Na semana da Consciência Negra, a República.org lança conteúdos exclusivos para o especial “Onde estão os negros no serviço público?” — residente na Prefeitura de São Paulo, Aline Pinheiro é a segunda convidada de uma série de entrevistas

Por Danilo Casaletti

Foto: Acervo pessoal.

De acordo com dados mais recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), o Brasil tem 1,7 milhão de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil. Na região nordeste, o Maranhão é o estado com a maior taxa da região, segundo apontou o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil. Os dados são de abril de 2022.

Aline Pinheiro Durans Conceição (foto), 34 anos, nascida em São Luís, conhece bem essa realidade: sua mãe trabalhou dos 8 aos 33 anos de idade como empregada doméstica. Atualmente morando na capital paulista, onde é residente em Gestão Pública na Secretaria de Gestão na Prefeitura de São Paulo, Aline se salvou dessa realidade por meio da educação. 

Ela sempre se envolveu em projetos de valorização da cultura local em São José do Ribamar, município da região metropolitana de São Luís. O ProUni lhe permitiu a formação em administração. Quando se mudou para São Paulo, em 2017, deu seguimento à sua vocação de ajudar a sociedade civil, participando de várias organizações sociais. 

Foi por meio de uma delas que começou a atuar no setor público. “Eu queria entender qual a melhor forma desses dois setores interagirem, trabalharem juntos”, diz Aline, que atualmente cursa especialização em gestão pública no Instituto Insper, como bolsista. 

Agora, por meio do programa “Voa, Mermã”, ela quer ajudar outras meninas do Maranhão – negras e indígenas – a escapar do trabalho infantil. Juntamente com uma ONG local, quer incentivá-las a permanecer na escola, organizar mentorias para descobrir talentos e buscar bolsa de estudos. 

O projeto foi apresentado na primeira turma do Programa Ubuntu, iniciativa do Vetor Brasil, apoiada pela República.org, voltada aos profissionais pretos e pardos que atuam no setor público.

Como surgiu a ideia do projeto “Voa, Mermã”?
Eu tenho um histórico familiar de trabalho infantil. Minha mãe trabalhou em casa de família dos 8 aos 33 anos de idade. Só quando ela conseguiu se formar em magistério que ela ganhou outra profissão, foi ser professora (atualmente, é aposentada). Se ela tivesse tido acesso à educação desde criança, não teria passado por isso. É na educação e na geração de oportunidades que eu acredito, para interromper esse ciclo. Além da questão pessoal, tenho o entendimento que, no Maranhão, as políticas públicas deixam a desejar, sobretudo na questão da educação. 

Como isso impactou na vida da sua mãe?
Quando você mora no seu local de trabalho, seu tempo é para servir. Geralmente essas meninas saem do interior do Maranhão para a capital. Elas, no geral, têm de 15 a 18 anos. Dormem no local de trabalho. Ganham pouco, às vezes, menos que um salário com a justificativa de que têm casa para morar. Então, o tempo que elas têm para estudar é muito pouco. Não há um momento em que elas se enxerguem como protagonistas da própria vida. Sobra muito pouco tempo para se desenvolver como pessoa ou vislumbrar outras oportunidades de vida. Isso afeta a autoestima da pessoa. Foi isso que aconteceu com minha mãe até ela conseguir chegar ao magistério.

Você correu o risco de também ter que viver essa realidade?
Não, minha mãe teve a consciência de não reproduzir isso, de quebrar essa lógica. 

De qual maneira o seu projeto pode ajudar essas meninas?
O projeto foi construído em parceria com o Instituto Valdenia Menegon, que fica em Caxias, no interior do Maranhão, que trabalha justamente para ajudar meninas negras e indígenas por meio da educação, visitando escolas e formando grupos de apoio e discussão em torno do tema. É importante que ele tenha também foco na educação antirracista. Queremos oferecer mentorias para essas meninas a fim de mostrá-las que há outros caminhos que não o trabalho infantil. Vamos firmar parceria com as escolas de Caxias e outras entidades para que possamos inserir essa população na sociedade de maneira mais justa e com uma estratégia de ascensão social e econômica. Basicamente é mostrar que elas podem ser o que elas quiserem – e dar condições para que elas alcancem aquilo que desejam. Temos planos de levar esse projeto para a capital. Nossa intenção é lançá-lo no próximo ano.

Esse projeto também é importante para evitar a evasão escolar, não?
Sem dúvida. É preciso mostrar a essas meninas que a escola está ali como uma agregadora. Que vai desenvolver suas capacidades e dar a oportunidade de chegar ao mercado de trabalho.

E, assim, que elas possam escolher no que trabalhar em vez de ter apenas o trabalho doméstico como opção…
Sim. É engraçado que, mesmo na capital, a gente percebe que as oportunidades são, em geral, no comércio ou em cargos com menores salários. Quem ocupa os quadros de liderança são profissionais vindos de fora do Maranhão. Queremos essas meninas como gerentes, por exemplo, e não obrigatoriamente apenas como recepcionistas. 

O poder público também precisa ser atuante nessa questão?
Sim, ele precisa trazer essas meninas para dentro do ambiente escolar. É preciso uma política pública que ofereça não apenas educação, mas também oportunidades.

Esse seu projeto pode ser replicado para outras cidades, inclusive fora do Maranhão?
Acredito que sim. Ainda estamos trabalhando na metodologia dele. É preciso observar a especificidade de cada localidade. A realidade do interior do Maranhão pode ser diferente da realidade do interior do Piauí, mas esse projeto pode ser uma referência, sim.

Você entrou para pelo sistema de cotas. Como esse sistema foi importante para você ingressar no serviço público?
Entre os residentes do programa de gestão da Prefeitura de São Paulo, 44% são pessoas negras e pardas. Eu e meus colegas sabemos o quanto isso é fundamental para a igualdade de oportunidades. Porém, eu também percebo que elas vêm um pouco tardia. Os que têm entre 35 a 45 anos, poderiam estar ocupando um cargo maior, de chefia. Isso mostra que algo está errado lá atrás. Faltam oportunidades. Não desmereço o programa, pelo contrário. Nosso grupo é o mais bem avaliado pelos supervisores. Como diz (a filósofa americana) Angela Davis, a nossa luta precisa ser constante.

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Danilo Casaletti, paulistano, é jornalista e gestor cultural. Já atuou ou colaborou para os jornais Valor Econômico e O Estado de São Paulo, para as revistas Quem e Época e para as gravadoras Warner Music e Biscoito Fino. Gosta de ouvir e contar boas histórias, sejam elas sobre as inspirações da criação de um álbum musical ou sobre o que move o ser humano a olhar para o próximo e fazer algo que contribua com o bem-estar da sociedade.

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