No cardápio de sanções do sistema jurídico, há um conjunto de medidas que não se aplica à generalidade da população, mas apenas às pessoas que possuem um especial vínculo com o Estado: os servidores públicos civis e militares. São as chamadas sanções administrativas disciplinares, que podem ser aplicadas pelo Estado a seus agentes nos casos previstos em lei, mediante prévia instauração de processo administrativo disciplinar, o famoso PAD. Tais sanções se dão pelo cometimento de alguma infração de natureza funcional ou que, sendo comportamento de sua vida privada, desqualifique pessoalmente o servidor ou até prejudique a credibilidade do órgão público com o qual tem vínculo. 

O panorama sobre as possibilidades de responsabilização administrativa pelos eventos de 8 de janeiro só fica completo ao se levar em conta reflexões realizadas a partir desse ângulo do Direito. É que, conforme amplamente noticiado pela imprensa, agentes públicos de diferentes esferas federativas também acabaram se conectando ao movimento golpista — seja integrando a turba, seja assumindo postura inadequada no exercício de suas funções. 

Para qualificar os fatos e relacioná-los aos deveres dos agentes públicos, há algumas complicações, pois, além de as regras serem distintas para agentes civis e militares, as normas que regulam deveres funcionais, infrações e sanções dos servidores públicos civis são próprias de cada ente federativo. Portanto, não apenas o Estatuto dos Servidores Públicos da União deve ser consultado, mas também as leis municipais e estaduais sobre o tema. 

As determinações são ainda mais fragmentadas devido à existência não apenas de dezenas de leis gerais, mas também leis específicas das esferas federativas para carreiras específicas, como é o caso do Estatuto do Magistério Paulista e do Estatuto da Polícia Civil de São Paulo. 

Para qualificar os fatos e relacioná-los aos deveres dos agentes públicos, há algumas complicações, pois, além de as regras serem distintas para agentes civis e militares, as normas que regulam deveres funcionais, infrações e sanções dos servidores públicos civis são próprias de cada ente federativo. Portanto, não apenas o Estatuto dos Servidores Públicos da União deve ser consultado, mas também as leis municipais e estaduais sobre o tema. 

No que tange à responsabilização administrativa de agentes públicos, há ao menos quatro cenários distintos.

O primeiro é o do agente público de carreira, concursado, que, por dever de ofício, estava presente nos atos do dia 8 de janeiro e que, por ação ou omissão, acabou ajudando a criar as condições necessárias para que o caos viesse a se instalar e o patrimônio público fosse depredado. Nesse cenário, encaixam-se policiais militares do Distrito Federal (DF) que tenham deixado de adotar medidas normais para evitar que o movimento tomasse corpo e descambasse para vandalismo. Ao se comportarem dessa maneira, os agentes parecem ter aceitado o risco da desordem absoluta — que é o que se espera de multidões iradas. 

Leis que tratam dos servidores públicos civis costumam prever a demissão para casos de ação ou omissão que resultem na “dilapidação do patrimônio nacional”. Contudo, no caso dos policiais militares do DF, será preciso examinar o que diz seu próprio regulamento disciplinar para identificar os específicos deveres a que estavam sujeitos e as possíveis infrações e sanções aplicáveis. O rol envolve advertência, detenção de até dez dias, prisão disciplinar, licenciamento e exclusão “a bem da disciplina”.

Podem ser inseridos neste primeiro cenário os integrantes das Forças Armadas — Marinha, Exército e Aeronáutica — que estavam no exercício da função nos atos de 8 de janeiro. As sanções aplicáveis são as mesmas da polícia militar do DF. 

O segundo cenário é o do agente público de carreira concursado que, fora do expediente, decidiu se juntar à multidão. É o caso, por exemplo, do professor de uma universidade pública estadual que foi a Brasília se integrar ao movimento violento. Deixando de lado a fragmentação da legislação, pode-se dizer que, em geral, as normas não qualificam como aceitável esse tipo de comportamento. Usa-se até uma expressão de outrora quando fixam que a demissão poderá ser aplicada a casos de imoderação e falta de controle em atos e palavras mesmo em situações fora do exercício do cargo: a chamada “incontinência pública”.

Evidentemente, em ambos os cenários, a aplicação de sanção depende de processo administrativo especialmente aberto para o fim de apurar a individualização da responsabilidade, levando-se em conta “a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para o serviço público, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes funcionais”.

O terceiro cenário é o do agente público ocupante de cargo em comissão, não concursado. Nesse caso, a análise é mais fácil porque, sendo ocupante de cargo cuja exoneração é livre, basta o superior hierárquico avaliar a incompatibilidade do comportamento do agente. Independentemente de ele estar ou não no exercício de sua função na data dos atos, sua conduta inadequada pode ser suficiente para a destituição da função comissionada.

Por fim, o quarto cenário é o do agente público aposentado que decidiu se conectar ao movimento golpista. Seria possível a cassação da sua aposentadoria como uma espécie de sanção por ter participado dos atos de 8 de janeiro? Os estatutos dos servidores apresentam a pena de cassação de aposentadoria ou sua disponibilidade no rol das penalidades disciplinares, e o STJ (Superior Tribunal de Justiça) recentemente confirmou sua constitucionalidade e legalidade, apesar do caráter contributivo do regime previdenciário. Entretanto, tradicionalmente, essa pena está relacionada a infrações cometidas durante o exercício da função pública.

Os agentes públicos que se ligaram ao 8 de janeiro podem ser de diferentes entes da federação e podem estar sujeitos a diferentes deveres e sanções disciplinares. O ponto em comum é o de que, por ação ou omissão, colaboraram com movimento golpista que causou inegável lesão ao patrimônio público nacional. Seria, portanto, uma atuação pertinente dos tribunais de contas monitorar os esforços do Poder Executivo no sentido de apurar e punir os agentes públicos responsáveis.

Esta nota é de responsabilidade dos respectivos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais os autores estão vinculados.

Vera Monteiro

Professora de direito administrativo da FGV Direito SP e da Sociedade Brasileira de Direito Público. Doutora pela USP e mestre pela PUC/SP. Lemann Visiting Fellow na Blavatnik School of Government (Oxford, UK). Integra o Movimento Pessoas à Frente e o conselho do Republica.org.

André Rosilho

Professor da FGV Direito SP. Coordenador do Observatório do TCU da FGV Direito SP + Sociedade Brasileira de Direito Público. Doutor pela Faculdade de Direito da USP. Mestre pela Escola de Direito da FGV Direito SP.

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