Por Audo Araújo Faleiro

O tratamento da política externa como política pública é tema de permanente discussão e que divide diplomatas, acadêmicos, especialistas e integrantes de organizações não governamentais. De um lado, estão os que acreditam existir características específicas na área de relações exteriores que a tornam distinta das demais policies. De outro, os que sustentam não haver justificativa plausível para tal diferenciação. O debate não foi decidido em prol de nenhuma das posições e a divisão ainda persiste, mas é possível afirmar que a balança pende cada vez mais na direção do segundo grupo.

Essa constatação decorre de alterações estruturais em curso no Brasil e no mundo nas últimas décadas. A redemocratização, instituída com a Constituição de 1988, trouxe consigo um conjunto de elementos norteadores das relações internacionais do país. De forma inovadora em relação às suas predecessoras, a atual Carta Magna, em seu artigo IV [1], enumera dez princípios que devem guiar a política externa brasileira, além de uma diretriz relacionada à busca da integração latino-americana. Esse “balizamento” da ação global do Estado brasileiro serve de bússola normativa, que orienta a interação entre a política externa e outras políticas.

O novo marco constitucional também sancionou diversas inovações em matéria de participação social na formulação e no monitoramento de políticas públicas. Áreas mais tradicionais como educação, saúde, meio ambiente, assistência social, entre tantas outras, vivenciaram experiências muito positivas de práticas participativas que foram se disseminando.

Em política externa, esse processo ocorreu de forma mais lenta. A alegada complexidade dos temas internacionais e o fato de haver uma burocracia especializada representada pelo Itamaraty conferiam à política externa ares de impenetrabilidade. Fatores institucionais fortemente enraizados reforçam essa condição. Trata-se de uma carreira mantida com base em processo seletivo, escola de formação e controle organizacional próprios, o que confere aos seus membros forte espírito de corpo. Possui, ainda, circuito interno de documentos oficiais que liga a sede do órgão em Brasília à rede de postos no exterior[2]. Esse insulamento burocrático fez do ministério das Relações Exteriores um espaço do Estado brasileiro bem menos permeável às ingerências políticas decorrentes do presidencialismo de coalizão, o que é positivo, mas trouxe como consequência certa aversão ao convívio social e ao ecossistema maior no qual a organização está inserida. A prerrogativa do Itamaraty na formulação de conteúdos e na condução de agendas setoriais externas reforçou atitude de certa autossuficiência, que prescindia da contribuição de atores não vinculados à instituição. 

Índice
Novos espaços
Relação com outras políticas públicas

Novos espaços

Essa situação mudou drasticamente com o advento da revolução dos meios de comunicação, da Internet e da digitalização. O acompanhamento das negociações internacionais por organizações não governamentais, entidades sindicais e patronais foi amplamente facilitado pela formação de coalizões domésticas e farta troca de informações com suas contrapartes de outros países sobre os mais diversos temas da agenda comercial. À medida em que novos espaços de participação social foram criados, a sociedade civil se reorganizava para ocupá-los, formando redes especializadas. Destacam-se, nesse contexto, a Coalizão Empresarial Brasileira e a Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip).

A proliferação de cursos de relações internacionais nas universidades brasileiras e o surgimento de think tanks criaram massa crítica robusta à margem dos órgãos de Estado. Mesmo em temas mais tradicionais como segurança e defesa, como o atual conflito entre Rússia e Ucrânia demonstra, a voz de especialistas e acadêmicos passou a disputar o espaço antes monopolizado por diplomatas e militares.  

Os anos de 1990, também conhecidos como a Década das Conferências promovidas pela ONU, multiplicaram as frentes negociadoras no âmbito internacional. Novos temas como meio ambiente, direitos humanos e sociais, habitação, população e financiamento ao desenvolvimento passaram a compor o cotidiano das relações multilaterais, com expressiva participação de entidades do terceiro setor. Com isso, verificou-se a diluição das fronteiras entre o externo e o interno na ação dos Estados e de seus agentes. Os assuntos internacionais foram se internalizando e os internos foram sendo incorporados à agenda externa. A liberalização comercial e dos fluxos de investimentos e a interconexão dos meios de transporte fomentaram a noção de crescente interdependência que marca as relações entre os Estados.

Na esfera doméstica, em cada uma dessas novas frentes, foros nacionais foram criados por decreto presidencial, com presença de integrantes do governo e da sociedade civil, para preparar a posição brasileira. A Conferência do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada na capital fluminense em junho de 1992, foi o fator catalisador dessa aproximação, que se estendeu por vários anos. Quando em 2012 o Brasil sediou a Rio+20, formas inovadoras de consulta e concertação com a sociedade civil foram implementadas na discussão dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis (ODS) e na agenda da mudança climática. 

Seguiram-se outras conferências relevantes: a Cúpula Mundial sobre o Desenvolvimento Social, organizada em Copenhagen, em março de 1995, em que o Brasil esteve representado pela maior delegação mista composta até então. Na Conferência Mundial sobre a Mulher em Pequim, em setembro de 1995, o processo preparatório foi especialmente denso, dado o nível de organização dos movimentos feministas no Brasil, com o qual o governo estabeleceu estreito diálogo.

Mesmo áreas mais tradicionais, como a das negociações comerciais, foram paulatinamente povoadas por novos atores. Em 1994, foi assinado o Protocolo Adicional ao Tratado de Assunção, sobre a Estrutura Institucional do Mercosul, o chamado Protocolo de Ouro Preto. Este último estabeleceu o Fórum Consultivo Econômico e Social, mecanismo de consulta com entidades patronais e confederações sindicais. Em 1996, foi formalizada a criação da Seção Nacional da Área de Livre Comércio das Américas (Senalca), com a participação da sociedade civil. Em 2001, instância de coordenação semelhante foi criada para acompanhar as negociações entre o Mercosul e a União Europeia (Seneuropa). A Rodada de Doha da Organização Mundial de Comércio (OMC), em várias das suas instâncias, também contou com ampla participação de setores não governamentais. 

Relação com outras políticas públicas

Os acontecimentos mais recentes relacionados às crises financeira, migratória, ambiental e sanitária só fizeram consolidar essa impressão de que os Estados seguem sendo o ator privilegiado para a construção da ordem internacional, mas os constrangimentos para sua ação são cada vez maiores. Esses desafios de natureza sistêmica, que requerem ação coletiva das sociedades para sua solução, impõem nova dinâmica na maneira de formular e implementar a política externa, que tem na participação cidadã um elemento central. 

O mesmo fenômeno se verifica em relação aos entes subnacionais. Governos estaduais e municipais, por exemplo, mostraram-se peças fundamentais na proteção dos recursos naturais e no combate ao desmatamento, no enfrentamento da Covid-19 e no reassentamento de migrantes e refugiados. Num Estado Federal com as dimensões e a diversidade do Brasil, a capacidade de implementar políticas públicas depende desses atores. 

A afirmação de que não existe política externa no vácuo decorre desse diagnóstico sobre sua relação com várias outras políticas públicas: a política externa é a projeção dos objetivos de políticas setoriais (que alguns chamam de interesse nacional) no meio externo. Ela não existe sem outras políticas públicas que lhe dão conteúdo. 

Em cenário de permanente e salutar “desafio” à autonomia do Ministério das Relações Exteriores na condução da política externa, a melhor estratégia para a diplomacia brasileira não é ir na contramão dessas tendências estruturais ao tentar reeditar os áureos tempos de uma tranquila e inquestionada liderança. A opção mais eficiente e inteligente para o Itamaraty é a de disputar essa prerrogativa, abrindo suas portas para uma relação de intensa colaboração com outros órgãos da burocracia, do Legislativo e da sociedade civil. Atores e fatores domésticos são tão relevantes para o conteúdo e a formulação da política externa quanto os fatores externos. Quanto mais integrado na sociedade e articulado aos diferentes entes federativos, mais forte será o Itamaraty. Nos tempos que correm, o insulamento é receita para o isolamento e perda de relevância. 

[1] O artigo IV da Constituição de 1988 relaciona os seguintes princípios: I – independência nacional; II – prevalência dos direitos humanos; III – autodeterminação dos povos; IV – não-intervenção; V – igualdade entre os Estados; VI – defesa da paz; VII – solução pacífica dos conflitos; VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X – concessão de asilo político. Em seu parágrafo único, estipula que o Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.
[2]  A rede de postos do Itamaraty no exterior é constituída por 133 embaixadas, 13 missões junto a organizações internacionais, 63 consulados, 11 vice-consulados e 3 escritórios de representação. 

Esta nota é de responsabilidade dos respectivos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais os autores estão vinculados.

Audo Araújo Faleiro
Ingressou no Instituto Rio Branco em 1996. Entre 1998 e 2002, esteve lotado no Itamaraty, em Brasília, na Divisão de Política Financeira e Desenvolvimento (DPFD) e na Divisão de Agricultura e Produtos de Base (DPB). Membro da missão permanente do Brasil em Genebra (2003-2006), atuou como delegado junto à OMC e ONU. Chefiou os setores político e de promoção comercial na embaixada do Brasil em Caracas (2006 a 2008). De retorno a Brasília, serviu 6 anos (entre 2009 e 2015) na assessoria internacional da presidência da República. Em 2011, foi enviado a Quito para apoiar a instalação da sede da UNASUL naquela capital. Entre 2015 e 2019, foi ministro-conselheiro na embaixada em Paris. Integra atualmente, como assessor, o Departamento de Promoção de Serviços e de Indústria do Itamaraty e coordena as negociações do subgrupo de serviços no Mercosul.

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