Por Renata Anício Bernardo e Fernando Resende Anelli

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Situações extremas: ética, lei e compaixão

O dia 25 de janeiro de 2019 começou como outro qualquer na cidade de Brumadinho (MG). As pessoas saíam para o trabalho, as crianças voltavam da escola, os ônibus circulavam e o sol quente do meio-dia de uma sexta-feira indicava que já era hora de almoçar. Mas às 12h28, o rompimento das barragens da Mina Córrego do Feijão, da Vale S.A., interrompeu 272 vidas e causou profundos danos socioambientais e socioeconômicos. 

Com o rompimento, foram despejados no Rio Paraopeba 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos, afetando diversos municípios ao longo de sua extensão. O prédio administrativo e o refeitório da Vale foram completamente soterrados em pleno horário de almoço. Uma pousada inteira foi arrastada e diversas casas foram atingidas. Neste cenário, teve início a maior operação de buscas e salvamento do país, que já dura cerca de 1.200 dias e está em sua oitava fase.

Os primeiros representantes do poder público a chegarem ao local do rompimento foram os bombeiros militares. Às 12h38, 10 minutos após o rompimento, foi registrada a primeira ocorrência no Centro de Operações de Bombeiros (Cobom). Às 12h40 a primeira aeronave já se deslocava em direção a Brumadinho. 

SITUAÇÕES EXTREMAS: ÉTICA, LEI E COMPAIXÃO

Todo processo decisório implica, necessariamente, em uma ruptura. Define-se aquilo que será perdido e o que será preservado, com resultados que só serão conhecidos plenamente em um momento futuro. Portanto, em situações extremas – em que inexistem protocolos, previsões administrativas ou jurídicas -, faz-se necessário que o servidor público recorra a princípios, regras e normas fundamentais que se relacionem ao direito público, à ética e à lei, bem como à missão institucional e a um conjunto de valores para delimitar a discricionariedade e nortear a tomada de decisão.

Em muitos casos, a discricionariedade dos servidores é importante e desejável para o bom desempenho das funções de linha de frente, que necessariamente envolvem situações imprevistas. Como afirma Lipsky (2010, p. 15, tradução nossa apud CAVALCANTI, LOTTA e PIRES, 2018, p. 230), “até certo ponto, a sociedade busca não apenas imparcialidade de seus órgãos públicos, mas também compaixão para circunstâncias especiais e flexibilidade para lidar com elas”. Portanto, por mais que a atuação dos servidores seja programada e delimitada por normas, regras e hierarquias, casos como a Operação Brumadinho demandam alto grau de adaptação e responsividade em sua atuação.

Conforme demonstram os relatos da operação, cada ação realizada partiu de uma decisão em relação à alocação de recursos, um processo de categorização e uma decisão pelo atendimento. Por exemplo, a major Karla e sua equipe, que ocupavam o primeiro helicóptero que chegou a Brumadinho, antes de se dirigir ao epicentro do desastre concluíram que era necessário liberar espaço na aeronave para resgatar possíveis sobreviventes, portanto, retiraram os bancos da aeronave e deixaram o copiloto, o médico e o enfermeiro em uma área próxima à lama aguardando o retorno. O tenente Felipe Rocha se deslocava para Brumadinho por terra e, ainda no caminho, vestiu a roupa de tecido neoprene – apropriada para atividades subaquáticas – numa clara decisão antecipada de adentrar num mar de lama de proporções completamente desconhecidas. O major Rafael Cosendey, ao avistar cerca de 100 sobreviventes em uma estrada, decidiu ser deixado ali por um helicóptero, levando apenas uma mochila com equipamentos básicos de sobrevivência e o rádio, sem informações sobre a área em que pisava, as possíveis estratégias de evacuação e os riscos de novos soterramentos. 

Decisões alocativas também ficaram evidenciadas na atuação dos servidores do Instituto Médico Legal (IML) da Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG), que começaram as atividades de identificação no mesmo dia do rompimento e até hoje atuam de forma contígua à operação de buscas. Logo que tiveram as primeiras notícias do rompimento, diversos servidores que estavam de plantão, de folga e, até mesmo, aposentados se apresentaram voluntariamente para apoiar nas ações emergenciais. Ainda não se tinha qualquer informação precisa sobre o número de vítimas, mas as notícias fornecidas pelo Corpo de Bombeiros Militar de Minas Gerais (CBMMG), apesar de incipientes naquele momento inicial de incertezas, não deixavam dúvidas sobre a dimensão do desastre. 

Ao receberem os primeiros “casos” – nomenclatura adotada pelo IML para se referir aos corpos e segmentos de forma respeitosa nesse contexto específico – e diante de limitações de recursos (espaço físico, pessoal e equipamentos) os servidores tomaram diversas outras decisões para adaptar sua ação ao caso concreto. Um exemplo foi a reserva do espaço do necrotério exclusivamente para as vítimas do rompimento, transferindo as necropsias de outros casos para o IML de Betim. Esta decisão gerou consequências, como: necessidade de deslocamento dos familiares de usuários do IML de Belo Horizonte para Betim; redirecionamento de cidadãos para outros serviços cartoriais de assento e registro de óbito; entre outras.

A grande quantidade de minério de ferro impregnada nos corpos, que chegou a causar o entupimento da rede de esgoto do prédio e tingiu as paredes de terra avermelhada, demandou diversas adaptações nos procedimentos usuais relativos à forma e ao local de limpeza. Tendo em vista o estado dos primeiros corpos que chegaram, ainda que em alguma medida fosse possível a identificação visual como método de identificação secundária (“triagem”), o chefe da Tanatologia Forense, Dr. Ricardo Araújo, definiu que o processo de identificação seria feito cientificamente pelo IML, sem a participação dos familiares no reconhecimento, como forma de preservá-los diante de um cenário tão desolador. Com esse mesmo objetivo, o atendimento aos familiares foi transferido para outro prédio da Polícia Civil – vizinho ao IML-BH, mas visualmente distante das atividades periciais e chegada de corpos e segmentos. 

Assim como no caso dos servidores do IML, os bombeiros militares adotaram estratégias para dialogar com famílias em luto e com a imprensa, construindo formas de interlocução transparentes, diretas e, ao mesmo tempo, humanizadas e sensíveis ao momento de dor profunda vivenciada pelos familiares daqueles que já haviam sido encontrados e identificados, e de desespero e ansiedade daqueles que ainda buscavam notícias. A comunicação inicial, que visou lidar com uma situação emergencial de crise, aos poucos foi dando espaço a uma interlocução cotidiana. A partir da demanda dos familiares por acesso às informações de maneira mais frequente, foram construídos espaços formais de interlocução institucional, envolvendo o agendamento de reuniões periódicas do CBMMG e do IML com seus representantes. Ao longo desse processo, foram construídos laços de afeto e de relações de acolhimento e confiança, com contatos individualizados e perenes.

Conforme fica evidenciado no caso relatado, ainda que a atuação dos servidores em questão seja altamente regulamentada, dentro do espaço de ação dos chamados “burocratas de nível de rua”, o exercício da discricionariedade e a liberdade para tomada de decisão foram fundamentais para o melhor atendimento ao interesse público. Além da responsabilidade em relação à missão institucional, esses servidores trabalharam de forma humana, adaptada e respeitosa ao contexto mais amplo. 

Diante de um caso tão extremo, a burocracia de nível de rua se propôs voluntariamente a construir novos fluxos, procedimentos e formas de atendimento ao público, bem como alocou recursos escassos para garantir esse atendimento – incluindo, nesse rol, a atuação voluntária de diversos profissionais que, comprometidos e sensibilizados, trabalharam dias e noites adentro, muito além da carga horária prevista, para atender às demandas existentes. 

Mesmo não sendo o foco deste relato – que aborda ações situadas em um momento imediatamente após o rompimento -, faz-se importante ressaltar que muitas outras adaptações, inovações e construções foram desenvolvidas ao longo do tempo, a partir das vivências e da discricionariedade, pelos servidores públicos envolvidos na Operação Brumadinho e no processo de reparação.

Por fim, é importante apontar que, graças à atuação heroica de tantos servidores do Corpo de Bombeiros Militar de Minas Gerais e do trabalho incansável do Instituto Médico Legal de Minas Gerais, a operação de busca e identificação tem atendido seu propósito, que atualmente é de localização de todas as vítimas do rompimento. Até o momento ainda há quatro jóias (que é como os familiares e profissionais envolvidos no processo se referem às vítimas) não localizadas e permanece o compromisso público do Governo do Estado de Minas Gerais em manter a operação até que todas as famílias possam vivenciar o rito do luto. 

Referências
ARBEX, Daniela. Arrastados: os bastidores do rompimento da barragem de brumadinho, o maior desastre humanitário do Brasil. Belo Horizonte: Intrínseca, p.372, 2022.

CAVALCANTI, Sérgio; LOTTA, Gabriela S.; PIRES, Roberto Rocha C. Contribuições dos estudos sobre burocracia de nível de rua. In: PIRES, Roberto Rocha C.; LOTTA, Gabriela S.; OLIVEIRA, Vanessa Elias de (org.). Burocracia e políticas públicas no Brasil: interseções analíticas. Brasília: Ipea, p. 227-246, 2018. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/8606/1/Contribui%C3%A7%C3%B5es%20dos%20estudos.pdf. Acesso em: 01 jun. 2022.

LIPSKY, M. Street-level bureaucracy: dilemmas of the individual in public service. 30th anniversary expanded edition. New York: Russell Sage Foundation, 2010.

LOTTA, Gabriela. Desvendando a Linha de Frente dos Serviços Públicos. República em Notas, 2022. Disponível em: https://republica.org/emnotas/conteudo/desvendando-a-linha-de-frente-dos-servicos-publicos/. Acesso em: 01 jun. 2022.

Esta nota é de responsabilidade dos respectivos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais os autores estão vinculados.

Renata Anício Bernardo
Mestre em Políticas Públicas e Administração pela London School of Economics (2009), graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (2007) e em Administração Pública pela Fundação João Pinheiro (2005). Desde 2005 integra a carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do Estado de Minas Gerais. Há dois anos atua como Coordenadora Adjunta do Comitê Gestor Pró-Brumadinho, vinculado à Secretaria de Planejamento e Gestão, para coordenar e supervisionar o planejamento e a implementação do Acordo Judicial de Reparação do desastre de Brumadinho.

Fernando Resende Anelli
Especialista em Poder Legislativo e Políticas Públicas pela Escola do Legislativo – ALMG (2021) e graduado em Administração Pública pela Fundação João Pinheiro (2018). Desde 2020 integra a carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do Estado de Minas Gerais. Há um ano atua como Coordenador do Núcleo de Articulação Social do Comitê Gestor Pró-Brumadinho, vinculado à Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão.

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