A vedação à surpresa na Administração Pública e o direito à participação social

Publicado em: 20 de agosto de 2024

O Direito traz em si princípios que, expressamente, devem nortear a Administração Pública, como legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Mas há muitos outros princípios jurídicos que não estão diretamente direcionados à gestão pública, por ela devem ser utilizados por analogia. Um exemplo é o princípio conhecido como o da vedação ao comportamento contraditório ou nemo potest venire contra factum proprium, ou seja, as partes não podem agir de forma contraditória – como, por exemplo, um órgão público que declare que seu ambiente de trabalho é insalubre para obter mais recursos orçamentários e depois negue o pagamento de adicional de insalubridade aos seus funcionários.

Há, também, o princípio da vedação a beneficiar-se da própria torpeza. Aqui, a título de exemplo, teríamos um órgão que programe para o último dia do prazo de recolhimento de algum tributo uma manutenção geral nos seus sistemas, impedindo a emissão das guias de pagamento pelos contribuintes, e depois aplique multas por esse atraso que causou. E podemos mencionar, por fim, mas não menos importante, o princípio da não surpresa, que consiste na vedação ao julgador de tomar decisão com base em fundamento sobre o qual não tenha dado às partes a oportunidade de se manifestar. 

Sobre este último, também é mais que bem-vinda a aplicação por analogia ao administrador público, quando este costuma decidir sobre temas importantes e caros à sociedade sem ouvi-la, sem estabelecer consulta pública, sem estar aberto à participação da sociedade. Quem sabe um dia tenhamos a vedação a essa conduta, como existe a vedação à decisão surpresa no art. 10 do Código de Processo Civil, que assinala: 

Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.

A participação social, apesar de prevista em lei como exigência para processos normativos de instituições como as Agências Reguladoras, por meio de consultas e audiências públicas previamente à edição de normativos que possam impactar agentes e/ou consumidores, deixou de ser obrigatória para aquisições de grande vulto com a Nova Lei de Licitações. Na maioria dos demais normativos, sempre foi tratada como uma faculdade do gestor, uma boa prática, utilizada quando este entender conveniente e oportuno.

Um serviço público de excelência se faz com escuta da população na elaboração dos regulamentos e na prestação dos serviços.

E quanto mais repletos de demandas os órgãos públicos, mais difícil fica ao agente público interromper o fluxo tradicional do andamento dos processos para promover um processo de participação, que pela sua natureza de diálogo, tende a “atrasar” a tomada de decisão. O ganho de sua adoção é sempre com relação à qualidade da decisão tomada, e nunca com relação ao quantitativo de prazo empregado para aquela decisão.

Seria muito mais favorável à adoção da participação social, portanto, uma legislação que a tratasse não como faculdade do poder público, mas uma etapa necessária, em regra, para a tomada de decisão governamental. Em dissertação de mestrado, que deu origem a livro, e em alguns artigos acadêmicos, me dediquei a analisar a estrutura de participação social de entes públicos, em especial das Agências Reguladoras, e até mesmo de instâncias internacionais como as Conferências das Partes sobre Mudanças Climáticas.

Se, nas instâncias onde a participação social se encontra consolidada, essa conquista não foi trivial, mas sim fruto de um trabalho, ao longo do tempo, de legisladores e servidores públicos de grande dedicação, que compreenderam a importância de sua implantação e manutenção, é também verdade que há ainda uma ampla gama de instituições e setores que necessitarão passar por essa curva de aprendizagem até que possam alcançar um grau de participação efetivo em suas atividades.   

Importante salientar que a participação não é um favor ao cidadão, mas sim um pressuposto de legitimidade da Administração Pública num regime democrático. Um serviço público de excelência se faz com escuta da população na elaboração dos regulamentos e na prestação dos serviços. Os cidadãos querem ver respeitado o seu direito à não surpresa e serem consultados antes da criação e de mudanças de regulamentos pela Administração Pública, os quais, na maioria das vezes, impactam diretamente suas vidas.

Alex Cavalcante Alves: Alex Cavalcante Alves é servidor público federal, integrante da carreira de analista da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), onde é assessor-chefe de gestão estratégica da Superintendência de Gestão de Pessoas. Foi um dos vencedores, no eixo setorial gestão de pessoas, do Prêmio Espírito Público 2021, presidiu o Fórum de Recursos Humanos das Agências Reguladoras Federais e foi conselheiro do Centro de Altos Estudos do Tribunal de Contas da União (TCU). É mestre em Direito, área de concentração Políticas Públicas, Estado e Desenvolvimento, pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Autor dos livros “A Recondução do Servidor Público” e “Participação Social, Welfare State e Regulação no Brasil”, é professor de Direito e de Administração Pública, e fundador do Movimento Gestão Pública Eficiente (MGPE), iniciativa da sociedade civil que visa ao aperfeiçoamento constante da qualidade da administração pública no Brasil.

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