Cargos estratégicos são preenchidos majoritariamente por homens e mulheres brancas
Por Eugênia Lopes — Especial para República.org
Dados do Anuário de Gestão de Pessoas no Serviço Público, recém-lançado pela República.org, mostram que cinco em cada dez servidores públicos se identificam como negros (52,6%). Essa maioria no funcionalismo não se traduz, no entanto, em posições de lideranças: as pessoas negras ocupam apenas 41,2% dos cargos de chefia.
Segundo o Censo de 2022, a população brasileira é formada por 56,2% de pessoas que se declaram pretas ou pardas. Ou seja, apesar de serem maioria, as pessoas negras estão sub-representadas na burocracia estatal brasileira.
Para Vanessa Campagnac, gerente de Dados da República.org, é preciso transformar essa realidade com medidas contínuas e estruturais. “Reforçar a questão da diversidade é muito importante. A gente tem que continuar perseguindo isso porque é um processo. Essa é uma característica da nossa sociedade que não vai mudar da noite para o dia. São medidas que podem ser feitas incrementalmente para conseguirmos maior diversidade”, defende.
Projeto de Lei 1958/2021: ampliação das cotas raciais é necessária?
Uma dessas medidas é o Projeto de Lei 1958/2021, que amplia de 20% para 30% o percentual de vagas destinadas a cotas raciais. Em tramitação na Câmara, a proposta ganhou regime de urgência, e a expectativa é que sua votação seja concluída ainda em novembro, quando se celebra o Mês da Consciência Negra.
Mulheres negras: protagonismo no serviço público, mas longe do topo da hierarquia
De acordo com o Anuário de Gestão de Pessoas do Serviço Público, a maior parte dos profissionais públicos nas três esferas (União, estados e municípios) é de mulheres negras (29,3%), seguidas de 26,8% de mulheres brancas. Logo depois vêm 23,3% de homens negros, seguidos de 19,2% de homens brancos. Homens e mulheres de outra cor/raça somam juntos 1,4%.
Os dados mostram que nos municípios a proporção de pessoas negras ultrapassa a de pessoas brancas: 56,6% contra 42,3%. Já na administração federal essa proporção se inverte: há mais profissionais que se consideram brancos (53,8%), contra 43,9% que se consideram negros.
Profissionais públicos por cor/raça e esfera federativa no Brasil — 1º trimestre de 2024 (números absolutos e valores percentuais)
A desigualdade racial nos cargos de liderança pública no Brasil
As pessoas negras estão sub-representadas no serviço público e mais distantes de ocupar os cargos mais altos na hierarquia dos governos federal, estadual e municipal. A baixa representatividade racial é ainda mais desigual quanto mais alto é o cargo na estrutura da administração pública. Profissionais públicos com cargos de liderança são em sua maioria homens brancos (29,2%), seguidos por mulheres brancas (28,1%). Bem abaixo estão as mulheres negras (21,0%), seguidas por homens negros (20,2%).
Os dados revelam diferenças importantes não somente sobre a distribuição de cor/raça como também sobre a desigualdade de gênero nos cargos de liderança, destacando a predominância de homens brancos. Esse quadro é diferente da realidade encontrada quando analisamos o total de profissionais públicos: enquanto há 52,6% de pessoas negras na administração pública brasileira, para cargos de liderança a proporção é de 41,2%. Da mesma forma, a sub-representação de gênero também chama a atenção, pois mulheres representam 56,8% do setor público, enquanto constituem 49,9% dos cargos de liderança.
Profissionais públicos em posições de liderança por gênero e cor/raça no Brasil — 1º trimestre de 2024 (números absolutos e valores percentuais)
Carreiras de elite no funcionalismo público: onde estão as pessoas negras?
Em outubro, a República.org divulgou estudo, com base nos dados do Sistema Integrado de Administração de Pessoal (Siape), de março de 2024, que comprova a baixa representatividade de pessoas negras em cargos da elite do funcionalismo público federal. O instituto elaborou um ranking dos 15 cargos com menor proporção de pessoas negras dentro do funcionalismo federal. A diplomacia brasileira apresenta a pior representatividade de pessoas negras, com apenas 5,1% de pessoas negras no topo da hierarquia do Itamaraty, como ministro de Primeira Classe, que ocupam o cargo de embaixador(a).
Assim como no Itamaraty, as pessoas negras estão sub-representadas em carreiras de elite no funcionalismo público do Executivo Federal, como médicos, analistas da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), professores universitários, técnicos da Superintendência de Seguros Privados (Susep) e auditores da Receita Federal. São cargos em que os salários iniciais, na maioria dos casos, começam acima dos R$ 20 mil.
Qual é o impacto das cotas raciais no funcionalismo público?
Sancionada em 2014, a Lei n.º 12.990 vigorou por 10 anos, destinando 20% das vagas em concursos públicos para pretos e pardos, quando há um mínimo de três posições disponíveis para um mesmo cargo. A lei perderia sua validade em 10 de junho deste ano, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a ampliação da vigência da legislação até que seja concluído no Congresso o processo de votação da nova legislação.
Pela decisão do Supremo, fica afastada “a interpretação que extinga abruptamente as cotas raciais previstas na Lei 12.990/2014”, mas depois que uma nova norma for aprovada “prevalecerá a nova deliberação do Poder Legislativo, sendo reavaliado o conteúdo da presente decisão cautelar”.
Em tramitação na Câmara, o Projeto de Lei 1958/2021 renova cotas para pretos e pardos, inclui indígenas e quilombolas, e amplia de 20% para 30% o percentual de vagas destinadas a cotas raciais. A proposta estabelece também mecanismos para refrear eventuais tentativas de burlar às ações afirmativas verificadas ao longo de dez anos de vigência da Lei de Cotas, em especial nas universidades federais, com o fracionamento de vagas.
Diversidade no serviço público: avanços e o que ainda precisa mudar
O impacto das cotas tem sido significativo, permitindo a entrada de mais pessoas negras no setor público, mas a efetividade dessa política depende, por exemplo, da realização de concursos regulares. Em 2013, a administração pública federal possuía 37,3% vínculos ativos (219.496) de pessoas que se autodeclararam como negras, segundo dados do Painel Estatístico de Pessoal (PEP). Dados de fevereiro de 2024 demonstram que esse número agora é de 39,9% (227.776). “Se não tem concurso, você não consegue aplicar a lei. E teve poucos concursos no período”, ressalta Vanessa Campagnac. A redução de seleções nos últimos anos limita a renovação do quadro funcional e a ampliação da diversidade.
O futuro das cotas raciais: o que esperar da votação no Congresso?
Aprovada em maio no Senado, a renovação da Lei de Cotas Raciais em concursos públicos foi também aprovada pela Câmara dos Deputados na véspera do Dia da Consciência Negra (19 de novembro). Contudo, o texto sofreu alterações: o prazo de revisão da lei foi reduzido de dez para cinco anos, e as bancas de heteroidentificação, responsáveis por confirmar a autodeclaração racial dos cotistas, foram retiradas. Com essas mudanças, a proposta retornará ao Senado para nova análise.