Certamente, você já ouviu falar em Direito Civil, Penal, Tributário, Ambiental, Trabalhista, entre outras tantas áreas do Direito, mas é menos provável que já tenha ouvido falar em Direito Aeroportuário, ainda que o setor tenha ligação com várias atividades do cotidiano de todos nós. A área é responsável por regular procedimentos para viagens de avião, despacho de mercadorias em empresas de transporte aéreo e até visitas a aeroportos, entre outros. As normas que regulam o funcionamento dos aeroportos e que abordam as questões relacionadas à segurança da aviação civil são tantas que, em outros países, o reconhecimento da área Airport Law (Direito Aeroportuário) já é uma realidade. 

O Direito Aeroportuário tem aspectos que passam pelo Direito Internacional, Administrativo, Penal e até Direito do Consumidor, dentre outros. Alguns profissionais do meio jurídico, por desconhecimento da matéria, acreditam que são apenas as normas do Direito do Consumidor que regulam por completo a relação entre viajante e companhia aérea, por exemplo, quando, na verdade, o assunto não é tão restrito. A área é extensa e dispõe de normas que tratam de variados assuntos. Neste artigo, vamos nos ater a episódios mais comuns no cotidiano das pessoas, como os que envolvem atritos entre passageiros e tripulação de voos comerciais.

A relação entre passageiros e companhias aéreas

Recentemente, a imprensa relatou o caso de uma passageira que teve problemas com a tripulação de um voo ao embarcar, pois, embora estivesse portando uma mochila de tamanho comum, foi obrigada a sair da aeronave por ordem do comandante. No mesmo período, duas famílias entraram em luta corporal no interior de uma aeronave e foram desembarcadas compulsoriamente.

Em outra ocasião, um passageiro foi desembarcado por se recusar a ocupar assento que estava marcado em seu bilhete sob a alegação de que estaria sujo. São incontáveis as ocorrências e todas elas têm algo em comum: são situações que aconteceram no ambiente aeroportuário, dentro de aeronaves comerciais, e que são disciplinadas por normas que reproduzem regras internacionais. A maior parte dessas regras, inclusive, já é matéria disciplinada em lei, e nem sempre o que vale para a realidade em ambiente externo aos aeroportos se aplica quando adaptamos ao contexto do ambiente aeroportuário.

O motivo é um só: segurança! 

Safety vs. security

Segurança é um termo que, na língua inglesa, pode ser traduzido como safety e também como security. Contudo, tanto para a aviação civil quanto para o setor aeroportuário, os termos não possuem o mesmo significado. A palavra safety é utilizada em referência às questões de segurança que não envolvem a intenção humana de causar dano, como um problema que afeta o trem de pouso de uma aeronave, por exemplo. Já o termo security envolve a ação intencional, como uma bomba no interior da mala de um terrorista.

Para que seja possível compreender a razão da existência de certas normas, é necessário fazermos essas distinções e ainda um breve apanhado histórico.

A segurança pós-11 de setembro

Quem viaja de avião há muitos anos já deve ter percebido as mudanças havidas em relação à segurança no decorrer do tempo, sobretudo após o ataque às Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001. 

O transporte aéreo é o meio mais utilizado nas viagens de longa distância em razão de sua rapidez e confiabilidade. À medida que as viagens aéreas foram despertando o interesse das pessoas ao redor do mundo, se tornaram parte da estratégia de grupos terroristas, que buscavam formas de atrair a atenção imediata da população mundial de maneira trágica e espetaculosa, de modo que esse meio de transporte passou a ser atrativo a ataques e interferências ilícitas.

Diante dessa realidade, em 1947, as Nações Unidas criaram uma agência destinada a coibir essas práticas e a promover a segurança da aviação civil ao redor do mundo. Foi assim que surgiu a Organização de Aviação Civil Internacional (OACI), da qual vem a maior parte dos regulamentos relacionados à segurança da aviação civil. O Brasil é um dos fundadores da organização e, por isso, ocupa uma importante posição no grupo I da instituição, ao lado de outros dez países. Assim, dispõe de grande influência nas decisões da OACI, que hoje conta com a participação de 193 nações. Esses países procuram adaptar suas legislações aos padrões e práticas estabelecidos pela organização a fim de tornar a aviação mundial mais segura e livre de interferências ilícitas. 

Em sintonia com as disposições emanadas pela rganização de Aviação Civil Internacional (OACI) e validadas no ordenamento jurídico brasileiro, o interesse público em garantir um transporte aéreo seguro e confiável tem precedência sobre certos direitos individuais.

Em sintonia com as disposições emanadas pela OACI e validadas no ordenamento jurídico brasileiro, o interesse público em garantir um transporte aéreo seguro e confiável tem precedência sobre certos direitos individuais. Um exemplo disso é a questão do porte de arma de fogo. O detentor de porte de arma de fogo não tem, em geral, autorização para portá-la a bordo de um avião comercial.  O risco de um eventual disparo acidental em voo é entendido como suficiente para limitar a presença de armas em aeronaves civis.

Quando falamos em viagens aéreas, partimos do pressuposto de que o deslocamento do ponto A ao B ocorrerá sem intercorrências, e é para isso que existe toda uma estrutura que trabalha ininterruptamente, tanto do ponto de vista de safety, quanto de security, com procedimentos para que, em caso de algum acontecimento incidental, os transtornos sejam mínimos. Com relação a esses procedimentos, é fundamental ressaltar a importância das atribuições do comandante, sem prejuízo do reconhecimento da importância das atividades exercidas pelos demais membros da tripulação.

As atribuições do comandante estão elencadas nos artigos 166 a 173 do Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986)1, e, dentre elas, merece destaque aquela que estabelece a sua autoridade sobre as pessoas e as coisas que se encontrem na aeronave, podendo, inclusive, desembarcar qualquer passageiro que possa comprometer a boa ordem e a disciplina, ou que ponha em risco a segurança da aeronave ou das pessoas e dos bens a bordo. 

No comando dos céus: autoridade e responsabilidade

Segundo a lei, o comandante representa a companhia aérea desde o momento em que recebe a aeronave até o momento da sua entrega. Isso significa que ele é a autoridade máxima a bordo e que as suas determinações deverão ser obedecidas. Para se ter uma ideia, ainda que o dono da companhia aérea esteja no voo, a autoridade continua sendo do comandante. Para fazer valer tal competência – atribuída por lei para garantir a segurança do voo –, ele poderá requisitar o apoio da Polícia Federal, que possui a responsabilidade constitucional de desempenhar as atividades de polícia aeroportuária, atribuição também prevista no Programa Nacional de Segurança da Aviação Civil contra Atos de Interferência Ilícita, o PNAVSEC (Decreto nº 11.195, de 11 de setembro de 2022)2.

Obviamente, o desembarque compulsório de um passageiro é uma medida extrema, que requer do comandante a responsabilidade e consciência de que tal expediente é realmente necessário. Não estariam sob a salvaguarda legal as ações pautadas em outras razões que não fossem a segurança do voo. De outro modo, estaria sendo permitido o cometimento de abuso de poder. Quanto aos passageiros, estes possuem direitos, mas também obrigações, como a de acatar as determinações da tripulação, conforme estatui o art. 232 do Código Brasileiro de Aeronáutica. Na verdade, todos desempenham papéis importantes na segurança do voo.

Regras a bordo

Voltemos agora para aquele momento em que foi dito que as viagens aéreas partem do pressuposto de que o deslocamento do ponto A ao ponto B ocorrerá sem intercorrências. Caso aconteça fato que mereça alguma ação da tripulação, e não estamos falando necessariamente em relação a um ato de interferência ilícita, mas em relação a qualquer situação não prevista, como a necessidade de um pouso de emergência, por exemplo, os passageiros devem se portar segundo o que for determinado pelos tripulantes.

A obediência é primordial para que o incidente seja solucionado da melhor forma, como numa orquestra em que cada músico tem o seu papel: em um voo também é assim, e o comandante precisa estar seguro de que todos estão cientes e dispostos a agir de acordo com o que a tripulação determinar. Um passageiro que se porta de forma indisciplinada com relação a situações aparentemente sem relevância deixa transparecer uma postura de insubordinação, evidenciando que não seguirá as orientações dos tripulantes facilmente e que tende a impor o seu próprio entendimento em situações em que não lhe compete decidir.

Esse comportamento pode ser interpretado como um risco à segurança do voo, e quem fará esse juízo de valor, conforme determinam as normas, será o comandante, que, se entender necessário, determinará o desembarque compulsório do passageiro, podendo acionar a Polícia Federal para tanto. Quando esse tipo de situação acontece, o passageiro obrigatoriamente deverá deixar a aeronave. Caso haja recusa, os policiais empregarão as medidas necessárias para efetuar a sua retirada, ainda que seja com o uso da força.

A equipe policial não tem a prerrogativa de definir se a pessoa a ser retirada oferece risco ao voo, pois essa prerrogativa é exclusiva do comandante. Ainda que, na imensa maioria das vezes, a tripulação atue amparada pela lei e proceda em obediência à legislação, sem praticar abuso de poder, exceções podem existir, e é inegável a posição de fragilidade que o passageiro ocupa em um eventual embate. Vale ressaltar que isso não acontece somente no Brasil, mas no mundo inteiro. A bem da verdade, não seria razoável existir uma autoridade superior à do comandante quando o assunto envolve a segurança da aeronave que ele pilota. De todo modo, a situação poderá ser analisada e julgada posteriormente nos tribunais, instância onde as responsabilidades serão apuradas. Entretanto, quando a situação ocorre, no calor do momento, não haverá a figura imparcial de nenhum juiz para dirimir a questão.  

Passageiros indisciplinados: impacto e implicações

Normalmente, quando é determinado o desembarque de um passageiro por indisciplina, se não houver crime relacionado, o passageiro é escoltado para fora da aeronave e levado para fora da área restrita de segurança – que só é acessada após passagem por inspeção em pórtico detector de metais.  A partir desse momento, o passageiro poderá procurar o balcão da companhia aérea e tratar de sua acomodação em outro voo. Caso a polícia entenda que houve crime – de desobediência à equipe policial, resistência ou exposição da aeronave a perigo – ou que tenha sido praticado ato que impediu ou dificultou a navegação aérea, poderão ser lavrados os autos correspondentes e instaurado inquérito policial.

Desde o ano passado, com a edição da Lei nº 14.368, de 14 de junho de 20223, o viajante considerado indisciplinado ainda estará sujeito a medidas punitivas que não se resumem ao seu desembarque. A depender da gravidade do ato, o prestador de serviços aéreos poderá deixar de vender, por até 12 (doze) meses, bilhete a passageiro que tenha praticado ato de indisciplina: a nova lei permite também que os seus dados de identificação sejam compartilhados pelo prestador de serviços aéreos com seus congêneres. No momento, a lei aguarda regulamentação da ANAC – Agência Nacional de Aviação Civil, que irá estabelecer os critérios para mensurar a gravidade da conduta e os procedimentos que serão adotados na aplicação das punições. 

A exploração do serviço de transporte aéreo regular de passageiros é delegada à iniciativa privada mediante concessão, e é certo que, entre os deveres dos usuários do serviço, está o de cumprir todas as disposições regulamentares. Contudo, por se tratar de concessão de serviço público, o dispositivo legal que autoriza o bloqueio da oferta do serviço a um usuário específico, ainda que temporariamente, deverá estar cercado de todos os cuidados para que arbitrariedades não sejam cometidas.

A questão do passageiro indisciplinado vem ganhando bastante importância nos últimos anos. Todos esperam fazer viagens tranquilas, e o estresse causado por atos de indisciplina a bordo causam transtornos e atrasos que prejudicam a todos, gerando prejuízos que, muitas vezes, afetam até o funcionamento da malha aérea. O atraso de um voo provocado por um passageiro indisciplinado pode ocasionar atrasos em cadeia, já que os aeroportos e os voos fazem parte de um sistema engendrado para atuar em sincronia com os demais. A informação evita transtornos que muitas vezes podem ser superados com bom senso e atitudes racionais nas tomadas de decisão.

O conhecimento sobre como se desenrolam as questões inerentes ao Direito Aeroportuário certamente auxiliará na redução da frequência dos conflitos a bordo das aeronaves, situações que quase sempre podem ser resolvidas com entendimento e harmonia.

Referências Bibliográficas

1 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7565compilado.htm. Acesso em 13 agosto 2023.
2 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/decreto/d11195.htm. Acesso em 13 agosto 2023.
3 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/L14368.htm. Acesso em 13 agosto 2023.

A nota é de responsabilidade da autora e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais ela está vinculada.

Vanessa Maria de Paula Pessoa Rezende

Com 27 anos de experiência como Agente da Polícia Federal, é formada em Direito pela Universidade Federal do Ceará, especializada em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e mestranda em Governança e Desenvolvimento na Enap. Atuou como Oficial de Ligação da Polícia Federal no Departamento de Segurança Interna (HSI, na sigla em inglês) do Serviço de Imigração e Controle de Aduanas dos Estados Unidos (ICE) e ministrou aulas nos cursos de formação profissional da renomada Academia Nacional de Polícia (ANP), na área de polícia aeroportuária.

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