O corporativismo é comumente definido como um sistema de representação, tramitação e implementação de interesses coletivos específicos junto ao poder público instituído. Não cabe aqui discorrer sobre suas variantes histórico-institucionais, ou seja, se corporativismo estatal (organizado e tutelado pelo Estado), se corporativismo societal (animado e sustentado pelo pluralismo de interesses presentes na sociedade), bem como as combinações e derivações observadas empiricamente de ambos os modelos principais ao longo do tempo.

Para os interesses deste texto, basta dizer que o corporativismo se firmou, na história do capitalismo contemporâneo (basicamente após a Segunda Guerra Mundial), como uma forma politicamente legítima e relativamente eficaz de explicitação de atores e interesses e de canalização e resolução de conflitos, tanto na relação entre setores públicos e privados, como internamente ao setor público. No caso do setor público, isso se deu em função da grande diversidade de áreas de atuação estatal, burocracias e arenas decisórias, interesses e processos institucionais envolvidos.

Mas em ambos os casos, para além das decisões de Estado emanadas das regras tradicionais da democracia representativa, o corporativismo (via atividades formais e informais de lobby, advocacy etc.) veio a ser considerado também uma forma – complementar e mais direta, ainda que menos regulada – de manifestação, negociação e intermediação de interesses organizados, corporativamente, visando influenciar e moldar processos decisórios em âmbitos governamentais.

Até aqui, então, nada demais, apenas as coisas como efetivamente são e funcionam nas sociedades capitalistas contemporâneas. Mas o problema começa quando, saindo da discussão formal e abstrata sobre conceitos e categorias de análise, chegamos ao chão da política como ela é. E ela é dominada, no Brasil e alhures, por grupos e corporações mais poderosos e privilegiados do que outros. Essa hierarquia e assimetria de poder e de recursos (econômicos e simbólicos) distorcem a legalidade, a legitimidade e os resultados concretos obtidos pelos diversos grupos organizados da sociedade (públicos e privados) que se relacionam corporativamente com o Estado. Este, por sua vez, acolhe, tramita e implementa diferenciadamente decisões e políticas públicas, mais em favor de uns do que de outros grupos sociais.

Nesse sentido, sempre e quando o Estado age apenas como canal de transmissão dos interesses mais fortes e bem representados em seus circuitos decisórios, ele colabora para sacralizar as desigualdades econômicas e sociais presentes na sociedade, e também a reforçar a assimetria de recursos e o poder (formal) de voto e (informal) de veto dos atores mais influentes. Ao fim e ao cabo, é a própria política em regimes formalmente democráticos que vai perdendo potência transformadora, já que por meio do corporativismo predatório vão-se consumando posições de poder dos grupos já privilegiados e fragilizando-se as posições de atores com menos recursos e vozes menos potentes na sociedade e no interior dos governos.

Pode-se dizer que o mesmo fenômeno acontece nas relações intraestatais, onde determinadas elites burocráticas conseguem não apenas impor e manter seus próprios privilégios de classe, como por meio disso afastar a sua atuação dos interesses e necessidades verdadeiramente nacionais. Que isso seja a regra das corporações privadas já o sabemos, mas que tal comportamento seja a tônica de burocracias corporativas sobrerrepresentadas no seio do setor público, é um péssimo sinal de esvaziamento substantivo do republicanismo e da democracia em nosso país.

Desta maneira, uma das formas de se mitigar ou combater o corporativismo predatório no seio do setor público consiste em relembrar e reforçar o caráter público tanto da configuração burocrática como da atuação estatal, conforme quadro 1 abaixo.

Vemos que há diferenças importantes entre os setores público (Estado) e privado (mercado) no que diz respeito à essência, objetivos gerais e formas de atuação de cada uma dessas esferas da vida contemporânea. Tais diferenças ajudam a entender melhor o espaço e atribuições de Estado e mercado em suas relações entre si e de cada uma dessas instâncias diante dos mundos econômico, social e político. Desta maneira, perceber e entender as diferentes perspectivas e especificidades de atuação entre ambos nos ajuda também a nos situarmos melhor em relação às nossas próprias preferências e opções de atuação profissional. Embora de forma bastante simples e esquemática, o quadro 1 lista algumas das principais diferenças.

De modo geral, a atuação das pessoas no setor privado está ancorada em imperativos de necessidade de sobrevivência e autointeresse, cujo principal objetivo é atender aos desejos e necessidades dos indivíduos mediante a venda de bens e serviços de caráter mercantil, seja diretamente como pessoa física (autoemprego, trabalho por conta própria), seja através de empresas formais ou informais (pessoas jurídicas). Além disso, é importante entender que no setor privado, por razões ligadas à lógica interna do sistema capitalista, as empresas e as pessoas que produzem para o mercado são induzidas a priorizar o curto/médio prazo, adotar perspectivas micro/meso econômicas e visar a acumulação de valor econômico na forma de lucro monetário.

Por sua vez, a atuação no setor público deve, idealmente, estar motivada por atributos pessoais ligados à vocação à esfera pública, altruísmo e desejo de prestar serviços à população como forma de viabilizar ou aperfeiçoar o atendimento estatal/público à coletividade. Além disso, trabalhar para o Estado – mas sempre a serviço da sociedade – implica em entender que este é o principal ente, criado historicamente pela humanidade, que pode e deve pautar e orientar a sua atuação a partir de uma visão de longo prazo para o desenvolvimento nacional, tendo as perspectivas macroeconômica, macrossocial e territorial como guias, bem como a produção de valor social de sentido não monetário como paradigma.

Referência
DI GIOVANNI, G. e NOGUEIRA, M. A. (editores). Dicionário de Políticas Públicas. São Paulo: Ed. Unesp, 3ª edição, 2018).
OUTHWAITE, W. e BOTTOMORE, T. (editores). Dicionário do Pensamento Social do Século XX. São Paulo: Ed. Zahar, 1996.
SCHMITTER, P. Still the Century of Corporatism? The Review of Politics, v. 36, n. 1, p. 85-131, 1974.


Esta nota é de responsabilidade dos respectivos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais os autores estão vinculados.

José Celso Cardoso Jr

Técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), atualmente é presidente da Associação dos Funcionários do Ipea e Sindicato Nacional dos Servidores do Ipea (Afipea-Sindical).

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