento pré-natal, além de algumas ações preventivas nos guarda-chuvas de “saúde da mulher” e “saúde do homem”, como a prevenção a cânceres de mama, útero e pênis. Concretamente, trata-se de consultas de pré-natal, visitas domiciliares que tratam de opções para contracepção, realização de grupos de prevenção, como grupos de jovens para o combate a Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), grupos de gestantes, grupos de planejamento familiar, testes rápidos de gravidez e de ISTs, entre outros.

A condução desses atendimentos e práticas exemplifica o que foi apresentado nos outros textos, considerando as burocratas de nível de rua; médicas, enfermeiras, técnicas de enfermagem e agentes comunitárias de saúde materializam, para os cidadãos, a ação do Estado de promover uma política universal de saúde, pautada em prevenção, promoção e acompanhamento integral e que, ao mesmo tempo, garanta adequação individual em matéria de direitos reprodutivos. Embora existam orientações formais, nas leis e protocolos de atendimento, há também bastante espaço para iniciativa e criatividade dos burocratas de nível de rua usar discricionariedade para lidar com questões relativas ao tema.

Como discutido, a (re)produção de desigualdades na implementação pode acontecer tanto pelas condições materiais e escassez de recursos, como pelos repertórios morais que informam as trabalhadoras da linha de frente, muitas vezes em detrimento de uma perspectiva de direitos. Em pesquisa de mestrado (Implementação e desigualdades na atenção à saúde reprodutiva – Juliana Rocha Miranda), foram mapeados alguns exemplos nos dois sentidos e que gostaríamos de abordar neste texto, para exemplificar as discussões que tivemos nos textos anteriores.

FALTA DE ESTRUTURA PARA O ATENDIMENTO

No primeiro aspecto, podemos pensar no tempo que sobra para as consultas, que pode chegar a apenas 15 minutos em algumas unidades. Considerando um atendimento integral em saúde, seria esse tempo o suficiente para orientar todos os métodos contraceptivos e incentivar a escolha livre e esclarecida da paciente? O quanto se consegue preparar uma gestante para o parto – conversando sobre seus direitos nesse momento crítico – junto com outras atividades requeridas em uma consulta pré-natal (medir barriga, pesar a gestante, auscultar os batimentos do feto)?

Além disso, em algumas unidades, podem faltar materiais necessários para os atendimentos ou a medicação recomendada. Isso depende de fatores mais estruturais da política pública, como o orçamento para a saúde no município ou, em caso de convênio, do trabalho feito pela organização que gere o serviço. Na pesquisa, foram levantados relatos de balanças e sonares quebrados, assim como falta de suplementos vitamínicos, recomendados a algumas gestantes, e de insumos para contracepção, como a injeção trimestral, DIU, ou de profissionais capacitados para inserção desse dispositivo.

Questões desse tipo são sensíveis, muitas vezes, porque não dependem exclusivamente do gestor direto. Contudo, alertamos para a importância de que ele esteja atento à burocracia implementadora da política. Em cenários de restrição de recursos, combinados com alta demanda, profissionais da linha de frente relatam frustração com o trabalho e dificuldade de se motivar. Essas profissionais (em sua grande maioria mulheres na área de saúde) se sentem de “mãos atadas” diante das demandas que lhes chegam e impotentes para fazer aquilo que foram preparadas para fazer. É papel do gestor escutá-las em suas necessidades e levá-las, na medida de suas possibilidades, para os responsáveis pelo atendimento. Quando não for possível, é importante que o gestor comunique seus esforços e mostre que se importa com a equipe. Pesquisas mostram que, ao se sentirem ouvidos, acolhidos e valorizados por seus superiores hierárquicos, burocratas de nível de rua demonstram mais resiliência e empenho em suas atividades cotidianas.

CATEGORIZAÇÕES E ESTEREÓTIPOS DE GÊNERO

A outra dimensão da (re)produção de desigualdades são os mencionados processos de categorização operados por burocratas de nível de rua. A grande preocupação que deve ocupar a gestão é que os estereótipos passivos sejam ativados, ou seja, que sejam convertidos em ação discricionária que implique produção ou reprodução de desigualdades.  No caso da saúde sexual e reprodutiva, alertamos para os estereótipos de gênero, que podem servir como barreiras de acesso aos serviços, acarretar violações de direitos ou, ainda, marcar simbolicamente as pessoas que usam essa política pública.

Os estereótipos podem girar em torno dos comportamentos das pessoas, de sua composição familiar e posição social, incluindo, nesse caso, marcadores sociais como raça, gênero e idade. Na pesquisa Implementação e desigualdades na atenção à saúde reprodutiva, há exemplos de condenação às adolescentes que frequentam o baile funk, às “mães solteiras” e às mulheres que têm muito filhos apesar da pobreza. Essas são imagens que hierarquizam as pacientes entre “boas” e “más”, “normais” e “anormais”, sempre com base em expectativas sociais de gênero: a adolescente normal não vai a festas e não tem vida sexual ativa, a boa mãe não troca de parceria nem decide ter muitos filhos se não for rica.

Um exemplo que vem do grupo de planejamento familiar pode ilustrar como essa categorização ocorre. Entre as profissionais entrevistadas, foram muito recorrentes os julgamentos sobre as pacientes “não aderentes”, que queriam fazer a esterilização cirúrgica (laqueadura), mas não cumpriam os requisitos até então vigentes. Eram mulheres que não voltavam às reuniões do grupo de planejamento familiar, não levavam o termo de consentimento assinado, não explicavam por qual motivo tinham desistido do método. Essas pacientes acabavam sendo encaradas como menos merecedoras de atenção e de cuidados, porque não se empenhavam para cumprir os requisitos, mesmo que “precisassem” muito – e, nesse caso, precisar tinha a ver com a avaliação das profissionais sobre elas serem ou não boas mães.

O exemplo traz à tona diversas camadas do que discutimos até aqui. Em primeiro lugar, as profissionais se atentam muito pouco ao fato de que há poucos homens buscando os grupos para planejar a reprodução. É como se a obrigação recaísse exclusivamente sobre as mulheres, que, além disso, são cobradas pela falta de adesão ao serviço, que deveriam ter em função de preencherem ou não os ideais de normalidade estipulados para mulheres e mães.

Considerando os compromissos constitucionais e internacionais assumidos pelo Brasil, para igualdade entre os gêneros e  garantia de direitos sexuais e reprodutivos, é de se esperar que as políticas de saúde voltadas a esses direitos combatam disparidades e injustiças nesse sentido. Ao mesmo tempo, burocratas de nível de rua são agentes situadas em estruturas sociais extremamente desiguais, inclusive no que diz respeito a gênero, raça e classe. Burocratas de nível de rua precisam ser sensibilizadas sobre as dinâmicas dessas desigualdades, como isso afeta as mulheres nos territórios onde a atenção básica é implementada e que, em alguns casos, como de agentes comunitárias e técnicas de enfermagem, é também onde elas próprias moram.

No exemplo que contamos, seria preciso combater a ideia de que algumas mulheres devem ser mães, enquanto outras não devem, em razão de seu comportamento e número de filhos. O direito à escolha sobre o próprio corpo é central no reconhecimento da autonomia da mulher sobre reprodução. Mulheres não devem ser pressionadas pelas profissionais a optar por um método, e sim apresentadas às múltiplas possibilidades para contracepção que o SUS oferece, caso desejem não ter filhos. Seria importante também desconstruir a responsabilização de que mulheres se ocupem exclusivamente da contracepção, aumentando o convite de homens aos grupos e a atividades preventivas. Ainda, seria importante estimular a compreensão às possíveis desigualdades enfrentadas no âmbito intrafamiliar, inclusive sobre possíveis interferências dos parceiros e de outros atores em suas escolhas.

Capacitar as trabalhadoras e trabalhadores da linha de frente da atenção básica para as questões de gênero e direitos reprodutivos é um caminho central para que adolescentes como Letícia, nosso caso fictício da introdução, possam garantir sua saúde sexual e reprodutiva com segurança e plenitude de direitos.

Esta nota é de responsabilidade dos respectivos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais os autores estão vinculados.

Juliana Rocha Miranda

Mestre em Administração Pública e Governo pela FGV, pesquisadora júnior do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) e do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB).

Gabriela Lotta

Professora de Administração Pública da FGV, professora visitante de Oxford, pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole e do Brazil.Lab da Universidade de Princeton. Doutora em Ciência Política

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