Por Maria Aparecida Chagas Ferreira

“Se as pernas não andam, é preciso ter asas para voar.”
Conceição Evaristo

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Força de trabalho: avaliação e planejamento 

As unidades de gestão de pessoas em uma organização, quer seja pública ou privada, são responsáveis por fazer funcionar o tema Planejamento da Força de Trabalho, que é um processo intrínseco às suas entregas organizacionais. Selecionar as pessoas certas, na quantidade certa, capacitá-las, lotá-las nos espaços adequados, conforme as suas capacidades e o que previa o processo de seleção. Essas ações são o mínimo que pode ser feito pela Gestão de Pessoas.  Enquanto Planejamento da Força de Trabalho é uma leitura mais ampla, geral da gestão de pessoas, o dimensionamento da força de trabalho é restrito, é uma fase desse planejamento. 

Dimensionar uma força de trabalho significa analisar qual seria a quantidade ideal de pessoas a serem distribuídas, redistribuídas ou removidas para desenvolver atividades e entregas dos processos institucionais. O planejamento permeia a organização para o melhor aproveitamento dos talentos de cada pessoa que a constitui, de forma a alcançar o equilíbrio entre atender a necessidade da força de trabalho, o planejamento estratégico da instituição e a missão institucional.

A intenção deste artigo não é discutir aspectos metodológicos enfatizando modelos matemáticos de alta complexidade [1], mas trazer algumas reflexões sobre a incorporação da variável perfil racial para o dimensionamento e o consequente planejamento da força de trabalho organizacional. Ainda que haja estudos complexos para o dimensionamento, o que me guia nestes escritos é um trabalho que eu realizei juntamente com mais duas colegas da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, Aleksandra Santos[2] e Ana Cláudia Medeiros.  Apesar do nome “método simplificado de dimensionamento da força de trabalho”[3], após um distanciamento temporal que me dá uma melhor leitura sobre o objeto do estudo, considero que o método proposto tem sua complexidade na medida em que prevê um conjunto de variáveis quantitativas tendo como base a realidade organizacional. E é isto que considero original nesse trabalho, a intenção de não ser algo pronto e acabado, de implantação imediata. Em outras palavras, de modo algum o estudo teve o propósito de desenvolver um método padrão a ser aplicado a toda e qualquer organização, ignorando as suas especificidades e nível de maturidade. Pelo contrário, parte-se do princípio que é a organização, na sua singularidade, que possui mecanismos próprios para a construção de um método. Em vista disso, considerar o “perfil racial da organização” é uma variável possível de ser incorporada ao modelo de dimensionamento, pois essa é uma característica presente em qualquer organização, resta saber em qual proporção. 

Força de trabalho: avaliação e planejamento 

  O dimensionamento da força de trabalho no setor público procura aferir se há muitos ou poucos servidores na Administração Pública, muito ou poucos em qual unidade, muito ou poucos para qual macroprocesso. E quando se trata do perfil racial da organização, talvez, com a Lei de Cotas no Serviço Público pode se supor que haja uma estimativa adequada sobre a quantidade de pessoas negras atuando na Administração Pública. Difícil saber sem uma análise que leve em consideração alguns aspectos; primeiro, o porquê do percentual de 20% determinado pela lei; se as organizações estão alcançando esse percentual de pessoas negras em sua força de trabalho; e finalmente, como elas estão distribuídas ao longo da cadeia vertical e horizontal da instituição.

Estudos apontam que o percentual de 20% está longe de ser atingido pelas organizações que promovem concursos públicos[4]. Isso num cenário onde já se tem 135 normas, entre leis, decretos, portarias e atos, que estabelecem cotas no serviço público, nos níveis nacional, federal, estadual, distrital e municipal[5]. Em tal caso, para qualquer análise do perfil racial da organização se avalia o seu estoque e fluxo, ou seja, quantas pessoas negras trabalham na organização antes e após um determinado processo seletivo. Aqui é bom ressaltar uma questão conceitual, estou falando sobre força de trabalho, uma denominação que abrange cargos, funções com e sem vínculo na instituição; a pessoa concursada[6], comissionada[7], contratada temporariamente[8], estagiários[9], terceirizados[10] e consultores externos[11]

No artigo de referência, de minha autoria e das minhas colegas de carreira, são apresentados onze critérios mensuráveis ajustados para o dimensionamento da força de trabalho. São eles: (i) Quantitativo de Servidores sem Vínculo; (ii) Quantitativo de Servidores com Vínculo; (iii) Quantidade de Cargos em Comissão de Direção; (iv) Quantidade de Funcionários Terceirizados; (v) Orçamento Anual; (vi) Convênios Vigentes ou Instrumentos Correlatos; (vii) Convênios Aguardando Análise de Prestação de Contas ou Instrumentos Correlatos; (viii) Contratos Administrativos Vigentes; (ix) Projetos Prioritários em Execução; (x) Monitoramento e Suporte a Projetos Prioritários; (xi) Gestão Documental. A partir desses critérios, foi constituída uma matriz de inter-relacionamento entre variáveis de desempenho institucional para analisar o impacto de cada um desses critérios na quantidade de servidores a serem lotados em uma instituição. Ademais, se o propósito de toda a metodologia que perpassa os processos de planejamento da força de trabalho é o alcance de uma racionalidade para a entrada e a mobilidade na Administração Pública, como uma tentativa de diminuir o favoritismo político ou pessoal, essa metodologia poderia ser estendida à política de cotas no serviço público ao incluir o perfil racial como uma variável nessa matriz.

De mais a mais, se a organização não tiver conhecimento da composição da sua força de trabalho para o dimensionamento, deve dar um passo atrás. Existe um estudo de Aparecida Bento que discute o conceito de discriminação institucional[12], em que pouco importa a intenção do agente, mas sim os efeitos de sua ação. E isso pode ser visto no número de negros e mulheres nos postos de trabalho em uma organização. Ela aponta que, na seleção de pessoal, é utilizado um conjunto de regras informais que, muitas vezes, sem refletir e nem sempre com a intenção de discriminar, acabam reforçando a situação de desigualdade sócio-racial existente no Brasil. Já é bem conhecida a Pesquisa sobre Diversidade e Inclusão realizada pelo Instituto Ethos[13] e voltada para empresas. Uma iniciativa que visa avaliar empresas que atuam em prol da equidade racial, geracional e de gênero, da inclusão da pessoa com deficiência e da promoção dos direitos LGBTQIA+. Na Administração Pública, muito recentemente, o Conselho Nacional da Justiça[14] realizou uma pesquisa sobre o perfil sociodemográfico da magistratura brasileira nas instâncias da justiça federal, do trabalho e estadual. Logo, são exemplos que poderiam ser aplicados às organizações públicas para dar um mapa da situação da força de trabalho. 

Há grande dificuldade em se obter dados demográficos das pessoas que trabalham na Administração Pública após o ato de posse ou o processo de contratação, ou seja, há uma maior dificuldade em trabalhar o estoque de pessoas, mesmo a despeito de estar todo mundo no cadastro de pessoal. Quer seja por que não há motivação intrínseca para a atualização de dados pessoais e, em especial, cor e/ou raça; quer seja por que não há uma ação institucional direcionada a suprir essa lacuna. Dados de fevereiro de 2022 do Painel Estatístico de Pessoal indicam que, no quesito “Raça/cor” do Sistema Integrado de Administração de Pessoal (Siape), a categoria “não informado” consta com 22%. É o terceiro percentual mais alto, atrás da categoria “branco” e “pardo”. É bom esclarecer que é obrigatório o preenchimento do quesito “Raça/cor” no sistema, o que significa que a pessoa não irá conseguir concluir o processo de atualização cadastral sem informar esse dado, entretanto, a opção “não informado” é validada pelo sistema[15].

 Talvez, consciente disso, a organização poderia primar pela coleta baseada numa campanha de conscientização sobre a importância da atualização dos dados pessoais. Um esforço institucional a ser realizado tanto na primeira entrada como para a força de trabalho já presente nos quadros organizacionais. São ações possíveis para o órgão público: estimular a atualização dos dados nos sistemas de gestão de pessoas enfatizando a identificação de cor/raça, ou aplicar instrumentos de pesquisa próprios, se for este o caminho para avançar na radiografia do perfil da força de trabalho. 

Esse conhecimento é fundamental para construir o planejamento da força de trabalho, fazer o dimensionamento e aprimorar práticas de gestão de pessoas, voltando a organização a uma política mais ampla de inclusão, considerando o que os dados possam revelar. Nesse aspecto se insere o alcance, dentro da organização, da política de ações afirmativas via cotas nos concursos públicos, identificando os seus gargalos para dotar a instituição de estratégias de enfrentamento, ou tornar evidente as suas fortalezas com vistas a referenciá-las a outras organizações públicas. 

[1] Há um extenso trabalho sobre dimensionamento da força de trabalho contratado pelo Ministério da Economia junto à Universidade de Brasília. O estudo é composto de cinco volumes, com o objetivo de constituir um referencial de gestão de dimensionamento da força de trabalho, e o Ministério enfatiza que é um trabalho com métodos matemáticos e estatísticos robustos. Acesse em: https://www.gov.br/servidor/pt-br/acesso-a-informacao/gestao-de-pessoas/dimensionamento-da-forca-de-trabalho-1
[2] Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) é uma carreira do Governo Federal, supervisionada pelo Ministério da Economia. A carreira de EPPGG tem como atribuição a “execução de atividades de formulação, implementação e avaliação de políticas públicas, bem assim de direção e assessoramento em escalões superiores da Administração Direta e Autárquica” ( Lei nº 7.834/1989).
[3] Um Método Simplificado para Dimensionamento da Força de Trabalho na Administração Pública Federal. 2016. (Apresentação de Trabalho/Congresso) de Aleksandra Pereira dos Santos; Ana Cláudia Alves de Medeiros; Maria Aparecida Chagas Ferreira.
[4] Síntese de Evidências da Avaliação da Lei nº 12.990/2014 e do Levantamento de Dados Sobre a Lei nº 12.711/2012, Enap, 2021; e Boletim de Análise Político-Institucional: Implementação de ações afirmativas para negros e negras no serviço público: desafios e perspectivas, Ipea, 2021.
[5] Veja o mapa de distribuição dessas normas em Ações afirmativas e burocracia pública: vinte anos de legislação por Rebecca Lemos Igreja, Gianmarco Loures Ferreira, Nathálya Oliveira Ananias, Rafael M. S. de Oliveira, Iyaromi Feitosa Ahualli. 1ª ed. — Brasília, DF : Flacso, Cadernos de pesquisa , 2021.
[6] Concursada é a pessoa que, para nomeação em cargo de carreira ou cargo isolado efetivo, deve realizar um concurso público de provas ou de provas e títulos (art. 10 da Lei nº8.112/1990).
[7] Cargo em comissão é de livre nomeação e exoneração conforme texto constitucional. Isso significa que as pessoas ocupantes desses cargos são nomeadas e exoneradas a critério de autoridade competente a qualquer momento.
[8] Contrato temporário é para atender uma necessidade de excepcional interesse público nos órgãos da Administração Pública no prazo máximo de quatro anos a depender dos casos específicos. A definição de necessidade temporária de excepcional interesse público é definida pela Lei nº 8.745/1990, que dispõe sobre essa modalidade de provimento no serviço público.
[9] Estágio é um ato educativo escolar supervisionado em um ambiente de trabalho. A/o estudante em estágio em órgãos da Administração Pública não cria vínculo empregatício de qualquer natureza conforme esclarece a Lei nº 11.788/2008.
[10] Terceirizados são pessoas que executam serviços de maneira indireta, por meio da contratação de uma empresa, para a Administração Pública (Decreto nº 9.507/2018).
[11] Consultores externos são contratados para executar serviços técnicos de consultoria de pessoa física ou jurídica voltados para projetos de cooperação técnica internacional (Decreto nº 5.151/2004).
[12] Esse é um conceito que se aproxima do racismo estrutural. Aparecida Bento faz uma extensa discussão sobre a reprodução das desigualdades raciais nas organizações, analisando a perspectiva das pessoas à frente da gestão de pessoas. Ver em: Maria Aparecida da Silva Bento. Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. 2002. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.
[13] A pesquisa do Instituto Ethos pode ser descoberta em https://www.ethos.org.br/conteudo/projetos/gestao-sustentavel/pesquisa-de-diversidade-e-inclusao/
[14] Perfil Sociodemográfico dos Magistrados Brasileiros – 2018: https://www.cnj.jus.br/wpcontent/uploads/2019/09/a18da313c6fdcb6f364789672b64fcef_c948e694435a52768cbc00bda11979a3.pdf
[15] A publicação “Perfil Racial do Serviço Civil Ativo do Executivo Federal (1999-2020)” do Ipea, elaborada por Tatiana Dias Silva e Felix Lopez, analisa o perfil de servidores efetivos, permanentes, do Poder Executivo Federal.

Esta nota é de responsabilidade dos respectivos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais os autores estão vinculados.

Maria Aparecida Chagas Ferreira
Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental. Doutora em Sociologia e mestre em Educação. Foi secretária de Planejamento e Formulação de Políticas na Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Foi membro da Comissão de Acompanhamento de Políticas de Ações Afirmativas na pós-graduação da UnB, onde trabalhou na proposta aprovada de implementação das ações afirmativas na pós-graduação para estudantes negras e negros, indígenas e quilombolas. Na Administração Pública Federal, atua em processos de gestão estratégica e gestão interna.

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