Índice
Introdução
Recomendações
Conclusão

Introdução

O reconhecimento das fragilidades do sistema de mérito reforça a necessidade da construção de uma agenda que permita ao Estado brasileiro aperfeiçoar uma rede de constrangimentos procedimentais que regule a influência política sobre as práticas de pessoas no serviço público.

A fragilidade do sistema de proteção do mérito no serviço público brasileiro foi abordada nas notas técnicas anteriores desta série. Nelas, analisamos a fragilidade dos mecanismos de gestão de recursos humanos, corregedorias e ouvidorias de três órgãos da administração federal: IBAMA, FUNAI e INCRA, identificando fragilidades que tornam órgãos de Estado suscetíveis a discricionariedade política arbitrária. 

Conforme abordamos na nota técnica 3, a criação de um sistema de proteção do mérito no Brasil é uma tarefa inconclusa. A construção de mecanismos que permitam equilibrar a autonomia do serviço público com a necessária accountability democrática por parte dos servidores (isto é, com a existência de incentivos para que estes implementem as políticas da agenda de governo) ainda é um desafio carente de evidências e diagnósticos adequados. 

O reconhecimento das fragilidades do sistema de mérito reforça a necessidade de uma agenda de reformas que permita ao Estado brasileiro   introduzir normas para reduzir a  influência política sobre as políticas de gestão  de pessoas no serviço público. Mais que normas pontuais e descoordenadas entre si, é necessária a criação de uma rede de constrangimentos procedimentais que permitam ao governo instituir políticas de pessoal, mas não determinar os resultados destas políticas em situações específicas do cotidiano da administração. Chamamos constrangimentos procedimentais à existência de um  conjunto de normas formais e informais e procedimentos padronizados que assegurem que as razões de mérito sejam levadas em conta na definição das políticas de recursos humanos. A adoção de tais constrangimentos, desde que desenhados de maneira adequada, tem potencial de assegurar a impessoalidade do serviço público, bem como torná-lo mais eficiente. 

Aperfeiçoar o sistema de proteção do mérito torna-se, portanto, uma tarefa necessária para fortalecer a democracia. Nesse contexto, o Instituto Igarapé, em parceria com a República.org, analisou cuidadosamente o caso brasileiro à luz de referências internacionais e elaborou uma série de recomendações de reforma e aperfeiçoamento da gestão de pessoas no serviço público brasileiro. Acreditamos ser necessário promover um amplo debate a esse respeito, à luz do acúmulo de aprendizados sobre os desafios de profissionalização da administração pública, em especial os observados desde a crise econômica brasileira de 2014 e seus efeitos sobre a política nacional. 

Em nosso entendimento, são quatro os eixos de atuação necessários: 1) melhor controle da discricionariedade; 2) profissionalização das funções de recursos humanos; 3) revisão da governança de gestão de pessoas; e 4) regras mais acessíveis e transparentes.

Recomendações

Como aperfeiçoar o sistema de proteção do mérito no serviço público? Com base no diagnóstico elaborado em notas técnicas anteriores, sugerimos quatro grande áreas de melhoria: 

  1. Melhor controle da discricionariedade

Avaliamos que são frágeis e pouco consistentes os mecanismos responsáveis por incentivar o equilíbrio entre política e administração na gestão do serviço público brasileiro, e uma das razões para tanto é a carência de regulamentação clara sobre os limites da influência dos políticos eleitos sobre os resultados da política de pessoal, além do papel dos burocratas enquanto implementadores da agenda dos governos eleitos. Tal lacuna resulta em uma dinâmica de enfrentamento que frequentemente se traduz em políticas públicas pouco eficientes e eficazes. Esse é um cenário que se torna ainda mais complexo devido à abordagem legalista dominante na regulamentação de recursos humanos no setor público, por sua natureza hermética — o que contribui para aumentar a complexidade da gestão de recursos humanos.

A ausência de uma orientação gerencial para a gestão de pessoas no serviço público acarreta um desequilíbrio na relação entre política e administração. Esse desequilíbrio se manifesta, por exemplo, na concentração de poder em servidores com conhecimento das normas infralegais e na criação de espaços para atuação arbitrária dos dirigentes políticos nas áreas cinzentas da regulamentação. 

A fim de estabelecer uma relação harmoniosa entre política e administração na gestão do serviço público, é imperativo redefinir e regulamentar os limites entre a influência dos políticos e o papel dos burocratas. Para tanto, é necessário:

  1. estabelecer normas claras, simples e transparentes para os principais processos na gestão pública, garantindo uma conexão explícita entre os objetivos da organização e os servidores responsáveis por sua execução;
  2. desenvolver uma abordagem gerencial eficiente em recursos humanos, que considere critérios meritocráticos e esteja alinhada aos desafios e objetivos dos órgãos públicos;
  3. padronizar atividades de gestão dos recursos humanos por meio do dimensionamento adequado do quadro de servidores, respeito às regras para distribuição de pessoal e adoção da descrição de cargos e competências esperadas para o exercício de funções de liderança, entre outras medidas;
  4. limitar a discricionariedade arbitrária dos gestores, adotando mecanismos de supervisão que assegurem que as decisões de gestão de pessoal sejam pautadas pelo mérito e pela transparência.
  1. Profissionalização das funções de Recursos Humanos 

​​A discussão aprofundada acerca das funções consultivas, executivas, regulatórias, investigativas e adjudicativas da área de Recursos Humanos (RH) revela uma concentração dessas funções nas unidades de RH nos órgãos públicos brasileiros ou em estruturas descentralizadas e com escasso conhecimento técnico.

As unidades descentralizadas de RH enfrentam a falta de suporte e dependem de estratégias definidas por suas unidades centrais, geralmente embasadas em critérios limitados e insuficiente tecnicidade. Tal cenário é evidenciado ao se comparar diferentes órgãos federais, onde não se observa qualquer relacionamento ou construção de ações e normatizações orientadas por uma diretriz central.

Essa lacuna afeta diretamente a execução da gestão de pessoas, visto que cada órgão implementa políticas de acordo com suas necessidades e capacidade institucional. Tal deficiência repercute na qualidade da regulação e na resolução de eventuais conflitos na aplicação do que é regulamentado. A análise das respostas dos órgãos consultados indica pouca presença de conhecimentos técnicos em gestão de pessoas ou aplicação de conceitos modernos nessa área, seja em termos de competências técnicas, seja no uso estruturado de dados. A situação é um reflexo da legislação que aborda os processos na área de forma legalista, sem atenção a uma perspectiva estratégica e gerencial.

A resolução de conflitos na área de RH também é afetada por essa problemática. Atualmente, não há varas especializadas em tratar sobre o assunto no âmbito do serviço público, resultando em uma abordagem legalista, sem consideração aos impactos gerenciais na implementação de políticas públicas.

Para enfrentar esse desafio, é crucial investir na criação e formação de capital humano especializado em temáticas de RH. Embora a previsão de estruturas administrativas seja essencial para a estratégia de construção de um sistema meritocrático, a formação de servidores capazes de abordar o tema de forma específica é determinante para a elaboração de normatizações, operacionalizações e julgamentos que considerem as necessidades particulares de cada política pública.

  1. Revisão da governança de gestão de pessoas 

​​Em um sistema de mérito no serviço público, existem diversas funções que se complementam, podendo ser agrupadas em cinco tipos: consultivas, executivas, regulatórias, investigativas e adjudicativas. No Brasil, todas essas funções são geralmente exercidas de maneira concentrada pelas unidades de RH dentro dos órgãos públicos. No entanto, em outros países, como o Reino Unido e os Estados Unidos, essas funções são distribuídas entre diferentes órgãos, conferindo maior especialização e autonomia às atividades de gestão de pessoas.

O modelo britânico funciona a partir de duas grandes estruturas autônomas: a Civil Service Commission, responsável pelas funções reguladoras, investigativas e adjudicativas; e a Civil Service Human Resources, encarregada da função executiva. A autonomia desses órgãos permite maior distanciamento de decisões políticas e garante aos eleitos a segurança de uma estrutura especializada que atenda às suas necessidades.

No modelo americano, há descentralização entre diferentes agências responsáveis por cada uma das funções. Isso garante um controle mútuo entre elas e maior especialização em cada função. A Office for Personnel Management (OPM) trabalha com as funções regulatória, consultiva e executiva; o Merit System Protection Board (MSPB) atua nas funções consultivas e adjudicativas; o Office of Special Counsel (OSC), na função investigativa; e o Federal Labor Relations Authority (FLRA), na adjudicativa. Apesar da complexidade e do número considerável de agências, há grande especialização temática, garantindo que todos os temas possuam um olhar criterioso do governo e suporte direto aos gestores.​

Nesses modelos internacionais, alguns órgãos são responsáveis pela gestão executiva do dia a dia da gestão de pessoas, enquanto outros órgãos, mais autônomos, ficam encarregados de funções investigativas e adjudicativas. Essa estruturação possibilita maior liberdade para que os órgãos responsáveis possam investigar e tomar medidas corretivas em casos de decisões executivas ou regulatórias mal executadas ou que favoreçam interesses políticos em detrimento do mérito.

Não há uma resposta única sobre qual caminho o Brasil deve seguir em termos de estrutura. No entanto, fica evidente que o modelo atual de concentração de atribuição e pouca especialização das atividades não é efetivo na gestão de pessoas nos governos. Diante desse contexto, é relevante que o Brasil repense o desenho e a governança das estruturas de RH, visando à garantia de um sistema mais adequado de proteção do mérito no serviço público, inspirado pelos modelos britânico e americano. 

A criação de agências autônomas responsáveis por definir questões regulatórias de RH e por garantir que a gestão de pessoas no serviço público seja feita de maneira profissional é uma possibilidade. Além disso, a criação de outro órgão especialmente dedicado a investigar se os gestores estão utilizando sua flexibilidade de gestão do RH para tomar decisões que não beneficiam o mérito, e sim interesses políticos, também pode ser uma estratégia eficaz. Assim, o Brasil pode construir um sistema mais robusto e eficiente de proteção do mérito no serviço público com a finalidade de garantir um governo mais eficaz e transparente para a população.​

  1. Regras mais acessíveis e transparentes 

​A transparência e a acessibilidade das políticas de gestão de recursos humanos em administrações públicas são consequências diretas de sua estruturação. No contexto brasileiro, observa-se a presença de normativas legalistas, centralizadas em um único órgão e caracterizadas por um enfoque limitado no aspecto estratégico. Dessa maneira, os processos tendem a priorizar o cumprimento de requisitos legais em detrimento da qualidade dos serviços prestados.

Tal abordagem dificulta a compreensão por parte dos servidores públicos a respeito das normas necessárias para solicitar transferências, bem como dos critérios considerados na definição de promoções. Ademais, políticas de desenvolvimento profissional raramente levam em conta a realidade vivenciada pelos servidores e os desafios enfrentados no cotidiano laboral.

Para garantir um sistema meritocrático efetivo na gestão pública, é fundamental que os valores norteadores do sistema sejam claramente compartilhados e que a acessibilidade à informação sobre seu funcionamento seja garantida a todos os envolvidos. Portanto, torna-se imperativo revisar e simplificar as normas de recursos humanos no serviço público brasileiro, visando a maior consistência, clareza, objetividade e compreensibilidade, a fim de evitar abusos e tratamentos preferenciais e de promover o alinhamento entre a busca por aprimorar o desempenho no setor público e os mecanismos de avaliação e incentivo ao desempenho dos servidores.

Quadro-síntese

Dimensão a ser trabalhadaProblemas a serem evitadosExemplo de ação a ser implementada
Melhor controle da discricionariedadeDecisões sobre nomeações, transferências, promoções e desligamentos realizadas com base em critérios pessoais ou político-partidários.
Nomeação de dirigentes públicos com base em critérios exclusivamente políticos.
Melhor definição das atribuições e objetivos das unidades de gestão de pessoas.
Criação de descrição de cargos (com atribuições e competências) para posições de lideranças.
Revisão das normativas de RH, criando critérios claros e baseados nos perfis de cargo para instituir processos de transferência e remoção de servidores.
Profissionalização das funções de recursos humanosDecisões de RH tomadas  por profissionais sem aptidão ou competência para análise estratégica de gestão de pessoas. Elaboração de mecanismos de supervisão das políticas de RH (com ênfase na análise de impacto das políticas e não no cumprimento de ritos legais e burocráticos). 
Criação de canais específicos para a denúncia de decisões que contrariam os princípios de mérito, bem como a proteção de denunciantes. 
Revisão da governança de gestão de pessoas Concentração de atribuições  em unidades de gestão de pessoas, mesclando em um único órgão atribuições que demandam diferentes tipos de alinhamento entre política e administração. 
Pouco conhecimento sobre gestão estratégica de gestão de pessoas.
Redistribuição das competências de gestão de pessoas com maior independência para as funções de supervisão e monitoramento do resultado das políticas de RH.
Regras mais acessíveis e transparentesConcentração de poder em gestores ou servidores que conheçam meandros da legislação em gestão de pessoas. 
Uso de espaços não regulamentados na legislação para fins político-partidários ou pessoais.
Consolidação e simplificação das regras e normativas, evitando distorções e favorecimentos.Criação de guias de orientação acessíveis e transparentes.
Portal da Transparência de RH, simplificando informações como o perfil de cargo, o currículo e a remuneração de profissionais públicos.

Conclusão

​As informações obtidas durante a elaboração desta série de notas técnicas nos levam a concluir que a institucionalização de um sistema de proteção ao mérito, capaz de reduzir a arbitrariedade das decisões discricionárias em políticas de pessoal, passa necessariamente pelo fortalecimento dos chamados “constrangimentos procedimentais”. Esses elementos orientam as decisões do Poder Executivo em relação à gestão da função pública e consistem em um conjunto de normas formais e informais, além de procedimentos padronizados, que garantem a consideração do mérito na definição das políticas de recursos humanos. Esses constrangimentos se materializam por meio de processos gerenciais normatizados, pautados não apenas por leis, mas também pela prática administrativa.

Identificamos que, no contexto brasileiro, os constrangimentos procedimentais que precisam ser instituídos ou aprimorados com urgência envolvem as práticas de alocação de recursos humanos. Isso inclui a admissão e demissão de cargos de liderança nas áreas de ouvidoria, corregedoria e gestão de recursos humanos, assim como as práticas de movimentação vertical (promoção) ou horizontal (transferência física ou mudança de equipes). Além disso, é necessário aperfeiçoar os procedimentos de recebimento de denúncias e proteção de denunciantes em assuntos relacionados à gestão de pessoas — hoje sob responsabilidade das unidades de ouvidoria em cada órgão de governo. Também observamos a fragilidade das unidades de corregedoria, responsáveis por investigar e adjudicar decisões relacionadas ao eventual descumprimento de regras de gestão de recursos humanos.

Avaliamos que o aperfeiçoamento dos constrangimentos procedimentais nos casos mencionados pode ocorrer de diversas maneiras, como por meio da profissionalização dos mecanismos de seleção dos responsáveis pelas áreas de gestão de pessoas. Isso envolve a divulgação ampla de perfis de cargos objetivos (em vez de listas de atribuições) e a exigência de processos estruturados de seleção por competências (orientados por guias detalhados que promovam a integridade e a replicabilidade dos processos avaliativos). Outras medidas relacionam-se à criação de padrões mínimos para procedimentos sobre a movimentação vertical e horizontal de recursos humanos e da fundamentação de todas as decisões de gestão de pessoal em pareceres técnicos e gerenciais transparentes.

A existência desses constrangimentos procedimentais, traduzidos em instrumentos detalhados de regulação das políticas de pessoal, juntamente com a definição de uma autoridade responsável por supervisionar e garantir sua aplicação em todo o serviço público, são medidas que permitiriam ao governo brasileiro fortalecer de forma inédita o emergente sistema de proteção ao mérito em desenvolvimento no país. A implementação dessas medidas contribuiria para fortalecer uma doutrina transparente que nos permita avaliar as práticas de gestão de recursos humanos no setor público e julgar eventuais desvios de forma objetiva, superando o cenário atual de ausência virtual de critérios para analisar as políticas de pessoal. O cenário atual, como vimos, gera amplo espaço para abuso da discricionariedade que, nos últimos anos, tem se manifestado em repetidos episódios de arbitrariedade política.

Esta Nota Técnica foi escrita pelos pesquisadores do Instituto Igarapé Igor Novaes Lins e Renata Giannini a partir de relatórios e metodologia de análise elaborada pelos consultores Michael Cerqueira e Rafael Leite.

Michael Cerqueira — Mestrando em Administração Pública na Harvard Kennedy School, com bolsa integral pela Jorge Paulo Lemann Fellowship e pela Fundação Estudar. É graduado com bolsa de mérito em Administração Pública na Fundação Getulio Vargas (FGV), com intercâmbio acadêmico na Regent’s University London, e foi bolsista ISMART. Foi Diretor de Recursos Humanos da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do estado de São Paulo. Também atuou como Gerente Geral de Recursos Humanos e Seleções da Prefeitura de Caruaru. No Vetor Brasil, foi Gerente de Projetos, em 2019, e Líder de Relacionamento com Governos, entre 2015 e 2017. Participou de programas acadêmicos em Belo Horizonte, Brasília, Canoas, Bogotá e Medellín.

Rafael Leite — Especialista em reforma e modernização do Estado. É graduado em Administração Pública pela FGV, com intercâmbio acadêmico na Pontifícia Universidade Católica do Chile. É pesquisador associado ao think tank sul-africano New South Institute. Foi consultor da Fundação Lemann, líder de Relações Institucionais do Vetor Brasil, Coordenador de Projetos na Comunitas e Consultor em Gestão Pública do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Teve experiência de trabalho na Direção Nacional de Serviço Civil, do governo do Chile, e na Controladoria Geral do Município da Prefeitura de São Paulo. Também desenvolveu projetos de pesquisa acadêmica, no Centro de Estudos em Administração Pública e Governo/GVceapg e no Laboratório de Gestão e Políticas Públicas/GPPlab.

A nota é de responsabilidade dos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais eles estão vinculados.

Instituto Igarapé


O Instituto Igarapé é um think and do tank independente focado nas áreas de segurança pública, climática e digital e suas consequências para a democracia. Seu objetivo é propor soluções e parcerias para desafios globais por meio de pesquisas, novas tecnologias, comunicação e influência em políticas públicas.

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