Por Renata Bernardo

Em 5 de novembro de 2015, a barragem de Fundão, da Samarco – controlada por BHP Billiton e Vale -, em Mariana (MG), se rompeu. Pouco mais de três anos depois, em 25 de janeiro de 2019, testemunhamos outro rompimento de grande proporção, desta vez da barragem da mina do Córrego Feijão, da Vale S.A., em Brumadinho (MG). Os jornais foram uníssonos ao noticiar a repetição de uma tragédia e ao questionar: será que não aprendemos nada com a história?

A resposta é complexa e envolve diferentes aspectos do problema, que vão desde as fragilidades da legislação vigente e dos processos de fiscalização, até o modelo ávido e irresponsável da atividade minerária no Brasil. Diante do ocorrido em Brumadinho, ficou evidenciado que as medidas preventivas adotadas após o primeiro desastre não foram suficientes para evitar o segundo. Contudo, a análise comparada dos casos nos revela importantes aprendizados nos processos de responsabilização das empresas poluidoras, o que, em última instância, pode desincentivar as empresas a incorrerem em novos danos. 

O rompimento de Fundão provocou, além de 19 mortes, o carreamento de 56 milhões de metros cúbicos de rejeitos no Rio Doce, que passaram por 35 municípios de Minas Gerais e quatro municípios do Espírito Santo, até desaguar no mar. Para garantir a reparação, foi firmado um Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) entre nove instituições – representando a União e os dois estados atingidos – e as empresas responsáveis, que criou a Fundação Renova, para que esta executasse as medidas de reparação. Foram destinados R$ 4 bilhões para a compensação socioeconômica e socioambiental, sendo que o valor correspondente às demais ações de reparação seria estabelecido a partir de estudos e perícias, que permitissem a comprovação do nexo de causalidade entre os danos e o rompimento, a serem realizados pela própria Renova. Também foi instituído o Comitê Interfederativo (CIF), instância de governança composta pelas instituições públicas signatárias, organizada em dezenas de câmaras técnicas temáticas – com integrantes do poder público e da sociedade civil -, para emissão de parecer prévio para subsidiar as deliberações do Comitê. 

Após seis anos do TTAC, o diagnóstico é de que sua execução tem sido insatisfatória, fato publicamente reconhecido até mesmo pelas empresas responsáveis. A complexa estrutura instituída tem se mostrado disfuncional e, segundo dados da própria Renova – questionados pelo poder público – estima-se que até hoje apenas 8% do recurso compensatório foi efetivamente executado, e que a taxa média de execução dos programas não passa de 46%. Um dos problemas identificados é o formato disfuncional de participação social que foi construído – engendrado no interior de instâncias técnicas, pouco objetivas ou propositivas – o que não garante o efetivo envolvimento da população atingida nas discussões, e ainda obstaculariza e traz lentidão ao início efetivo de ações reparatórias. A situação torna-se ainda mais dramática porque, mesmo nos casos em que se chega a uma deliberação, a Renova – que tem conselhos e instâncias decisórias capitaneadas pelas empresas poluidoras – vem descumprindo-as reiteradamente. Como consequência, boa parte do processo de reparação está judicializado e aspectos importantes da reparação estão paralisados. Sete anos depois do rompimento, a efetividade é tão baixa que o acordo que deveria garantir a reparação está sendo renegociado pelas partes.

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Reparação integral de danos

Reparação integral de danos

Diante desse cenário, quando da construção do acordo de reparação de Brumadinho, já existia uma avaliação, ainda que menos precisa do que a de hoje, de que a efetiva responsabilização da empresa poluidora demandaria a alteração substancial das premissas até então adotadas. Seria necessário construir um arranjo mais rigoroso e, claro, que contasse com mecanismos de fiscalização para verificação de descumprimento e aplicação de penalidades.

O desastre em Brumadinho causou 272 mortes e provocou o derramamento de cerca de 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos no Rio Paraopeba, que percorreram 250 quilômetros ao longo da calha do Rio Paraopeba, deixando um rastro de destruição em 26 municípios mineiros. Dada a magnitude do evento, era sabido que muitos danos só seriam efetivamente identificados a longo prazo. Portanto, para garantir a celeridade da reparação integral, evitando-se longas batalhas judiciais, o Governo do Estado (EMG), Ministério Público (MPMG) e Defensoria Pública (DPMG), juntamente com o Ministério Público Federal (MPF), pediram a condenação imediata da Vale para reparação dos danos já conhecidos.

Nesse contexto, com mediação do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), foi celebrado, em 04 de fevereiro de 2021, um acordo entre as instituições compromitentes[1] – EMG, MPMG, DPMG e MPF – e a compromissária Vale. Com valor global de R$ 37,68 bilhões, o instrumento definiu de antemão as obrigações de fazer e de pagar da empresa visando à reparação integral dos danos e prejuízos do rompimento. 

Para evitar infindáveis discussões sobre o nexo de causalidade e reduzir a possibilidade de litígios futuros, o acordo já definiu os valores e os programas para reparação dos danos socioeconômicos difusos e coletivos. Foram excetuados os direitos individuais, de modo que os pedidos de indenização em andamento ou futuros não ficariam inviabilizados pelo acordo. A partir de diagnósticos elaborados pelo próprio poder público, demonstrou-se que, devido ao aumento da demanda, era necessário garantir o fortalecimento da provisão de políticas públicas de forma ampla, atendendo a toda a coletividade, sem a necessidade de comprovação de dano individual, perícias ou cadastros prévios. 

No caso dos danos socioambientais, foi fixada a responsabilidade da empresa por custear, sem limite pecuniário, todos os projetos, ações e obras necessários ao atingimento de indicadores de recuperação ambiental definidos pelo poder público. Para os danos irrecuperáveis já conhecidos, foram definidos valores e medidas específicas de compensação. Dessa forma, foi possível já delimitar as obrigações em relação ao que se conhecia, registrando que, na hipótese de identificação de danos supervenientes, estes seriam incorporados.

Para todas as medidas foi definida a forma de execução. Há ações que serão executadas diretamente pela Vale, que será fiscalizada por auditorias externas independentes e acompanhada pelos órgãos públicos competentes, de modo que a empresa só receberá a quitação das obrigações após manifestação favorável dos compromitentes. Também foram definidos os valores a serem destinados ao poder público, para finalidades determinadas pelo próprio acordo, com especificação dos prazos e previsão de multa por atraso. 

Em relação à governança, adotou-se um modelo simplificado, contando com uma única instância decisória, composta pelas instituições compromitentes. Os espaços de participação social ampliada foram delimitados com objetividade, distinguindo-os do processo de decisão técnica. Por exemplo, o acordo destina o montante de R$ 3 bilhões para que as pessoas atingidas definam projetos desde a formulação até a avaliação. Também foi prevista uma consulta popular para indicação de áreas prioritárias que visem ao fortalecimento do serviço público em cada município atingido, com investimentos totais de R$ 4 bilhões. Também foram previstos mecanismos de controle social e monitoramento das ações, com a construção de um portal com conteúdo diverso e atualizado sobre a sua execução, além da disponibilização de painéis gerenciais pelas auditorias externas independentes que se reportam ao poder público.

Pouco mais de um ano após a celebração do acordo, sabe-se que ainda é cedo para uma avaliação mais profunda dos limites e potencialidades do instrumento. Contudo, a experiência tem mostrado que o arranjo proposto garante celeridade e efetividade ao processo de reparação. Até o momento, cerca de R$ 18 bilhões já foram pagos ao poder público, em cumprimento ao cronograma de desembolsos. Cerca de 100 mil pessoas já estão recebendo o valor do Programa de Transferência de Renda. Em todos os municípios atingidos há, pelo menos, nove projetos e obras em andamento nas áreas de saúde, assistência social e agricultura. E a Vale já está detalhando cerca de 120 projetos, definidos em observância à priorização da população atingida, com previsão de início de execução no segundo semestre de 2022.

Sabe-se que a mera existência de um acordo judicial, por melhor que seja, não garante a reparação integral. Mas o caso apresentado demonstra que a construção de um instrumento, à luz de um modelo anterior considerado insuficiente, criou bases para o estabelecimento de premissas mais efetivas para o caso seguinte. Inclusive, já é possível perceber que a mesma lógica de aprendizado tem se aplicado à repactuação do acordo de Mariana, em que vêm sendo incorporadas melhorias decorrentes de revisões críticas do acordo de Brumadinho. Portanto, ainda que se reconheça que há medidas preventivas que, de fato, precisam ser aprimoradas e implementadas, também argumenta-se que é necessário mais rigor e efetividade na imposição de medidas às empresas poluidoras como forma de desincentivar a repetição de tragédias e garantir a efetiva reparação dos danos causados. 

[1] O que ou quem recebe o compromisso.

Esta nota é de responsabilidade dos respectivos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais os autores estão vinculados.

Renata Bernardo
Mestre em Políticas Públicas e Administração pela London School of Economics (2009), graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (2007) e em Administração Pública pela Fundação João Pinheiro (2005). Desde 2005 integra a carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do Estado de Minas Gerais. Há dois anos atua como Coordenadora Adjunta do Comitê Gestor Pró-Brumadinho, vinculado à Secretaria de Planejamento e Gestão, para coordenar e supervisionar o planejamento e a implementação do Acordo Judicial de Reparação do desastre de Brumadinho.

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