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REPUBLICANIZAR E DEMOCRATIZAR O ESTADO COM TRANSPARÊNCIA, CONTROLE SOCIAL PÚBLICO E REFORMAS

O autoritarismo incrustado  como traço ditintivo e forma dominante de relacionamento entre agentes do Estado, do mercado e da sociedade, bem como entre eles mesmos, remonta, no caso brasileiro, ao Estado monárquico absolutista português que nos deu origem e direção. Sobre isso, há muitos trabalhos relevantes publicados no Brasil, dos quais importa aqui destacar os de DaMatta (2020), Schwarcz (2019), Schwartzman (2015) e Souza Neto (2020), dentre muitos outros.

Desta maneira, a ideia de um poder centralizado de cunho ou pretensão absolutista nunca deixou de estar presente no Brasil, mesmo após a separação formal entre Estado e Igreja, a qual veio junto com a separação formal entre poderes Executivo, Judiciário e Legislativo, após a instauração da República em 1889. Esse aspecto é reforçado pelo fato de que a própria República foi aqui implantada por um pacto entre elites, tendo sido promulgada por um poder militar com apoio da burguesia capitalista emergente e aquiescência da antiga nobreza imperial. Não houve no Brasil nenhuma ruptura institucional dramática ou evento de amplitude e aderência social que pudesse fundar uma ordem política nova ou oposta à ordem escravocrata que sempre esteve na base de nossa formação histórica.

Por esta razão, jamais se consolidou no país um processo histórico intenso de republicanização, entendido aqui como aquele por meio do qual um país e sua nação buscam se aproximar de uma forma de organização política do Estado que visa (e prevê) a repartição e o equilíbrio do poder entre seus cidadãos e organizações. Tampouco se instalou aqui, um processo denso de democratização entendido como forma de organização política da sociedade por meio da qual opiniões, vontades e interesses diversos podem ser agregados, manifestos e representados, e os conflitos podem ser disciplinados, regrados e periodicamente equacionados.

O autoritarismo, portanto, amalgamou-se como traço distintivo da cultura política senhorial brasileira, tendo sido relativizado em momentos de republicanização e democratização do Estado, tais como durante o segundo governo Vargas, o governo JK, o momento constituinte que antecedeu e culminou com a Constituição Federal de 1988 e, sob contradições abertas até 2016, viveu seus melhores dias. Mas ele também foi reforçado nos momentos de autoritarismo explícito, vivenciados pela política brasileira durante a ditadura Vargas, a ditadura militar e durante os governos Temer e Bolsonaro.

Em suma, a história política e institucional brasileira pode ser resumida como uma sequência desequilibrada de espasmos democráticos, combinados com dominância autoritária ao longo da maior parte do tempo. Por sua vez, quando aplicado às relações intraestatais, o autoritarismo implica em formas e graus variados de mandonismo e assédio institucional, cujo fenômeno atingiu o seu ápice justamente ao longo do governo Bolsonaro, conforme amplamente documentado no livro Assédio Institucional no Brasil: avanço do autoritarismo e desconstrução do Estado (Cardoso Jr., Silva, Aguiar e Sandim, 2022).

Para exemplificar, veja-se pelo quadro e gráficos abaixo, como aproximação ao complexo e multifacetado tema do desempenho institucional agregado do setor público federal brasileiro, que uma visão de conjunto dos quatro últimos governos (Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro) conformam um processo de perda de densidade, entre os governos Lula e Dilma, e de verdadeiro desmonte, na passagem dos governos Lula para Temer e Bolsonaro, no que diz respeito à tríade República, Democracia e Desenvolvimento.

Quadro 1: Comparativo entre Desempenhos Gerais dos Governos Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro, em termos dos processos de republicanização, democratização e desenvolvimento do Estado, da Sociedade e da Economia brasileira.

Fonte: Elaboração própria com base em documentos oficiais do governo federal brasileiro, notícias e reportagens da imprensa escrita e base de dados do Assediômetro.. Nota: 0 = desempenho péssimo; 1 = desempenho ruim; 2 = desempenho médio; 3 = desempenho satisfatório.

Tendo como critério de análise os processos de longo prazo relacionados à republicanização, democratização e desenvolvimento do Estado, da sociedade e da economia brasileira, trata-se aqui de sintetizar, por meio do quadro acima e gráficos subsequentes, uma avaliação preliminar de desempenho governamental que pontua entre 0 ( = desempenho péssimo), a 1 ( = desempenho ruim), 2 (= desempenho médio) e 3 (= desempenho satisfatório) a atuação dos quatro últimos governos findos no Brasil.

Enquanto as dimensões republicana (cuja pontuação agregada passa de 6 para 5 entre os governos Lula e Dilma e de 2 para 1 entre os governos Temer e Bolsonaro); democrática (cuja pontuação passa de 10 para 6 entre os governos Lula e Dilma, e de 4 para 3 entre os governos Temer e Bolsonaro) vão se enfraquecendo nas passagens de um governo a outro, a dimensão do desenvolvimento sofre um abalo (de 17 para 13 pontos) entre os governos Lula e Dilma, e um colapso (de 17 para 7 e 1 pontos, respectivamente) na comparação entre os governos Lula/Temer e Lula/Bolsonaro.

Evidentemente, trata-se de uma avaliação aproximada, que usa como parâmetros de pontuação alguns critérios importantes (porém não exaustivos) da configuração de Estados nacionais republicanos, democráticos e desenvolvidos, cujos critérios podem ser mais bem visualizados por meio dos gráficos abaixo. Ainda como alerta metodológico, embora a pontuação aplicada de cada quesito a cada governo reflita uma leitura/interpretação pessoal de natureza retrospectiva acerca dos governos findos de Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro, pareceu-nos importante essa confrontação com vistas ao esforço comparativo inicial aqui sugerido.

REPUBLICANIZAR E DEMOCRATIZAR O ESTADO COM TRANSPARÊNCIA, CONTROLE SOCIAL PÚBLICO E REFORMAS

Desta maneira, entendemos que a única forma de combater – e quiçá superar – essa chaga brasileira do autoritarismo congênito do país passa por uma reforma do Estado e da administração pública que esteja ancorada em medidas efetivas (leia-se: contínuas, coletivas e cumulativas) de republicanização e de democratização das relações intraestatais e entre o ente estatal e os agentes e setores do mercado e da sociedade.

A republicanização do Estado exige, entre outras coisas, o máximo possível de transparência dos processos decisórios e dos resultados intermediários e finais dos atos de governo e das políticas públicas de forma geral. Conferindo-se visibilidade e publicidade às arenas decisórias, aos atores e interesses envolvidos em cada caso, bem como aos processos institucionais (formais e informais), por meio dos quais as decisões cruciais da República são tomadas. Equilibra-se mais e melhor a distribuição desigual de recursos de poder de cada ator e produzem-se resultados, simultaneamente, mais legítimos do ponto de vista político e mais aderentes à realidade e perenes ao longo do tempo. Este é um dos principais campos de atuação republicana contra a visão moralista e punitivista de combate à corrupção no país.

Por sua vez, a democratização do Estado exige, no mínimo, formas mais efetivas de controle social público sobre os três poderes (Executivo, Legislativo, Judiciário), Ministério Público e sobre os meios de comunicação (públicos e privados), ao mesmo tempo que uma reforma política que implique, de fato, em maior representatividade da imensa diversidade e heterogeneidade da população e seus problemas, anseios e necessidades no parlamento. Mas para além dos aperfeiçoamentos necessários nos fundamentos e mecanismos da democracia representativa, é preciso também fazer avançar a efetividade das instituições e mecanismos da democracia participativa (por meio dos conselhos, conferências, audiências, ouvidorias, fóruns, grupos de trabalho etc.) e da democracia deliberativa (por meio dos referendos, plebiscitos, iniciativas populares, etc.).

Com relação ao sistema representativo: medidas para uma reforma político-partidária que implique maior convergência entre representação parlamentar e representados, bem como maior alinhamento ideológico e programático entre partidos e eleitores. Neste campo, o financiamento público exclusivo das campanhas eleitorais é primordial.

Já com relação ao sistema participativo: medidas que impliquem maior institucionalização, ativação e responsividade dos conselhos, conferências, audiências e ouvidorias públicas, fóruns de discussão e grupos de trabalho na interface entre Estado, políticas públicas e sociedade civil. Tais instâncias podem e precisam avançar qualitativamente como espaços de deliberação sobre questões estratégicas e diretrizes de políticas públicas.

Por fim, com relação ao sistema deliberativo: medidas que impliquem maior disseminação, uso e responsabilização dos instrumentos e mecanismos diretos de democratização das decisões coletivas, tais como o referendo, o plebiscito e as proposições legislativas de iniciativa popular. Esta ampliação da prerrogativa de convocação de plebiscitos, referendos e consultas populares deve incorporar também a introdução do veto popular, de modo a ratificar a soberania popular como espaço decisório cotidiano e de última instância em torno de questões cruciais para a sociedade brasileira.

Referências

CARDOSO JR., J. C., SILVA, F. B., AGUIAR, M. F. e SANDIM, T. L. (orgs.). Assédio Institucional no Brasil: avanço do autoritarismo e desconstrução do Estado. Brasília: Afipea e Eduepb, 2022.

DAMATTA, R. (Org.). Você sabe com quem está falando? Estudos sobre o autoritarismo brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 2020.

SCHWARCZ, L. M. (Org.). Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Cia das Letras, 2019.

SCHWARTZMAN, S. (Org.). Bases do autoritarismo brasileiro. Campinas: Ed. Unicamp, 2015.

SOUZA NETO, C. P. (Org.). Democracia em crise no Brasil: valores constitucionais, antagonismo político e dinâmica institucional. São Paulo: Contracorrente, 2020.

Esta nota é de responsabilidade dos respectivos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais os autores estão vinculados.

José Celso Cardoso Jr

Técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), atualmente é presidente da Associação dos Funcionários do Ipea e Sindicato Nacional dos Servidores do Ipea (Afipea-Sindical).

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