Na semana da Consciência Negra, a República.org lança conteúdos exclusivos para o especial “Onde estão os negros no serviço público?” — a médica e servidora pública Adriana Leal é a primeira convidada de uma série de entrevistas
Por Danilo Casaletti
A médica pediatra Adriana Leal Luciano da Silva (foto) lembra bem do dia em que uma criança negra entrou em seu consultório e pediu para tirar uma foto com ela. Chefe da Clínica de Pediatria da Policlínica Naval Nossa Senhora da Glória, unidade de atendimento de saúde secundária do Sistema de Saúde da Marinha (SSM), Adriana sabe o peso de, infelizmente, ainda ser exceção – e exemplo – em um país de maioria negra e feminina.
Aos 41 anos, a médica, formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, e na Marinha desde 2007, quer divulgar e fortalecer dentro da instituição da qual faz parte a Política de Saúde Integral da População Negra, criada em maio de 2009 para o SUS (Sistema Único de Saúde) e que ainda hoje enfrenta desafios em sua consolidação.
Entre as diretrizes dessa política, está a atenção para doenças que afetam diretamente a população negra, como saúde capilar, hipertensão, diabetes mellitus tipo 2, doença falciforme, depressão, suicídio, além do combate ao racismo institucional.
A ideia de Adriana é promover palestras e debates para os profissionais de saúde dentro da policlínica em que trabalha. A experiência seria um modelo que poderia ser ampliado para outras unidades de saúde da Marinha, não só no Rio de Janeiro, mas também pelo Brasil.
“Todos os profissionais precisam ter esse conhecimento para poder exercer a medicina da melhor maneira. Eu, como profissional negra, preciso conhecer as especificidades dos brancos, dos negros e dos indígenas. Essa é a formação ampla e ideal para um profissional de saúde”, diz.
Adriana apresentou seu projeto na primeira turma do Programa Ubuntu, iniciativa do Vetor Brasil, apoiada pela República.org, voltada aos profissionais pretos e pardos que atuam no setor público.
No Brasil, há a falsa sensação de igualdade racial. Diante disso, como o racismo pode afetar o atendimento médico de um paciente negro que procura uma unidade de saúde?
Infelizmente, até hoje não há, no Brasil, uma representatividade de profissionais de saúde negros. Quando há um médico, um enfermeiro ou um nutricionista negro, ele consegue ter um olhar mais específico para algumas questões e doenças que acometem mais ou que tenham um curso diferente na população negra, sobretudo de saúde mental. Outro ponto é que o negro, muitas vezes, não se sente compreendido adequadamente quando é atendido por um profissional não negro, que não tem a mesma experiências ou vivências com problemas relacionados ao racismo. Pode ser até mesmo casos mais simples, como, por exemplo, o de uma mulher que foi a um salão de beleza e usou determinado tipo de produto ou uma dermatologista que não soube indicar o melhor tratamento ou diagnóstico para a raça negra.
A falta de representatividade de negros na área da saúde implica em oportunidades. A senhora é uma mulher, negra, que se formou em Medicina e chefia uma policlínica da Marinha. Ou seja, a senhora é uma exceção, infelizmente, mesmo em um país de maioria negra, não?
Com certeza. Mesmo na Marinha na qual o acesso, teoricamente, é mais democrático pelo o ingresso ser via concurso público, não há uma distribuição igual. Nas Forças Armadas, os negros estão nos postos mais baixos, como cabo e sargento. Quando o nível de escolaridade exigido aumenta, a presença do negro diminui. Na Medicina é a mesma coisa. Com as cotas, esse cenário começou a mudar. Há pessoas negras cursando medicina, enfermagem ou fisioterapia. Porém, mesmo assim, ainda está muito abaixo do ideal.
A senhora chama atenção para a Política de Saúde Integral da População Negra. Em linhas gerais, no que ela consiste?
Essa política foi criada justamente para trazer esse olhar para as especificidades da população negra na saúde. Não apenas em questões de doenças mais frequentes, mas também para diminuir a dificuldade de acesso a tratamentos. Essa política é nacional, já existe há alguns anos. Entretanto, ela ainda não é tão disseminada. Na maioria das universidades, muitos alunos se formam sem conhecê-la, pois ela não é abordada nas aulas.
E seria essencial que os médicos tomassem contato com ela, não?
Sim, todos os profissionais precisam ter esse conhecimento para poder exercer a medicina da melhor maneira. Eu, como profissional negra, preciso conhecer as especificidades dos brancos, dos negros e dos indígenas. Essa é a formação ampla e ideal para um profissional de saúde.
Em seu projeto, a senhora, como pediatra, destaca a infância. Qual a importância da abordagem correta, dentro das questões relacionadas à população negra já nos primeiros anos de vida?
Com a minha experiência, tenho a oportunidade de acompanhar o desenvolvimento de inúmeros pacientes. Percebo muitas questões de saúde física e mental que, quando conseguimos intervir desde cedo, é possível mudar o curso da trajetória desses pacientes. Conseguimos que eles sejam estudantes e adultos melhores, com menos dificuldades. Há crianças que desde muito novas estão expostas ao racismo estrutural e será na adolescência ou na fase adulta que ocorrerão eventos consequentes dessa exposição.
Um pediatra consegue perceber, por exemplo, quando a criança é vítima de racismo? Ele deve estar atento a isso?
Sim. Já atendi algumas crianças com essa queixa. Elas apresentam aspectos semelhantes às que sofrem bullying. Elas ficam mais retraídas, têm menos vontade de estudar, de ir à escola. Elas não querem mais parecer com os pais ou parentes, com a raça. Certa vez atendi um menino que usava um cabelo um pouco maior e a mãe quis fazer um tipo de dread. Ele adorou, mas foi hostilizado na escola. Ele voltou para casa querendo tirar tudo, alisar o cabelo. Isso demora para ser revertido. A abordagem em um caso desses é muito delicada. É preciso trabalhar a autoestima dessa criança. Por isso, o olhar diferenciado é essencial para identificar esse tipo de situação. Um profissional negro faz diferença nesse momento. Já teve criança que pediu para tirar foto comigo no consultório. Ela se identificou ao ser uma médica negra, viu que é possível chegar lá.
O seu projeto é voltado para o ambiente da Marinha. Acredito que a organização reproduza o que acontece na sociedade civil. É isso?
Sim. É um dos locais onde podemos disseminar essa política. Dentro da Marinha, temos os programas de saúde, que são semelhantes aos praticados no SUS. Nela, assim como no SUS, existe ainda essa ideia de democracia racial. Até por estarem todos uniformizados. Mas falta essa visão de individualização. A visão é sempre a padrão, de uma saúde europeia ou americana que não se encaixa para todos. Ainda falta entender melhor a questão de cada raça. Eu trabalho com a questão da raça negra, mas é preciso conhecer também a indígena, já que as Forças Armadas efetuam muitas operações em territórios indígenas.
Como que a Marinha recebeu esse projeto? Ele expõe um pouco essa questão dentro da instituição.
O projeto é fazer uma série de palestras. Elas devem ocorrer no início do próximo ano. Mas não houve imposições. É uma política já implementada em âmbito federal. Não se trata de uma questão polêmica, e sim de disseminar conhecimentos na área da saúde.
Como a população pode estar atenta nessa política de saúde quando for procurar um atendimento médico?
Quando conscientizarmos mais os profissionais de saúde, essa questão vai chegar também aos pacientes. Eles vão sentir a diferença no atendimento. É preciso divulgar. Eu costumo postar bastante sobre o assunto e as pessoas ficam surpresas, pois desconhecem a existência da Política de Saúde Integral da População Negra. É preciso conhecer até para cobrar que ela seja respeitada.
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Danilo Casaletti, paulistano, é jornalista e gestor cultural. Já atuou ou colaborou para os jornais Valor Econômico e O Estado de São Paulo, para as revistas Quem e Época e para as gravadoras Warner Music e Biscoito Fino. Gosta de ouvir e contar boas histórias, sejam elas sobre as inspirações da criação de um álbum musical ou sobre o que move o ser humano a olhar para o próximo e fazer algo que contribua com o bem-estar da sociedade.