Por Rafaela Seixas Fontes e Audo Araújo Faleiro

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Igualdade de oportunidades

Da antiga Secretaria dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, instituído a partir da chegada da família real portuguesa ao Rio de Janeiro, em 1808, até os nossos dias, o Ministério das Relações Exteriores (MRE) foi vital para que o país superasse enormes desafios ao longo da sua história. A diplomacia brasileira atuou nas negociações para o reconhecimento internacional da Independência, na tumultuada relação com as jovens repúblicas hispânicas da Bacia do Prata, na arbitragem dos limites territoriais na passagem do século XIX para o XX, na travessia dos anos turbulentos da primeira e segunda guerras mundiais e da Guerra Fria e, a partir dos anos 1990, na criação dos regimes de governança ambiental e na expansão do arcabouço de direitos humanos, aí incluído o de combate à discriminação racial. 

Para bem desempenhar suas funções, foi preocupação permanente a de se buscar a adequação entre objetivos e meios na ação diplomática. Do ponto de vista institucional, várias foram as reformas que, ao longo dos últimos 200 anos, procuraram dotar o Estado de instrumentos para bem desempenhar a tarefa de representar os interesses do país no exterior. O organograma do ministério cresceu e especializou-se. Foram criados, entre outros, o Serviço Consular, de Comunicação, de Documentação Oficial, de Arquivo Diplomático, de Protocolo e de Administração. A rede de postos (embaixadas e consulados) ampliou-se continuamente para fazer frente às necessidades da atuação externa em defesa dos interesses do Estado e dos cidadãos brasileiros em contexto internacional cada vez mais complexo.

O mecanismo de recrutamento de seus quadros também evoluiu nesse período. Durante os anos do Império e da República Velha, os funcionários do serviço exterior eram escolhidos a dedo por seus vínculos familiares com a elite econômica e nobiliária. Representar o Brasil era reproduzir os interesses dos estamentos dirigentes, em muito influenciados pelos estereótipos projetados a partir dos centros de poder: era preciso ser branco, compartilhar a cultura e os hábitos aristocráticos europeus. 

No século XX, avanços importantes ocorreram para tornar o ingresso na carreira diplomática mais democrático e menos sujeito à rede de relacionamento dos candidatos. O concurso foi instituído na década de 1930, na esteira do processo de centralização e profissionalização de todo o serviço público. O Instituto Rio Branco (IRBr), criado em 1945 em homenagem ao centenário do nascimento do patrono da diplomacia brasileira, é, desde então, a porta de entrada para a carreira diplomática. Embora tenham sido realizados concursos para ingresso direto na carreira, a regra é a passagem pelos bancos da academia diplomática. 

Com a redemocratização e a Constituição de 1988, além da crescente participação do Brasil nos foros internacionais, as pressões aumentaram por maior diversidade no corpo funcional do Itamaraty. Medidas inovadoras foram adotadas para ampliar as possibilidades de acesso: os concursos anuais deixaram de ser realizados unicamente em Brasília e passaram a ocorrer também nas 26 capitais dos estados da Federação; as provas orais, passíveis de avaliações mais subjetivas dos examinadores, foram abolidas; a eliminação da idade máxima para ingresso na carreira conferiu mais prazo para a preparação dos candidatos; a nomeação imediata como diplomata, com salários mais elevados, permitiu aos alunos do IRBr melhores condições de custeio de sua estada em Brasília. Como resultado, há mais diversidade regional e até social, com a incorporação de camadas mais amplas da classe média. 

Igualdade de oportunidades

Nessa longa trajetória, algo que, infelizmente, teima em não mudar é a composição racial do quadro funcional do ministério[1]. O Itamaraty, a exemplo de outros órgãos da administração pública, continua a não refletir a diversidade da população brasileira. Somos um país majoritariamente de pretos e pardos, segundo o IBGE, que enfrentam enormes barreiras para ingressar na carreira diplomática, pois não chegam em igualdade de condições ao concurso de admissão. 

Não pairam dúvidas sobre a lisura do processo seletivo. As provas são corrigidas sem que se saiba a identidade do candidato, que só é conhecida pelos examinadores após as notas terem sido atribuídas. Trata-se de concurso longo e exigente, que requer conhecimentos de ampla gama de disciplinas, cuja preparação pode levar anos e requer disponibilidade de tempo e de recursos para acessar a rede especializada de professores. Esse é o gargalo que impediu e impede que negros entrem na disputa por vagas em igualdade de condições.

Como o Ministério das Relações Exteriores não mantém cadastro dos seus servidores baseado no critério de raça, cor ou etnia, é difícil estimar com precisão o número de negros diplomatas. Essa lacuna será em parte preenchida quando vier à tona um estudo encomendado recentemente pela Associação dos Diplomatas Brasileiros, com vistas à obtenção desses e de outros dados sobre o perfil do corpo diplomático. Mas a persistência dessa falta de diversidade é empiricamente verificável para os que compartilham as repartições do ministério em Brasília e no exterior. Basta lembrar que a primeira mulher negra diplomata ingressou no IRBr em 1979 e que, só em 2010, o primeiro diplomata de carreira negro chegou ao cargo de embaixador. De lá pra cá, só mais um negro chegou a embaixador, em 2015. Em pleno ano do Bicentenário, portanto, só dois postos do serviço exterior brasileiro são chefiados por negros em uma rede composta por 133 embaixadas, 13 missões junto a organizações internacionais, 63 consulados e três escritórios de representação.

Duas medidas mais recentes têm procurado corrigir essas distorções e fomentar mais igualdade de oportunidades. A primeira refere-se ao lançamento, em 2002, da Bolsa-Prêmio de Vocação para a Diplomacia, em comemoração ao Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial. Dados do IRBr indicam que entre 2003 e 2014, período em que essa era a única medida de ação afirmativa para candidatos negros, 21 bolsistas foram aprovados num conjunto de 758 vagas em 12 edições do concurso. Ou seja, só 2,7% dos que ingressaram.

Com a Lei n° 12.990 de 2014, que estabelece reserva de 20% das vagas nos concursos públicos para candidatos pretos ou pardos, outro passo importante foi dado em prol de maior inclusão. Entre 2015 e 2022, em sete edições do concurso, 40 vagas de um total de 195 foram ocupadas por candidatos negros.

Em paralelo aos esforços institucionais, jovens diplomatas idealizaram e puseram em prática em 2021 programa de mentoria para orientar gratuitamente mulheres e homens negros que se preparam para o vestibular do Itamaraty. A iniciativa já reúne mais de 28 diplomatas voluntários e que atendem individualmente 50 candidatos, dos quais 35 mulheres. O grupo, batizado de Mônica de Menezes Campos (em homenagem à primeira mulher negra diplomata indicada acima), também tem atuado junto aos cursos particulares de preparação ao concurso do IRBr para a obtenção de descontos e bolsas de estudos. Entre outubro de 2021 e março de 2022, foram distribuídas 96 bolsas no valor de 150 mil reais. Os resultados da mentoria no concurso de 2022 são notáveis: 12 mentorandos, dentre eles 7 mulheres negras, foram aprovados na primeira e segunda fases do concurso, e quatro mulheres negras que foram bolsistas e mentorandas são as mais novas representantes do Serviço Diplomático Brasileiro.

Embora todas essas iniciativas caminhem na direção correta e tenham produzido resultados positivos, ainda são insuficientes em face dos desafios da diversidade enfrentados pelo Itamaraty. Outras medidas poderiam ser consideradas. Uma delas é a revisão do caráter eliminatório das provas de inglês no concurso de admissão, pleito frequente dos candidatos de menor poder aquisitivo. Não se trata de relativizar o mérito como parâmetro de ingresso (os idiomas continuariam a ser parte do processo seletivo na forma classificatória), mas a reelaboração desse critério de modo a torná-lo mais justo, sem reduzir sua importância como instrumento de avaliação. 

Além disso, como os desafios da diversidade não se limitam apenas ao momento de entrada na carreira, mas também estão presentes no cotidiano da instituição, é fundamental reinstituir o Comitê Gestor de Gênero e Raça do MRE (CGGR), que vigorou entre 2014 e 2018, como órgão consultivo. A atuação do CGGR contribuirá para tornar o clima organizacional mais igualitário e promover a troca permanente de informações e conhecimentos orientados pela promoção da isonomia de direitos na chancelaria, além de acompanhar e avaliar a eficácia das medidas em vigor.

[1]   A situação das mulheres na diplomacia brasileira será objeto de um texto à parte.

Esta nota é de responsabilidade dos respectivos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais os autores estão vinculados.

Rafaela Seixas Fontes
Rafaela Seixas Fontes é segunda secretária da carreira diplomática, mestranda em direito na UnB e graduada em direito pela UFBa.

Audo Araújo Faleiro
Ingressou no Instituto Rio Branco em 1996. Entre 1998 e 2002, esteve lotado no Itamaraty, em Brasília, na Divisão de Política Financeira e Desenvolvimento (DPFD) e na Divisão de Agricultura e Produtos de Base (DPB). Membro da missão permanente do Brasil em Genebra (2003-2006), atuou como delegado junto à OMC e ONU. Chefiou os setores político e de promoção comercial na embaixada do Brasil em Caracas (2006 a 2008). De retorno a Brasília, serviu 6 anos (entre 2009 e 2015) na assessoria internacional da presidência da República. Em 2011, foi enviado a Quito para apoiar a instalação da sede da UNASUL naquela capital. Entre 2015 e 2019, foi ministro-conselheiro na embaixada em Paris. Integra atualmente, como assessor, o Departamento de Promoção de Serviços e de Indústria do Itamaraty e coordena as negociações do subgrupo de serviços no Mercosul.

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