Autores como Lilia Guerra, Cibele Tenório e Pablo Casella contam como a experiência no setor público vira matéria-prima para romances, poemas e biografias
Por Eugênia Lopes — Especial para a República.org
Em outubro de 2018, quando ganhou o prestigiado prêmio LeYa no valor de 100 mil euros pelo romance Torto Arado, o hoje consagrado escritor Itamar Vieira Júnior ouviu de seu pai um único pedido: que não largasse o serviço público. Passados sete anos, Itamar não cogita descumprir a promessa e mantém o emprego de analista do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), onde ingressou por concurso público em 2006. Atualmente, o autor e geógrafo está afastado do cargo, sem receber salário.
“Fomos tomar um café durante a Feira Literária de Poços de Caldas e o Itamar me contou que quando ganhou o Prêmio LeYa, foi contar todo feliz para o pai. E o pai, antes de dar parabéns ou falar qualquer outra coisa, disse: você não vai deixar o seu trabalho, o seu emprego no Incra por causa disso”, relata a escritora e também funcionária pública Lilia Guerra, autora de O Céu para os Bastardos.
Auxiliar de enfermagem há 19 anos, Lilia atua no Sistema Único de Saúde (SUS), e faz questão de permanecer vinculada ao serviço público. “Um dos maiores orgulhos da minha vida é servir o SUS”, diz a escritora, que trabalha em um centro de testagem e aconselhamento em doenças sexualmente transmissíveis, na periferia de São Paulo.
Ela conta que um dos momentos mais difíceis de sua vida foi quando decidiu deixar um dos dois empregos públicos. “Precisei de ajuda médica; precisei conversar muito antes de pedir a exoneração de um dos meus vínculos”, relembra a escritora, que foi uma das atrações da Casa República na 23ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), no início de agosto.
“Um dos maiores orgulhos da minha vida é servir o SUS.”
Lilia Guerra, servidora pública e escritora
Lilia sublinha que sua trajetória profissional foi marcada tanto pela necessidade de estabilidade quanto pelo desejo de servir à comunidade. E explica que muitos de seus personagens nascem da escuta atenta aos pacientes e às histórias que encontra no dia a dia. “O serviço público me ajuda muito, sempre foi muito inspirador. Conversando com as pessoas, percebo narrativas que merecem ser contadas, personagens que não apareciam nos livros que eu lia”, afirma.
Segundo ela, até mesmo a linguagem técnica da enfermagem, com suas anotações detalhadas, influencia seu estilo. “Achei literário quando descobri termos como deambular. Passei a enxergar literatura na própria prática da saúde.” Mesmo com a rotina dividida entre o SUS e compromissos literários, Lilia não pensa em abandonar o trabalho na saúde para viver apenas da escrita. “Eu quero conciliar as duas coisas, mesmo que isso signifique escrever menos”, diz.

Serviço público não é moleza: a arte de conciliar jornadas intensas
Jornalista na Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e pesquisadora na Universidade de Brasília (UnB), onde faz doutorado, Cibele Tenório destaca que o serviço público oferece estabilidade, mas não a “moleza” muitas vezes atribuída de forma equivocada aos servidores. Ela lembra que, na época em que escreveu o livro com a trajetória da sufragista Almerinda Gama, sua rotina de editora da TV Brasil, da EBC, era intensa, com a cobertura diária do Congresso Nacional.
Apesar do trabalho exaustivo, Cibele é categórica ao refutar a hipótese de deixar o serviço público para se dedicar exclusivamente à literatura. “Poucas pessoas podem dizer que trabalham com o que gostam, e eu tenho esse privilégio”, afirma Cibele, também atração da Casa República 2025.
Outra que tenta conciliar a rotina do serviço público com a criação literária é Susana Barbosa, professora do Colégio Pedro II, instituição de ensino público federal no Rio de Janeiro. “Viver da escrita não é tão simples. A literatura, para mim, dialoga com essa ideia de servir, ofertar ao mundo uma visão, uma interpretação do que vivemos”, diz Suzana, que participou da Casa República na Flip com o livro Axé é Literatura, que aborda a espiritualidade afro-brasileira.

A importância de mostrar a qualidade no serviço público
Em seu dia a dia, a professora busca romper estereótipos em torno do servidor público. “Ainda convivemos com a ideia de que quem faz concurso quer apenas estabilidade e não entrega qualidade. Mostrar que servidores produzem literatura e novas visões de mundo é fundamental para desconstruir isso”, ressalta. Questionada se abandonaria a carreira pública para se dedicar apenas à escrita, ela admite a dificuldade da escolha. “Talvez reduzir a carga, mas não abandonar. Gosto do contato com as pessoas, e o serviço público ainda me alimenta enquanto escritora e cidadã.”
A literatura, para mim, dialoga com essa ideia de servir, ofertar ao mundo uma visão, uma interpretação do que vivemos.
Suzana Barbosa, professora do Colégio Pedro II e escritora
Para Breno Botelho, assessor jurídico do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, a rotina de autor é uma “segunda jornada”, construída em madrugadas insones, finais de semana e períodos de férias. “O serviço público é uma grande fonte para minha produção literária. As discussões e dilemas que vivencio no dia a dia acabam inspirando tanto personagens quanto reflexões presentes na obra”, afirma Breno, que estreou na literatura com o romance Pilares, lançado durante a última Flip.
Assim como seus colegas de ofício, Breno não cogita abandonar o serviço público para se dedicar exclusivamente à literatura. “Por mais que eu deseje ter sucesso como escritor, não me vejo fora da área pública. Acho fundamental que o Estado conte com pessoas comprometidas em garantir direitos fundamentais”, diz o autor, que ocupa um cargo em comissão no Ministério Público, desde 2017.

Trabalho público como laboratório literário
Servidor público do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) há mais de duas décadas e escritor, Pablo Casella conta que a jornada de 40 horas semanais deixa pouco espaço para a criação. Ainda assim, foi nesse ritmo de noites em claro e madrugadas produtivas que nasceu Contrafogo, seu romance de estreia, dedicado ao universo dos incêndios florestais. Apesar da carga horária intensa, Pablo não pensa em abandonar o serviço público. Pelo contrário, considera o trabalho uma extensão de seu engajamento ambiental. “Sou ambientalista antes de ser analista ambiental. O serviço público me dá a chance de transformar essa paixão em entrega concreta ao mundo”, diz o escritor.
Defensora pública há mais de 14 anos, Mariana Salomão Carrara é outra servidora que enfrenta o desafio de adequar o trabalho com a paixão pela literatura. Ela conta que a rotina jurídica muitas vezes a deixa sem energia para mergulhar nos personagens de seus romances. Por isso, aproveita os recessos, licenças e férias para se dedicar intensamente à escrita. “É difícil fechar os arquivos jurídicos e abrir os literários na mesma sequência. Preciso de períodos inteiros para conseguir me entregar à criação”, argumenta.
A experiência profissional também atravessa suas obras: processos e personagens inspirados na Defensoria aparecem em livros como Não Fossem as Sílabas do Sábado e É Sempre a Hora da Nossa Morte Amém. Atualmente, Mariana trabalha em um romance totalmente ambientado no universo judiciário. Apesar do desejo de viver exclusivamente da literatura, ela reconhece que a carreira pública oferece algo essencial: contato direto com a realidade brasileira e um repertório de histórias humanas que alimenta sua ficção. “O trabalho como defensora é útil, bonito e ajuda de fato a vida de algumas pessoas. Além disso, me garante liberdade criativa, sem a pressão de depender financeiramente apenas da escrita”, afirma.

Exemplos históricos de escritores no serviço público
A vida dupla de Itamar, Lilia, Cibele, Susana, Breno, Pablo e Mariana não é um fenômeno exclusivo de autores contemporâneos. Historicamente, o serviço público tem sido espaço fértil para escritores e cronistas renomados. É o caso do poeta Carlos Drummond de Andrade, que se aposentou, em 1962, como funcionário do então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (atual Iphan), depois de passar pelo governo de Minas Gerais e ocupar a chefia de gabinete de Gustavo Capanema, então ministro da Educação e Saúde, entre 1934 e 1945.
Outro exemplo é o do cartunista Sérgio de Magalhães Jaguaribe, o Jaguar, que faleceu recentemente, aos 93 anos. Jaguar foi funcionário do Banco do Brasil até 1974, quando se aposentou. Na década de 1960, cogitou largar o emprego, mas Sérgio Porto, mais conhecido como Stanislaw Ponte Preta, o convenceu a permanecer no banco. “O Sérgio fez a cabeça do Jaguar para ele não largar o Banco do Brasil”, conta o jornalista e escritor Humberto Werneck, que está finalizando a biografia de Carlos Drummond de Andrade.
Os depoimentos falam de Drummond como um funcionário [público] exemplar, que uniu pontualidade a grandes contribuições, como no projeto do Palácio Capanema.
Humberto Werneck, jornalista e escritor
Segundo ele, até o golpe militar, em 1964, era comum os intelectuais brasileiros terem um emprego público. “O Drummond é de uma geração em que escritores procuravam abrigo, um ganha-pão no serviço público. Era muitíssimo comum”, atesta Werneck. “Só com o golpe militar é que o Estado deixou de ser para muitos intelectuais e artistas um emprego, um meio de ganhar a vida como funcionário público”, observa.
O biógrafo ressalta que Carlos Drummond não encarava a função no serviço público como “cabide de emprego”, mas como espaço de atuação intelectual. “Todos os depoimentos falam dele como um funcionário exemplar. Ele não era apenas pontual, ele prestou grandes contribuições, como no projeto do Palácio Capanema, marco da arquitetura modernista”, afirma Werneck.
A lista de autores que tiveram carreiras no setor público, atuando em órgãos culturais, educacionais e de pesquisa é grande. Para muitos deles, o trabalho estatal não era apenas um sustento, mas também uma oportunidade de se manterem próximos de realidades diversas, observar a sociedade e alimentar a imaginação literária.